Crítica | Pantera Negra tem vida para mais de um universo
Por Sihan Felix | •
Antes de seguir adiante, cuidado! Esta crítica contém spoilers!
A importância do passado é exposta já nos primeiros segundos de filme. O que se vê é praticamente uma fictícia aula de história que se ergue respeitosamente, utilizando-se da realidade, de uma experiência de mundo real. Ao construir uma introdução de gênese que ecoará durante todo o filme – com ênfase nas revelações mais importantes –, o roteiro demonstra uma consideração imprescindível em meio à urgência por credibilidade dos fatos.
É assim que se constrói uma semi-antítese de uma situação real de um país africano. Quando se tornou regente da Etiópia, Haile Selassie (nascido Tafari Makonnen) tinha 24 anos de idade, tornando-se imperador anos depois, aos 38. Herdeiro de uma dinastia que possuía, tradicionalmente, o Rei Salomão e a Rainha de Sabá como originários, o então imperador ficou conhecido posteriormente como Rás Tafari: ‘Rás’ significando ‘cabeça’ na sua origem amárica (príncipe ou chefe em etíope) e ‘Tafari’ como sendo um nome pessoal que significa algo como ‘quem é respeitado ou temido’.
Haile Selassie tornou-se poderoso, avaliava o seu império como o mais apropriado para lutar contra as veias colonizadoras europeias. Acolheu tanto poder que não impôs respeito, mas medo. Quando criou a Organização da Unidade Africana (OUA), já aos 71 anos de idade, tinha tantos desamores e adversários que, de fato, já perdera o controle de sua nação. Morreu 12 anos depois, meses após ser derrubado por um golpe militar. A Etiópia, por sua vez, havia agravado a sua condição de país pobre, tornando-se um dos mais necessitados do planeta. Na sequência, na década de 1980, o país sofreu uma onda de miséria que resultaria na morte de milhões dos seus.
Os semigigantes, a realeza déspota e a primeira metáfora social
Wakanda não é assim. Por mais que seja citada pelo exterior como uma pobre nação de fazendeiros, há algo de inestimável no país que o mundo desconhece. A riqueza tecnológica exuberante é revelada sem demora, quando a nave da realeza paira sobre um prédio onde o jovem Zuri (Denzel Whitaker) ocupa-se como espião do rei T’Chaka (John Kani), em contraposição a N’Jobu (Sterling K. Brown). É nessa paragem aérea que Pantera Negra revela a sua camada de complexidade mais interessante: não há distanciamento entre mocinhos e vilões apenas.
Assim como Haile Selassie, o rei T’Chaka detinha o poder e, por sua vez, o poder pode ser implacável. Enquanto N’Jobu pergunta se seu rei permaneceria contra ele (seu irmão) e o rei não hesita em matá-lo para defender Zuri, do lado de fora crianças que jogam basquete em uma quadra pública extasiam-se com a visão da nave que se deixa aparecer através das nuvens. O distanciamento, assim, acontece internamente a princípio, com a realeza comprovando seu poder e os súditos enxergando aquele mundo muito além do seu alcance. A metáfora justamente com o basquete é certeira, visto que é um dos esportes com a média de altura mais elevada e que, dessa forma, pode sugerir que nem mesmo adultos semigigantes podem alcançar a realeza déspota se permanecem excluídos. Pior: permanecem sem oportunidade por nem mesmo conhecerem o que está acima, onde a única possibilidade de voar é durante os breves segundos do pulo para uma enterrada – e somente quando adultos.
Saltando para os dias atuais, Wakanda permanece a mesma. Com o rei T’Chaka morto em um atentado, o peso do reinado cai sobre os ombros de T’Challa (Chadwick Boseman), o herdeiro direto. É então que conhecemos o Pantera Negra que irá ser explorado nas duas horas seguintes. Construindo sua personagem em cima de uma linha humilde, Boseman demonstra ser a personalidade essencial que faltava para o universo cinematográfico ao qual pertence. Carismático, o ator entende que, apesar do título do filme, quem rege a produção é o tom político e inclusivo.
O ilusório protagonismo titular e as mulheres de Wakanda
Por outro lado, nada está preso a qualquer gratuidade. Tudo é orgânico, a começar pela crítica ao momento mundial atual, o crescimento do conservadorismo, as tensões entre potências militares e, especialmente, a conscientização das atitudes racistas, sexistas e segregacionistas que se cometem mesmo sem querer – ou querendo por falta de discernimento. É, aqui, que Pantera Negra faz história: ao doar um ilusório protagonismo titular ao herói, o diretor e corroteirista Ryan Coogler constrói um mundo de identificação negro e com as mulheres, enfim, com papéis naturalmente eficientes. Assim, não há uma atriz que esteja ali para cobrir alguma cota de beldade da produção – por mais que sejam lindíssimas. A verdade é que elas jamais dependem das suas belezas para alcançar os seus objetivos.
Enquanto Okoye (Danai Gurira) destaca-se como a general do exército de Wakanda (exército composto somente de mulheres carecas, por sinal), desfazendo-se, inclusive, de uma peruca (sendo o cabelo liso desta um símbolo de beleza que precisa ser ultrapassado) para poder exercer bem a sua função em determinada missão, Shuri (Letitia Wright) – irmã de T’Challa – faz perceber o quanto um Jarvis está superado lá em outro continente e o quanto um Tony Stark, coitado, pode aprender com sua genialidade tecnológica. Lupita N’yongo, que interpreta Nakia, é a espiã mais eficiente e perigosa de Wakanda e ainda detém o poder de travar literalmente o rei em meio a uma, digamos, comissão diplomática. Soma-se a essas mulheres fantásticas o poder da Rainha-Mãe Ramonda (Angela Bassett), predecessora da coragem do Pantera Negra, além de veterana sacerdotisa.
