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Como a China influencia você e o mundo com cultura pop

Por| Editado por Jones Oliveira | 21 de Setembro de 2021 às 10h20

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Reprodução/Marvel Studios, miHoYo, Shopee
Reprodução/Marvel Studios, miHoYo, Shopee

A estreia de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis foi muito comemorada em todo o mundo não apenas pelo seu sucesso em plena pandemia, mas também por ser o primeiro grande filme de herói protagonizado por um asiático — uma conquista de representatividade comparável ao que vimos com Pantera Negra anos atrás. E, embora esse seja um marco inegável, a chegada do Mestre do Kung-Fu e de todo o lado oriental do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês) é reflexo de um fenômeno muito maior e que vai além das telas de cinema.

O herói traduz bem a expansão cultural da China pelo mundo, algo que vem se tornando bastante recorrente no mundo do entretenimento. Antes de Shang-Chi, animações como A Caminho da Lua e Din e o Dragão Genial chegaram à Netflix com status de superproduções, enquanto jogos como Genshin Impact se revelaram enormes sucessos no Ocidente — todos eles trazendo ou representando o país de alguma forma.

Só que isso não é novidade e tampouco uma exclusividade chinesa. Na verdade, essa exportação cultural é algo bastante comum e uma forma de os países demonstrarem sua força e influência no cenário global. Basta ver como o modo de vida americano nos é tão comum — mesmo com boa parte de nós nunca tendo ido aos Estados Unidos — ou como temos uma visão do Japão como um país que une tradição e modernidade apenas com base no que os animes e videogames nos passaram durante anos.

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Isso é o que as relações internacionais chamam de soft power, ou seja, uma demonstração suave de influência de um país, em que ele mostra a sua força sem precisar entrar no campo da força bélica. “É uma estratégia que um determinado país adota para fazer sua inserção internacional e para atingir determinados objetivos”, explica Wilson Maske, doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de História Contemporânea pela PUCPR, em entrevista ao Canaltech. “É uma forma suave, mais doce de influenciar o mundo e de mudar a opinião pública do mundo. E financiar e encaminhar a temática da indústria cultural é uma dessas estratégias”.

Basicamente, estamos falando da forma como um país se apresenta para os demais, construindo uma imagem diante do mundo. Como Maske detalha, existem diferentes maneiras de isso ser feito, seja com a maior atuação industrial em uma determinada região de um país estrangeiro — como retratado no filme Indústria Americana —, oferecendo oportunidades de intercâmbio e até mesmo no esporte. Basta pensar na percepção que tivemos de cada país na última Olimpíada com base em seu desempenho nas diferentes modalidades.

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Contudo, o entretenimento ainda é o mais comum e eficiente nesse sentido. “A indústria cultural é um meio inteligente de melhorar a opinião pública de um determinado assunto ou país”, afirma o professor. “É algo bem mais sutil que uma propaganda, em que você pode ter mais resistência. Quando você vê um bom filme, aquilo te entretém e você recebe tudo de uma forma um pouco mais positiva”.

Basta perceber a nossa relação com o cinema estadunidense. Durante décadas consumimos não apenas os filmes e séries, mas também as ideias e as visões de mundo que essas produções carregavam. Importamos boa parte do american way of life só a partir das coisas a que assistimos na TV e no cinema, da mesma forma como encaramos o mundo e a sua geopolítica sob essas perspectivas.

Isso porque, por mais que essa influência nem sempre seja evidente — ou mesmo proposital —, ela está ali nos impactando e moldando o modo como enxergamos os Estados Unidos ou mesmo seus parceiros e rivais. “Você já viu um filme americano falar mal do país? Ou das derrotas que eles tiveram?”, questiona Maske.

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Só que o soft power também pode ser usado para além dos interesses políticos. Como dito, a ideia é transmitir uma imagem de um país para o restante do mundo. Os animes e jogos nipônicos, por exemplo, contribuíram muito para a nossa visão do Japão como um lugar de tecnologia muito avançada em que a disciplina e os costumes ajudam a tornar tudo mais eficiente.

Algo muito semelhante é possível notar com a Coreia do Sul, cuja expansão do k-pop e das séries na Netflix — os chamados k-dramas — coincide com o aumento da presença da indústria sul-coreana em todo o mundo. Basta ver o que a Samsung se tornou ao longo da última década.

