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Crítica | Blade Runner 2049 parece dizer que nunca fomos humanos

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Warner Bros. Entertainment
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Por mais que não tenha sido um sucesso de bilheteria na época do seu lançamento, Blade Runner: O Caçador de Andróides (de Ridley Scott, 1982) acabou se tornando uma obra cultuada. Era esperado, então, que a continuação tanto geraria expectativa quanto criaria um hype gigante ao seu redor.

E foi há três anos, em 2017, que Blade Runner 2049 retornou aos personagens daquele universo sombrio, cyberpunk — ou biopunk para ser mais específico —, com o peso de dar continuidade a um dos maiores representantes da ficção científica para cinema. A sci-fi adaptada da obra de Philip K. Dick dava, ali no início da década de 1980, um passo à frente em relação à história do cinema. E Denis Villeneuve, que havia provado seu valor dentro do gênero com A Chegada um ano antes (em 2016), era o escolhido para pilotar essa nave do tamanho do mundo.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre Blade Runner: O Caçador de Andróides e Blade Runner 2049!

Preparados para a existência

Um dos tantos pontos que geralmente estão presentes nas obras-primas é a possibilidade de discuti-la posteriormente, a partir, por exemplo, de um final aberto. Ficam as questões, as suposições, mas as certezas são eliminadas. É, na prática, o que acontece com o filme de Scott. Não se sabe o futuro dos replicantes após a morte do Dr. Tyrell (Joe Turkel), não se sabe o futuro do planeta... e nem mesmo o que aconteceria com o protagonista, Deckard (Harrison Ford).

É precisamente a partir desse princípio que Blade Runner 2049 parece ser encarado pelo roteiro de Hampton Fancher (do original) e Michael Green (de Logan). As respostas inexistentes de antes chegam, mas elas carregam novas perguntas. Enquanto há quase 40 anos havia uma reflexão corajosa sobre as emoções como características fundamentais do ser humano (e de ser — verbo — humano), o monólogo final de Roy Batty (Rutger Hauer) abre possibilidades ao mesmo tempo que é um clímax:

"É uma experiência viver com medo, certo? Isso é o que significa ser um escravo. [...] Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. É hora de morrer."

Afinal, Roy, ao debater sobre o sentido da existência e ao construir uma provável relação de medo para com a morte, estaria ultrapassando as barreiras de quem ele era de fato? A artificialidade poderia estar se redescobrindo? A vida estaria encontrando um meio? Seria medo da finitude por saber da sua data de expiração próxima? E, sendo medo, não seria uma sensação humana?

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A chuva, nesse sentido, tem papel fundamental para acrescentar complexidade interpretativa e gerar mais debates. Aliás, a pomba solta ao final poderia trazer não somente sentimentos para Roy. Seria ela (a pomba) a materialização da alma ou, ao menos, da piedade. Acontece que nem Roy e nem Rachael (Sean Young), também replicante, estavam preparados para a existência, assim como qualquer um de nós.

O elo é a vida

Blade Runner 2049 tenta trazer uma clareza narrativamente evolutiva no posicionamento de quem é e quem não é humano. O fator que rege é a questão biológica: ser filho de alguém é a chave. Os replicantes, portanto, são produtos a serem utilizados à vontade, por mais que possam ter uma perfeição praticamente inalcançável e por mais que sejam mais capazes.

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Situada 30 anos após os eventos do filme de 1982, a nova história mantém uma questão base. Assim como o Dr. Tyrell, seu substituto narrativo, Niander Wallace (Jared Leto), persegue uma espécie de sonho pós-humano, a criação de uma vida livre e ilimitada. Mas brincar de deus parece lhe ser impossível se a artificialidade dos replicantes não possui condições de gerar naturalmente outra vida.

E os abençoou, dizendo: "Tenham muitos e muitos filhos; espalhem-se por toda a terra e a dominem." — Gênesis 1:28

A manipulação de regras biológicas, portanto, é o coração de Blade Runner 2049. A obsessão de Wallace é tanta que, para tal, ele precisaria, de acordo com suas próprias palavras, "invadir o Éden e tomá-lo de volta", em clara referência bíblica à criação da humanidade. Por essa perspectiva, o filme acaba por ser uma espécie de A Árvore da Vida (de Terrence Malick, 2011) biopunk. Por mais que Villeneuve seja mais direto e sua narrativa seja mais objetiva e menos sensorial do que a de Malick, existe um elo entre as perspectivas. Este é, justamente, a vida.

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Pós-humanista

Em contrapartida à vida, está a morte. Talvez seja a verdade mais incontestável da existência. A partir desse ponto, Blade Runner 2049 demonstra como os humanos começam a deixar de ser os criadores das máquinas. E não é a gravidez constatada nos restos de uma replicante, mas um sepultamento que pode trazer tudo à tona. Um dos primeiros sinais de civilização é a valorização que é dada a uma vida que parte e Villeneuve parece compreender o lugar da morte: que ela existe para que a vida faça falta.

Wallace encarna seu ar profético à medida que seu tempo de filme aumenta. Seu desenvolvimento, assim, acaba por ser algo que cria uma unidade essencial ao trabalho da direção. "Uma criança nasceu para nós.", ele declara, constatando um milagre que, mesmo que fuja de suas mãos, como a evolução proposta por Darwin foge das mãos de uma ser-no-controle, transforma-se em uma ideia, de fato, pós-humanista.

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Isso porque, enquanto ainda existe a noção de controle (ou, pelo menos, a suposição desse domínio), tudo depende do uso que a humanidade dá ao que tem em mãos, mais especificamente o que se faz com a tecnologia. Porque é ao ultrapassar o limite do que se pode administrar, ultrapassa-se, igualmente, o valor da vida como é conhecida.

Humanos em essência

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Deckard, finalmente, é a ligação entre Blade Runner: O Caçador de Andróides e Blade Runner 2049. E isso é simbólico não somente pela participação de Ford, mas por ser a vida envelhecida. O passado da humanidade (simbolizado naquele homem) combatendo o futuro, a princípio, artificial. Mas as questões retornam: O que é artificial na existência? O que faz a vida ser um milagre?

O filme de 2017, a partir de K (Ryan Gosling), parece buscar mais e mais dúvidas ao mesmo tempo em que, positivamente, finge responder questões realizadas em 1982 (e antes). Pode ser interessante imaginar qual é a parte da humanidade dos replicantes que os torna humanos (e até mais humanos) e os porquês de não termos tal parte.

Blade Runner 2049, no final das contas, deve estar debatendo tudo o que construímos enquanto seres pensantes e emocionais e o quanto, após tanta construção civilizatória, perdemos no caminho. Villeneuve consegue impor o quão desumana pode ser a humanidade e isso acaba humanizando os replicantes... como se fosse tão difícil ser o que eles se tornaram.

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A verdade é que os replicantes, enfim, não possuem uma humanidade diferente da já conhecida e, por isso, nada acrescentam. Eles se transformaram, somente, naquilo que, ao longo do tempo, deixamos de ser. E com deixamos de ser leia-se que nunca conseguimos ser por motivos de que nunca fomos humanos em essência.

Blade Runner 2049 entra para o catálogo da Netflix nesta quinta-feira, 1º de outubro de 2020.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.