A aceleração e o tropeço na cachoeira
Até então o roteiro e a direção pareciam caminhar lado a lado amigavelmente. Sequência a sequência sem tropeços. Michael B. Jordan surgira em um museu como Erik Killmonger para roubar um artefato feito do metal vibranium e, com isso, um pequeno monólogo crível e real sobre como a especialista daquele lugar colocara os seguranças para o observar. Mas é Erik (não Jordan – que está incrível no papel) que traz ao filme seu maior tropeço. A partir de sua aparição, o filme acelera. Tudo passa a mover-se para que T’Challa seja destituído do trono e, claro, Erik tome o seu lugar. Essa velocidade desencadeia diversas sequências de ação que culminam na luta mais bem coreografada e, também, com o desfecho mais anticlimático: T’Challa versus Erik na luta pelo trono de Wakanda.
O problema, em contrapartida, não é a previsibilidade desse fato – o que é aguardado e bem-vindo muitas vezes. Mas falta tensão na direção de Coogler. Falta o medo que os personagens sentem transpassando para fora da tela. Ao se entregar à ação despreocupada e com um desfecho ingênuo, Pantera Negra transformou-se momentaneamente de uma corajosa produção em uma obra frágil. A menos que fosse possível acreditar que T’Challa morrera e não voltaria após ser derrotado (ao menos não nesse filme originário), toda a construção de sua derrocada surge como um recheio insosso.
Aliás, o esforço de Michael B. Jordan é fantástico para dar credibilidade à sua personagem, visto que praticamente tudo que a cerca parece estar apoiado em uma fina ponte de vidro não-temperado. Da já dita acelerada construção à associação com W'Kabi (Daniel Kaluuya) – que, se a um momento torce passionalmente pelo rei, rebela-se motivado de forma rala pela não captura de Ulysses Klaue (Andy Serkis) pelo Pantera Negra e, em seguida, por ver Erik trazendo o vilão embrulhado.
Klaue, no que lhe diz respeito, é um vilão loucamente crível. Se suas atitudes são anárquicas e organizadas ao mesmo tempo e seu pretexto põe em cheque a bondade do trono de Wakanda – dimensionando ainda mais aquele macrocosmo –, é Andy Serkis que se prova um coringa, um ator que pode definitivamente ir muito além de personagens baseados na captura de movimentos. Seu ar insano remete instintivamente ao vilão mais icônico do universo paralelo da concorrência imediata, a mesma que ecoa entre os fãs mais partidários. É insana, portanto, a sua despedida precoce e curioso o sentimento de triste reprovação quando da sua morte.
O retorno dos semigigantes e o rei que enxerga a metalinguagem
Enquanto os aspectos técnicos parecem estar em segundo plano – e merecem méritos de qualquer forma –, a verdade é que Pantera Negra tem em sua temática o maior dos trunfos. Sem levar em conta a necessária e óbvia inclusão (apenas três atores brancos têm falas durante o filme), o filme levanta questionamentos que geralmente passam longe ou são tratados de forma irrelevante nos blockbusters.
Parecendo sair de um universo paralelo ao qual pretende se encaixar, o filme tem vida própria. Muito se deve ao roteiro; muito se deve à trilha sonora de Ludwig Göransson e às músicas de Kendrick Lamar, que acompanham cena a cena como se tivessem nascido ali – destaque para a utilização de uma instrumentação típica tribal nas cenas de duelos; muito se deve à criação de um figurino típico e futurista ao mesmo tempo; muito se deve às atuações e, consequentemente, à direção de atores de Ryan Coogler. A verdade é que a equipe parece afinada, imersa e disposta a lançar um filme de herói diferente do que já fora produzido.
Pantera Negra, assim, é um filme diferente de fato. Dissocia-se dos seus iguais tanto quanto Wakanda dissocia-se da África atual. Se o equilíbrio emoção-razão do herói pode dar aos seus futuros parceiros uma estabilização a ponto de o tornar o Rás Tafari da equipe, é cedo para dizer. Mas, com certeza, crianças reais que jogam basquete em uma quadra pública de periferia (e todas as demais que se veem nessa metáfora) podem começar a olhar para cima e ver uma identificação. Um rei, um herói, alguém que pisará na mesma quadra que elas, no mesmo chão, após pousar sua nave ali, longe das nuvens, tornando tudo mais acessível.
É a tentativa ingênua de unir todos os povos, por mais que sejam discordantes. É a força para usar o poder que se detém e buscar suplantar qualquer onda de miséria. É a crença em um deus ao qual qualquer um pode perguntar “quem é você?” e ele sorrir, enfim, antes de responder. É fazer crer que aquele sorriso é a confiança de um herói que fará o possível e o impossível para que não haja mais nenhuma onda de miséria genocida. É, por assim dizer, a confiança de um ator que sabe o poder que a sua personagem passa a ter no mundo real. É a mais bonita finalização metalinguística nos universos dos fantasiados.