Por que fenômenos como Round 6 são cada vez mais raros?
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
Em 2021, vimos o fenômeno de Round 6 tomar não só o streaming, mas também as redes sociais a ponto de se tornar um fenômeno do qual era impossível escapar. Só que as chances de vermos algum lançamento repetir esse impacto em 2022 são bem baixas — até porque a plataformização do conteúdo tende a fazer com que sucessos estrondosos assim se tornem cada vez mais raros.
Casos como o da série sul-coreana são pontos fora da curva dentro desse universo cada vez mais nichado que os serviços de streaming vêm criando. Afinal, com tanta coisa sendo lançada em tantas plataformas diferentes, é natural que cada pessoa esteja assistindo a um tipo de conteúdo diferente e são poucas as produções que conseguem furar essas infinitas bolhas e unir todas as tribos.
Tanto que, antes de Round 6, que outro fenômeno parecido tivemos? No máximo, a primeira temporada de Stranger Things — mas ainda dentro de um contexto totalmente diferente. Em 2016, quando o seriado estreou, a quantidade de serviços concorrendo com a Netflix era bem menor e a oferta de conteúdo não era nada comparada ao que temos hoje. E até mesmo Game of Thrones e todo o barulho causado vinha de um universo muito mais ligado à TV fechada do que ao streaming propriamente dito.
E é essa plataformização cada vez mais acentuada que faz com que estouros como da Batatinha Frita, 1, 2, 3... se tornem cada vez mais raros, além de afetar os seus gostos e influenciar diretamente naquilo que você vai assistir no próximo play.
Plataformização: o que é isso?
Para entender o que é essa tal plataformização é preciso ter em mente, primeiro, que tudo aquilo que a gente assiste e consome em serviços como Netflix, HBO Max e Disney+ gera dados que vão alimentar um caminhão de algoritmos.
Cada play deixa um rastro de informação que é aproveitado pelas empresas para entender melhor o comportamento do usuário. É a partir disso que elas identificam que tipo de conteúdo atrai um público específico, de que forma o roteiro engaja mais a audiência e quais resultam em mais interrupções ou abandono — e por aí vai. É a velha discussão dos algoritmos de sempre, mas o que importa é o que surge disso.
Como explica a especialista em Ciências do Consumo e mestranda em Comunicação pela Unisinos, Sarah Tatsch, essa coleta de dados constante é uma das bases dessa plataformização, um processo que vai para muito além de streaming e que rege toda nossa relação de consumo no mundo digital.
“É toda essa lógica de infraestrutura de dados, relação de mercados e processo de governança misturada a essa questão de imagem que serviços como a Netflix lidam diariamente”, destaca em entrevista exclusiva ao Canaltech.
Parece complicado, mas tem uma aplicação bem prática em nossa vida: todas as informações geradas por aquilo que consumimos vai servir de base para a indústria, fundamentando estratégias de marketing, criando novos conteúdos e pautando aquilo que a gente consome e discute — criando uma espécie de ciclo.
É uma forma elaborada de dizer aquilo que você certamente já notou na prática: as big techs conhecem seus gostos melhor do que você mesmo e, com o streaming, isso é ainda mais evidente.
Inclusive, isso é algo que foi vendido como o grande diferencial desses serviços. Lembra-se de quando a gente comemorava que iríamos assistir apenas àquilo que gostávamos, sem os intervalos ou programas desinteressantes que enchiam a TV aberta e a cabo? Só que essa mesma conquista também se torna um desafio para as empresas. Afinal, como produzir algo que vai agradar perfis de espectadores tão distintos?
Para Tatsch, uma das principais características dessa plataformização do conteúdo é a hipersegmentação que ela proporciona, criando nichos tão específicos que viram bolhas que pouco interagem entre si e que dificilmente são ultrapassadas.
A especialista ilustra essa questão citando o seu próprio exemplo: a Netflix sabe que ela gosta de documentários que vão de curiosidades sobre a Ilha de Páscoa até a desova de tartarugas — e a coloca em uma espécie de redoma de produções parecidas.
