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Já existia câncer na Idade Média?

Por| Editado por Luciana Zaramela | 27 de Novembro de 2022 às 08h00

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James le Palmer/Domínio Público
James le Palmer/Domínio Público

O câncer é uma doença, em muitos aspectos, moderna: não ouvimos falar de praticamente nenhuma figura histórica que tenha sofrido da patologia, e casos famosos de pessoas que padeceram dela são todos contemporâneos. Com isso, é natural que se pergunte: houve câncer na idade média, na idade antiga, em qualquer época anterior da humanidade?

A resposta curta é sim — mas há muito a considerar para uma resposta mais longa. O oncologista Siddharta Mukherjee escreveu, em 2010, um livro intitulado O Imperador de Todos os Males: Uma biografia do câncer, onde discorre, entre outras coisas, sobre a misteriosa trajetória da doença, que demorou muito para ser percebida e, inclusive, nomeada.

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O câncer pela história

Há, na verdade, pouca "história" registrada do câncer em si: a citação mais antiga — embora fosse uma condição ainda sem nome — data de cerca de 2500 a.C., quando Imhotep, um polímata egípcio da corte do faraó Djoser que foi de pioneiro em construção de pirâmides a astrônomo e médico, descreveu um possível câncer de mama. Segundo ele, era uma massa saliente e fria no peito, um tumor duro que se espalhava. Ao falar de tratamento, ele é enfático: "não existe".

Após isso, vemos apenas citações esparsas de doenças que se parecem com câncer: só 2.000 anos depois desse relato, inclusive, é que aparece algo semelhante na história, uma descrição que lembra muito um câncer de mama inflamatório na rainha Atossa, da Pérsia, filha de Ciro. Mesmo assim, há chances de que fosse um abcesso, úlcera ou outra condição.

É apenas por volta de 400 a.C. que a doença ganha nome, com um dos precursores da medicina, Hipócrates. Ao estudar um tipo de tumor, ele notou um tipo específico que inchava os vasos sanguíneos em torno da intumescência, parecendo um caranguejo. Por isso, chamou a patologia de karkinos, palavra grega para o animal, que virou cancrum e cancer em latim, dando origem aos termos que atualmente utilizamos.

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A oncologia também deriva daí, já que onkos era palavra que descrevia os tumores, significando "fardo", "massa" ou "carga", algo que o paciente carregava consigo. É claro, os cânceres descritos pelo grego se limitavam a grandes e evidentes tumores: não havia conceito de célula e nem maneira de compreender as suas falhas, que hoje sabemos dar origem ao câncer. Mesmo assim, já era um começo.

Se por um lado os relatos são esparsos, as evidências físicas da doença são mais comuns e passíveis de análise nos dias de hoje. Alguns tumores, como os ósseos, ficam preservados junto à mumificação dos corpos. Quando o tecido maligno em si não é preservado, marcas dele no corpo acabam perdurando, como buracos nos ossos gerados por pele apresentando metástase ou câncer de mama.

Um exemplo é uma múmia de mil anos (que teria morrido aos 35), encontrada no deserto do Atacama, que preservou um osteossarcoma no antebraço esquerdo. Em vida, ele teria rompido a pele da mulher que o carregou, causando dores inimagináveis. Um caso mais antigo é o de uma múmia de 2 mil anos encontrada nas catacumbas de Alexandria, que teve a bacia invadida por um tumor.

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A incidência mais velha de câncer, no entanto, vem de um maxilar humano de 2 milhões de anos atrás. Nele, há sinais de um linfoma especialmente raro, endêmico ao sul da África. Se isso for mesmo a marca de um tumor maligno, então a doença é uma das mais antigas a aparecer em espécimes humanos — talvez a mais antiga de todas!

Por que havia menos câncer?

Mesmo assim, o câncer tem aparições limitadas na história humana. Isso se dá pela grande associação da doença com a idade: quanto mais velhos ficamos, maiores as chances de desenvolvê-la. Uma mulher de 30 anos, por exemplo, tem chances de 1 em 400 de desenvolver câncer de mama. Já uma de 70 tem proporção de 1 para 9. Antigamente, simplesmente não se vivia o bastante para que o câncer aparecesse.

Era comum morrer de mil outras condições antes do câncer surgir, fossem elas varíola, lepra, cólera ou tuberculose, patologias infinitamente mais comuns. Às vezes, poderia uma pessoa passar anos convivendo com tumores, mas os escondendo, de certa forma, no corpo doente. Outro problema era a detecção, pois como não era uma doença muito conhecida, ela acabava confundida com outras — mesmo quando ocorria em pessoas mais jovens. Uma criança leucêmica nos anos 1800, por exemplo, tinha a morte definida como abcesso ou infecção.

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O mundo moderno e civilizado não só contribui para elevar as causas de câncer (poluição, alimentos ultraprocessados, exposição a radiação e produtos químicos, entre tantos outros fatores), mas o torna mais comum, agora que temos expectativas de vida cada vez mais longevas e métodos de detecção muito melhores. Biópsias e exames de raios-x revelam cânceres com eficiência e antecedência, o que pode dar a impressão de que os números aumentaram muito. É um paradoxo, já que, antes de metodologias como essas, não havia como descobrir a incidência da patologia.

Atualmente, temos conseguido também evitar melhor a doença. Até o século XIX, o câncer de estômago era muito comum, provocado, em partes, por reagentes e conservantes cancerígenos usados no preparo de alimentos como picles, além de bactérias infecciosas endêmicas. Com a refrigeração moderna, hábitos de higiene e medicina, os números caíram muito.

Ainda há um longo caminho pela frente, porque ainda enfrentamos os desafios do câncer de pulmão, que aumentou de incidência junto à popularização do cigarro, e, com a expectativa de vida subindo, a tendência é aumentar os números da doença. Nos anos 1940, a tuberculose foi deixada para trás como doença que mais causava mortes nos Estados Unidos, com o câncer ganhando espaço.

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Esperemos que a tendência de tratamentos melhores também aumente — há promessas de que uma vacina contra variedades da doença chegue até 2030 — e deixe, um dia, o câncer como uma doença do passado.

Fonte: O Imperador de Todos os Males: Uma biografia do câncer