Para Maske, o aumento da participação cultural da China faz parte dessa “invasão oriental” que acompanhamos ao longo dos últimos 30 anos. “Há toda uma geração que tem uma visão muito positiva dos países orientais, como Japão e China. Eles gostam de coisas como as histórias em quadrinhos, as artes marciais e a própria comida”, explica o professor, que destaca que o caráter moderno que essas produções carregam tem um forte apelo entre o público mais jovem e que ajuda a manter a influência desses países no Ocidente. “Tanto que foi criada uma disciplina na universidade só para a História da Ásia Contemporânea e os alunos são alucinados por isso”.

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E, segundo ele, são várias as razões que ajudam a explicar esse interesse — e que os países estão sabendo capitalizar isso muito bem ao mesmo tempo em que usam isso a favor de suas próprias agendas. “Tem a indústria que produz isso e quer vender, tem o país que tem interesse nessa indústria cultural para usar como soft power e tem o consumidor interessado nisso tudo”, explica Maske. “É importante destacar que o público não é obrigado a nada. Ele consome porque gosta. É uma questão geracional e hoje temos a China se encaminhando para fazer o que o Japão já fez antes”.

A cultura cada vez mais chinesa

Assim, é possível entender um pouco mais do porquê do aumento da presença da China em produtos culturais nos últimos anos. Como dito, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é apenas o mais recente exemplo dessa demonstração de influência por parte daquilo que a gente consome como entretenimento.

Em 2020, isso ficou bastante evidente no mundo dos jogos com Genshin Impact. O game desenvolvido pelo estúdio chinês miHoYo foi um enorme sucesso em todo o mundo, com mais de 60 milhões de downloads entre setembro de 2020 e junho de 2021, segundo dados do Statista. De acordo com a página, em apenas 13 dias desde o seu lançamento, o jogo já tinha arrecadado US$ 100 milhões (R$ 531 milhões na cotação atual) em microtransações, o que mostra bem o barulho que ele causou em todo o mundo. Em seis meses, chegou a US$ 1 bilhão.

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E, entre meninas com poderes elementais e espadas mágicas, o jogo traz uma enorme carga cultural da China e representações bastante positivas do país. Uma das maiores e mais importantes áreas do game é a nação de Liyue, que nada mais é do que uma versão mais lúdica do país e que é retratada como a nação mais próspera do mundo de Genshin Impact ao mesmo tempo em que traz paisagens e monumentos grandiosos.

Já no cinema, isso não é muito diferente — embora ainda vejamos poucas produções feitas na China rompendo a bolha de Hollywood. Assim, o que temos é um outro tipo de abordagem, em que a influência do país oriental acontece em filmes e séries feitos nos EUA. O exemplo de Shang-Chi é o mais claro de todos, mas também temos isso evidente no próximo filme da Pixar, Red: Crescer é uma Fera, que também vai focar sua trama em torno da cultura chinesa.

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E se a toda-poderosa Disney se rendeu a essa influência, só pode ter uma única razão para isso tudo: dinheiro. Apesar de a ideia do que é o soft power possa soar como um grande plano de manipulação cultural internacional aos moldes do que os teóricos da conspiração adoram, a verdade é que estamos falando de negócios e o cinema deixa isso bem claro.

Você já deve ter percebido que, há algum tempo, temos visto uma maior participação de personagens e núcleos chineses em filmes e que a própria representação do vilão oriental mudou bastante em relação ao que tínhamos anos atrás. Parte disso está no fato de que Hollywood percebeu que o mercado chinês é muito lucrativo. Afinal, como fechar os olhos para um país cuja população é de 1,4 bilhão de pessoas?

Tanto que a China já é um dos grandes pilares da bilheteria global de qualquer filme. Dos quase US$ 2,8 bilhões arrecadados por Vingadores: Ultimato em todo o mundo, US$ 629 milhões foram apenas no país asiático — ou seja, mais de 22% do total arrecadado em todo o planeta.

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O grande ponto é que o governo chinês ainda segue bastante restrito quanto ao que pode ser exibido por lá. Assim, o que os estúdios passaram a fazer foi dar mais destaque para aos núcleos e personagens chineses e a se preocuparem com os discursos que seus filmes passavam para evitar algum tipo de censura que impedisse a estreia nos cinemas orientais. “A gente já viu um monte de filmes onde o vilão era um russo comunista ou um traficante mexicano. Mas eu percebo que, na indústria americana de cinema, esse papel do vilão chinês está sumindo. Mas será que é por acaso?” questiona Wilson Maske.