“A partir disso, a Netflix sabe que eu gosto muito de história e biologia e passa a me recomendar apenas conteúdos assim. Ele passa a sugerir documentários, criando um nicho do nicho do nicho”, detalha. “Conforme vamos deixando esses rastros, ele vai captando especificidades latentes dentro do nosso comportamento para criar novas recomendações e novos nichos”.
E o desafio de criar um novo Stranger Things ou Round 6 está no fato de que esses grupos vão ser constantemente alimentados por novos conteúdos cada vez mais parecidos, e são raras as produções capazes de furar a bolha.
Se você é fã de true crimes brasileiros, dificilmente vai receber a sugestão de uma série de fantasia em sua tela inicial, assim como quem acompanha animes de esporte protagonizados por garotas vai receber indicação de filmes que falem sobre o Velho Oeste Americano.
A plataformização gera essa segmentação tão direcionada que é quase impossível tirar o usuário da zona de conforto construída à sua volta.
É por isso que, mesmo tendo sido muito bem aceitas pelo público, produções como The Witcher, a nova temporada de Cobra Kai e até mesmo o elogiado Ataque dos Cães não chegaram nem perto de repetir o estrondo que foi Round 6. Ainda que elas tenham conseguido ser muito faladas pelo público e até premiadas, não foram capazes de invadir esses diferentes nichos que o próprio algoritmo criou.
O caso de Bridgerton ilustra bem como isso é verdade. Apesar de ter um engajamento enorme dos fãs e ter se tornado, à época, a produção mais assistida da Netflix em pouquíssimo tempo, ela não conseguiu atingir nichos fora dos amantes de romance e de seriados de época, mesmo com seus 625 milhões de horas assistidas nos primeiros 28 dias de exibição.
Apesar dos números estratosféricos, ainda é um conteúdo de nicho. Round 6, apenas para ter uma ideia, alcançou 1,6 bilhão de horas assistidas — ou seja, bem mais do que o dobro.
Aliás, olhar para o ranking de séries mais assistidas da Netflix é uma ótima forma de visualizar os efeitos dessa plataformização. Ao mesmo tempo em que é possível notar quais são os diferentes nichos atendidos, há também como traçar quais são aqueles em que o streaming foca seus esforços para engajar mais.
Afinal, é fácil traçar um padrão entre 13 Reasons Why, Sex Education e Elite, por exemplo, e ver em qual público a plataforma está mirando e tendo mais resultados. Asinda assim, nada que a gente classifique como um fenômeno.
A TV que não une
Uma forma bem simples de entender como essa plataformização está isolando o usuário é lembrar como era quando você era criança. Via de regra, todo mundo da sua escola assistia à mesma coisa e isso era fundamental tanto para a coesão social do grupo como para alimentar o buzz.
Desenhos como Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball Z e Pokémon eram fenômenos dos anos 1990 e 2000 porque a oferta de animação era pouca e todo mundo acabava sendo obrigado a conferir as mesmas coisas. Assim, esses eram os assuntos do recreio e a TV servia como um elemento de unificação, criando esse senso de comunidade em que até quem não assistia acabava dando uma chance para não ficar de fora das conversas e das brincadeiras.
E por mais que a gente ainda tenha muito desse buzz nas redes sociais, ele é muito mais fragmentado. Imagine o Twitter como esse grande pátio da escola e perceba como há diferentes grupos falando de coisas tão didtintas que é impossível estar inteirado de tudo. Há aqueles empolgados com a Marvel, os que reclamam de Gossip Girl, os animados com o remake de Rebelde e até quem está maratonando séries antigas e fazendo meme com Friends e Lost.
“Como agora a gente pode ver de novo e a qualquer hora, há também uma forma de divulgação e disseminação muito mais parcelada”, pondera Tatsch, que destaca justamente que a plataformização não exige mais que todo mundo esteja sintonizado no mesmo canal e na mesma hora para consumir um conteúdo.
E essa falta de sincronicidade pode dificultar a discussão e o diálogo. Afinal, você quer mesmo falar do final de Loki enquanto a gente está debatendo sobre o que aconteceu hoje em O Livro de Boba Fett?
