Crítica | Army of the Dead: Invasão em Las Vegas é tudo que deveria ser
Por Laísa Trojaike • Editado por Jones Oliveira |
Nunca mergulhei tanto em um filme antes de escrever uma crítica, isso porque nunca tinha tido a oportunidade de assistir aos primeiros 15 minutos do filme antes de ter acesso ao conteúdo completo. O amplo contato com todo o material do filme acabou completamente com uma antiga ideia que eu alimentava, um hábito de execução bastante capenga na minha vida: exterminar qualquer expectativa. Embora o exercício seja válido, acalmar o hype não pode ser confundido com aniquilar a expectativa. Não podemos achar que um filme deveria ser o que esperávamos, mas temos o direito de imaginar que de outra forma ficaria melhor, por exemplo.
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Mais além, aniquilar expectativas para ter um suposto contato mais puro com o cinema é ignorar uma série de conhecimentos de buscamos, um esforço de estudo (mesmo quando achamos que estamos apenas lendo besteira). Se você acompanha a filmografia de Zack Snyder, você sabe que este não é um filme de zumbi como a ação com ares realistas Guerra Mundial Z, como o falso documentário [REC] ou como o dramão indie Maggie. Existem expectativas e elas se cumprem: câmera lenta, ação, diversão, referências, respeito às raízes e marca estilística. É um filme de Zack Snyder. E essa expectativa não é frustrada. Se você gosta do estilo dele ou não, isso não é culpa do diretor.
Atenção! A partir daqui, as críticas podem conter spoiler.
Expectativa
Os 15 minutos iniciais que foram divulgados funcionam muito bem. Entendemos o título, porque os zumbis surgem a partir de uma missão militar que dá errado, com o primeiro zumbi (cuja origem na Área 51 não é explicada em detalhes) transformando os militares na sua primeira horda de ataque a Las Vegas — "Army of the Dead", poderia ser traduzido como "Exército dos Mortos”, o que ainda corrobora a divulgação de que os zumbis eram mais inteligentes e organizados. Outra expectativa confirmada.
O título evocava também a referência a George A. Romero, da icônica Trilogia dos Mortos. Esta, no entanto, não é primeira vez do diretor no universo dessa referência. Snyder é o diretor do remake de Madrugada dos Mortos, atualização roteirizada por James Gunn (Guardiões da Galáxia). Na época, os fãs mais inflexíveis de Romero não aprovaram muito o filme, sob o engessado discurso de que o original é melhor, porque é o original. Army of the Dead, no entanto, não tem o mesmo tipo de reciclagem de Madrugada dos Mortos e mostra a maturidade de Snyder como diretor do gênero.
Com seus zumbis inteligentes, Romero não é o ponto fora da curva no gênero, mas representa uma era que é cada vez mais esquecida após anos de The Walking Dead ditando qual era o zumbi da moda. Quando Snyder e Gunn refazem Madrugada dos Mortos, eles imprimem a sua ação divertida na trama, característica que viria a ser uma das marcas de ambos os diretores. Enquanto aquele filme foi acusado de macular a obra de Romero (quando na verdade mantinha a sua essência), o novo filme pode ser bem estranho para quem não está acostumado a questionar a normalidade das coisas. Em Army of the Dead, você torce pelo zumbi também.
Esse é o momento em que a autocrítica pode surgir como forma de controlar as expectativas que possam estar intervindo demais na experiência: o que queremos de Army of the Dead pode não ter nada a ver com as intenções de Zack Snyder, fã de longa data do gênero e que não esconde suas raízes. Para quem buscava o Snyder político por trás das suas representações do Batman e do Superman, talvez encontre estas ideias estampadas em Army of the Dead, em todos os lugares, desde a escolha de personagens e ambientação da história até comentários bastante explícitos sobre quem merece ser usado como boi de piranha.
Neo-zumbizeira
A revolução não acontece sempre no que é mais explícito. Army of the Dead não é um filme que parece vanguardista, quebrando todas as regras e entregando algo novo, como também não é a expressão máxima da essência de um gênero, não se estabelecendo como novo paradigma de zumbis. Mas isso não faz de Army of the Dead um filme ruim. Precisamos parar de exigir que os artistas inventem a roda a cada nova obra que lançam.
Zack Snyder não inventa a roda, mas faz a sua roda e ela funciona muito bem para o que ele aparentemente quer. É uma roda como outra qualquer, porque executa bem sua função (é um filme de entretenimento e entretém), mas é única, porque é estilizada e fala muito sobre quem a fez: é um filme de Zack Snyder e reflete opiniões pessoais que só poderão ser detectadas por conexões que pressupõem certos conhecimentos, como os eventos pessoais da vida do diretor ou o entendimento das suas referências.
Sem isso, o filme pode parecer mais raso, um risco que sempre corremos, porque é impossível sabermos de tudo, mas isso não significa que a essência não possa ser captada pelos espectadores: basta focar um pouco menos na pancadaria e dar valor para os personagens, diálogos e detalhes mais discretos da produção. O que Snyder faz é atualizar as críticas de Romero, porque de lá para cá, o capitalismo não foi reduzido, mas sim expandido.