Um exemplo bem claro disso está no filme Doutor Estranho, também do Marvel Studios. Nos quadrinhos, o Mago Supremo é levado por monges tibetanos até o Ancião, que vai ensinar todos os segredos da arte mística. Já na versão para cinema, não há menção ao Tibete e o personagem de Benedict Cumberbatch é treinado por uma Anciã muito mais andrógina do que a figura oriental das HQs. E embora o diretor Scott Derrickson tenha dito, à época, que a ideia era evitar estereótipos asiáticos, os roteiristas afirmaram que a ideia era evitar problemas com a China por causa da disputa que o país tem na região com grupos que buscam a independência do Tibete. Assim, para não contrariar o governo de Pequim que impedisse a estreia, essa referência foi suprimida e o longa arrecadou US$ 109 milhões por lá.

Outra influência — e, desta vez, mais direta — sobre Hollywood está na aquisição de estúdios por parte de empresas chinesas. A Legendary Entertainment, responsável por filmes como o recente Godzilla vs. Kong e o vindouro Duna, é o maior exemplo disso. A produtora foi adquirida em 2016 pelo Wanda Group por US$ 3,5 bilhões.

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De acordo com o professor da PUCPR, esse é um movimento cada vez mais comum dentro do soft power da China não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. “O governo chinês passou a financiar empresários com capital do governo para que eles fossem comprando empresas fora, indo além de só fazer as suas — e o cinema de Hollywood é apenas mais uma delas”, explica Maske. Entre as outras aquisições feitas por companhias chinesas também estão o Cirque du Soleil e a Riot Games, apenas para citar dois exemplos.

O que a China quer com isso?

Como dito, pensar nessa influência de um país sobre o restante do mundo soa como algo típico de um vilão do James Bond, mas é uma estratégia bastante comum dentro da política internacional. Como Wilson Maske explica, são movimentos feitos para atingir determinados objetivos. Mas, no caso chinês, quais seriam eles?

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Para o professor, isso está muito mais relacionado a uma construção de imagem para o mundo. “Eu interpreto isso como uma estratégia da China de encaminhar o mundo a uma visão positiva em relação a eles”, diz o especialista. “Em geral, a gente não sabe muito sobre eles porque o país é muito fechado. Então isso pode fazer parte de uma estratégia diplomática para construir uma imagem positiva do país”.

Em termos práticos, isso acontece em várias frentes. A primeira delas é diretamente econômica. Semelhante ao que vimos com o Japão e Coreia do Sul ao longo do tempo, em que a imagem de país tecnologicamente avançado fortaleceu marcas como Sony e a Samsung no cenário global, vemos uma expansão de marcas chinesas coincidindo com a maior presença do país no campo do entretenimento.

“De uma certa forma, uma marca chinesa com uma aceitação positiva de eficiência, modernidade e eficácia também é um grande soft power”, aponta Maske. “Uma empresa chinesa que coloca no mercado produtos bons vai trabalhar a favor dessa imagem de que aquilo que é produzido no país é de qualidade, fortalecendo a sua indústria”.

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Tanto que é interessante notar como o crescimento de marcas como Xiaomi e Huawei substituiu a velha imagem que muito se tinha há alguns anos de que a China era produtora de quinquilharia de baixa qualidade. Os aparelhos dessas empresas, impulsionados por plataformas como AliExpress e Shopee, mudaram o modo como a gente passou a enxergar a produção industrial chinesa e ficamos muito mais abertos a essas novidades. E o comercial da Shopee com Jackie Chan resume muito bem como tudo isso está interligado.

E é claro que isso é muito interessante para Pequim, porque estamos falando de bilhões de dólares em importação de produtos manufaturados e de alto valor agregado, o que é muito positivo para sua economia. Ao mesmo tempo, a boa receptividade também abre portas para novas oportunidades, como a discussão sobre o leilão do 5G em boa parte do mundo bem representa.

A Huawei é uma das principais fornecedoras da tecnologia pelo mundo e muitos governos ainda resistem em aceitar sua entrada na infraestrutura de comunicação. E é aí que a influência vinda pelo entretenimento pode se tornar bem-vinda. “Nas democracias, o público consome esses produtos e é influenciado por eles. E é esse mesmo público que influencia os seus governos”, descreve Maske. “Pela nossa forma de ver as coisas, a gente vai encaminhar o nosso voto e o nosso posicionamento político, o que vai refletir nesses representantes e nas decisões que eles vão tomar. Assim, uma visão positiva da China os beneficia e aumenta seu poder no cenário global”.