Ao mesmo tempo, aponta a especialista, a facilidade do streaming em garantir que o público veja e reveja algo na hora que quiser também facilita a criar o tão desejado efeito de cauda longa, ou seja, fazendo com que o interesse em determinado filme ou série se prolongue por semanas ou meses:
“O interesse vai, aos poucos, crescendo e descendo, mas sem tantos altos e baixos como antes. E isso vai gerando discussões e debates que ainda despertam interesse e fazem mais pessoas assistirem àquilo”.
Foi o que aconteceu com Breaking Bad, por exemplo, que não teve um desempenho memorável em sua exibição na TV, mas que cresceu quando chegou ao streaming.
Reproduzindo o fenômeno
E é aí que está o fenômeno que não só a Netflix, mas todas as plataformas almejam alcançar. Afinal, para que um conteúdo seja o sucesso estrondoso que vimos com Round 6 de forma sem precedentes, ele precisa romper as barreiras existentes entre essas bolhas e atingir os mais diferentes nichos — e esse deve ser o objetivo daqui em diante.
Para Tatsch, parte do caminho que as empresas devem seguir para tentar reproduzir o sucesso do jogo da lula é romper as barreiras entre as séries e outras áreas de interesse do público.
“Quando a gente pensa na TV, em que todo mundo assistia à mesma coisa, o conteúdo ficava ali. E o interessante que temos nesse momento do digital é ver essa quebra de paredes, um campo que invade o outro e influencia outros meios”, analisa.
E essa mistura a que a especialista se refere foi a invasão de conteúdos que a gente viu surgir na sequência da estreia de Round 6. Segundo ela, além do barulho causado por fãs, youtubers e influenciadores nas redes sociais, o próprio Twitter, Instagram e TikTok ajudaram a impulsionar o fenômeno, com filtros, deafios e até a entrega de mais conteúdo relacionado graças aos seus próprios algoritmos, fazendo com que mais gente conhecesse o seriado e despertando ainda mais a curiosidade.
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Tanto que, em pouco tempo, o mundo offline já estava sendo influenciado por Round 6 — algo que nenhuma das promessas de sucesso sequer ousou fazer.
“A gente tinha lojas fazendo referências à série. A boneca do Batatinha foi colocada em museus e em pontos turísticos. Teve até feira de produtos funerários vendendo um caixão como aquele que aparece em alguns episódios”, relembra Tatsch.
Dessa forma, ela acredita que o futuro vai ser cada vez mais povoado desses conteúdos específicos feitos para viralizar, ou seja, para ser facilmente compartilhado e reproduzido, além de abrir espaço para memes.
Ao mesmo tempo, o simples fato de existir uma fórmula para reproduzir o fenômeno é também o primeiro passo para que essa lógica seja aplicada à plataformização, dando início a um novo ciclo. Afinal, a partir do momento que todo lançamento for esse estrondo, ele vai começar a nichar e a criar essas bolhas.
Foi o que aconteceu no cinema com os filmes de herói, por exemplo. Quando as adaptações em quadrinhos eram a exceção da indústria, um sucesso como o de Batman: Cavaleiro das Trevas era o ponto fora da curva. À medida que surge a fórmula Marvel e vem uma enxurrada de filmes do gênero, as bilheteria bilionárias se tornam regra e começam a surgir nichos específicos: há os filmes da Marvel, os da DC, os mais sérios, os mais cômicos e por aí vai — e agora todo mundo quer seguir a fórmula de Vingadores: Ultimato ou Homem-Aranha: Sem Volta para Casa para ter um sucesso igualmente expressivo.
Ainda assim, como a própria Tatsch faz questão de frisar, não há como cravar que 2022 não vai ter seu Round 6 ou coisa que o valha, tampouco que essa ou aquela é a tendência a ser seguida. Tudo isso é um processo em andamento e em constante transformação.
Contudo, a tal da plataformização já é uma realidade que pauta nossos gostos, nosso consumo e as discussões que vêm disso — e entender isso pode ser uma boa forma de identificar um pouco do que está por vir.