Enquanto em Romero um shopping dava conta da crítica à sociedade de consumo, em Army of the Dead a ambientação em Las Vegas dá o tom de uma crítica a uma sociedade do excesso: o abismo social cresceu desde os filmes de Romero. Do outro lado, o legado de Terra dos Mortos: os zumbis não pediram para existir, mas, já que existem, só querem viver e cuidar dos seus. A morte da Rainha Zumbi é bastante emblemática nesse sentido: não havia motivo nenhum para que ela morresse, justificando (muito) a fúria de Zeus, o zumbi alfa.
Snyder mistura também elementos de outras mitologias que recorrem ao conceito de zumbi e consegue criar um zumbi autoral que faz todo sentido. A mordida de transformação é bastante ritual e a organização lembra a hierarquia dos vampiros: existe uma “transformação completa”, que transforma humanos em zumbis inteligentes (chamados de alfas) e existe outra transformação, que cria os zumbis mais lentos e que apodrecem mais rapidamente. Além disso, o próprio Zeus tem um quê de Frankenstein, o que torna seu romance ainda mais bonito e a morte da zumbi ainda mais triste.
Com tudo isso, Snyder adiciona mais camadas e atualiza a complexidade da crítica proposta por Romero através de seus zumbis. É difícil admitir que Zack Snyder é um grande diretor, porque ele soa popular demais para isso. Se você concorda com essa frase, no entanto, talvez seja o caso de refletirmos pessoalmente sobre o preconceito implícito nela: Snyder precisa preencher os checklists dos cinéfilos para ser um diretor incrível? Não basta ele ser suficiente sendo ele mesmo? Estamos aqui para entender os zumbis, não para matá-los sem sequer saber o que são.
Os mercenários
Publicamos aqui no Canaltech as primeiras impressões da crítica, que endossaram uma campanha pelo personagem Dieter, Matthias Schweighöfer. Certamente, ele se destaca entre o elenco de Army of the Dead, mas me pergunto se é um personagem forte o suficiente para que o próximo filme, o anunciado Army of the Thives, seja focado nele, já que sua presença funciona também pela química com os demais personagens, sobretudo com Vanderohe. Este personagem, inclusive, rende o que parece ser a melhor atuação da carreira de Omari Hardwick até então, sobretudo após ver seu desempenho questionável em Power e Spell.
Dieter é um bom alívio cômico e traz uma representatividade coringa para o grupo, mas o personagem de Dave Bautista, o lider Scott Ward, tem um arco muito mais interessante e digno de spin-off, por exemplo. É incrível também ver Bautista tendo uma atuação muito carismática nas mãos de um diretor que sofre tanto preconceito. Bautista passou por produções como Blade Runner 2049 e 007 Contra Spectre, obras incríveis, mas teve seus personagens mais marcantes e amáveis nas mãos de Snyder e Gunn (com quem interpretou Drax).
Os demais personagens também são ótimos e a enorme divulgação não deu conta de estragar a experiência, como fazem as divulgações de liberam todos os seus melhores momentos no trailer. Nem os 15 minutos disponíveis no YouTube são capazes de tornar Army of the Dead previsível. Todos os mercenários morrem. Exceto “a filha”. O que pode ser uma metáfora bastante dolorida para o diretor.
Com tanta morte, Snyder garante o que os fãs mais queriam com o filme: violência, tripas, zumbis, mortes absurdas e muito sangue. Tem tudo isso. E em meio a todas essas referências e atualização do universo zumbi (com direito a nova arma icônica arma para o gênero), Snyder consegue brincar com o maniqueísmo dos filmes de ação. Nos filmes de ação, costuma-se mostrar logo de cara quem são os vilões e os mocinhos. E quase sempre torcemos pelos mocinhos. Se estamos torcendo pelos vilões, isso também pode ter um enorme significado.
Em Army of the Dead, podemos antecipar que Tanaka (Hiroyuki Sanada) é o vilão e que seu infiltrado irá trair a equipe. No entanto, imaginamos que os zumbis também são vilões, ou pelo menos seres que merecem morrer. O que é quebrado com genialidade pelo diretor. E não é exagero algum chamar isso de genialidade. Tampouco é um mau uso do termo. Em Army of the Dead, os vilões são aqueles que procuram prazer próprio, o que inclui enriquecimento, à custa do sofrimento alheio.
Army of the Dead é daqueles filmes que dizem mais sobre nós do que sobre si mesmos, porque quando refletimos sobre o maniqueísmo final proposto pelo filme, o que pensamos sobre certos personagens nos dá dicas importantes sobre de que lado da batalha nós estamos.
Army of the Dead: Invasão em Las Vegas está disponível para todos os assinantes da Netflix a partir de sexta-feira, dia 21 de maio.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech