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Crítica | Spell ou sobre a importância do lugar de fala

Por| 11 de Novembro de 2020 às 15h30

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Paramount Pictures
Paramount Pictures

Tenho falado com frequência de uma corrente nova do terror, preocupada com questões raciais e que tem sido a origem de filmes como Caixa Preta e O Que Ficou Para Trás, além de ser um argumento lindamente citado em A Babá: Rainha da Morte: vivemos uma nova era do cinema de terror, pós-Jordan Peele, ou seja, filmes profundamente inspirados por Corra! e Nós. Os críticos, nesses casos, precisam ficar atentos ao seu lugar de fala, que pode legitimar ou deslegitimar seu discurso.

Ao assistir Spell, no entanto, um sentimento de que algo estava muito errado por ali chamou a minha atenção. O filme é completamente permeado por discussões raciais que parecem uma versão mais raiz de Um Maluco no Pedaço, mas com uma qualidade muito inferior à série. É estranho ainda como o discurso de retorno às raízes se torna uma nova demonização das religiões de matrizes africanas, que deságua na contradição do que o filme tentou nos mostrar nos primeiros diálogos. Há pontos positivos em Spell, claro, mas sua maior mácula é o próprio roteiro.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Pode isso?

Não costumo descrever os filmes quando escrevo, mas nesse caso julgo necessário pela esperança de que algum leitor diga que estou equivocada e que, na verdade, o filme não comete esse erro, o da apropriação de um lugar de fala. A história que absorvi foi a de um homem negro, que construiu sua vida muito longe dos costumes do interior e, mais especificamente, das suas raízes, que envolvem um culto de matriz africana não especificado.

Quando ele precisa retornar ao local após a morte do seu pai, ele e sua família entram em contato com essas pessoas novamente. O que inicialmente parece acender uma discussão sobre raízes ou pelo menos sobre cidade versus campo, na verdade, torna-se um Coração Satânico com Louca Obsessão e Massacre da Serra Elétrica que não atinge a qualidade de nenhum desses clássicos do terror.

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O protagonista, arrogante com suas origens desde o princípio (o que tenta ser justificado pela inserção de um trauma de infância que não é explorado), é conduzido por uma história em que ele é uma completa vítima de criaturas cuja origem não é explicada, mas nada mais fazem que estigmatizar as práticas do vodu, que não é uma religião necessariamente maligna. O filme até consegue entrar nessa questão ao mostrar como eles são capazes de lidar com a vida, trazendo de volta até mesmo a visão de um homem sem olhos (inclusive, parece que o roteirista também se inspirou em Os Olhos Do Gato, uma co-criação Jodorowsky-Moebius), mas é bastante superficial nesse quesito.

Acontece que, em momento algum, o roteiro faz alguma reflexão significativa acerca dessas questões. É o próprio roteiro que insere as questões raciais e sociais no contexto da trama e é o próprio roteiro que se isenta de levar essas discussões para algum lugar. No final de tudo, é apenas um filme sobre um homem rico que retorna ao lugar onde nasceu somente para reforçar seus preconceitos (mas não sem antes usar a magia que ele não reconhece para se livrar das ameaças).

Spell parece ser mais um filme pós-Peele com seu terror impregnado de discussões sociais e raciais, completamente interpretado por um elenco negro (com destaque para a maravilhosa Loretta Devine, que merecia um roteiro e uma direção que revelasse sua real potência). O que acontece, no entanto, é uma isenção da discussão que afasta o filme dessa corrente iniciada por Corra!.

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O filme termina. Começam os créditos. Kurt Wimmer é o roteirista. Eis a importância do lugar de fala para a criação de uma obra socialmente pertinente e responsável.

Boogity Boogity

Apesar de eu não ter encontrado nenhuma relação entre a palavra “boogity” (uma onomatopeia) com os bonecos vudu, os boogities são um dos pontos altos do filme como parte de uma direção de arte que é, ao contrário do roteiro, bastante boa. A atmosfera construída é interessante e curiosa o suficiente para segurar o espectador até o final, sobretudo os fãs de terror que detectam com empatia os defeitos da direção.

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A fotografia e a colorização, no entanto, não contribuem muito com essa estética ao tentar alçar ares de blockbuster com os vibrantes contrastes de tons de laranja e azul. Assim, o filme perde o intimismo e parece algo muito maior do que realmente é, um filme de terror independente e de baixo orçamento.

Há também momentos interessantes de puro gore, como as sequências em que o protagonista tira e, depois, coloca de volta o enorme prego que tem no seu pé (outro elemento de Louca Obsessão, uma história sobre um homem que foi incapacitado de fugir e é obrigado a se submeter aos caprichos da mulher que o mantém em cativeiro). Além disso, é uma imagem de puro gozo para os fãs de terror a do homem que, com olhos de cabra no lugar onde antes ele tinha seus próprios olhos, nota o protagonista observando o ritual.

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Spell, apesar de alguns momentos memoráveis, soa como um filme desonesto. Uma história sobre assuntos dos quais o roteirista não tinha legitimidade alguma para falar sobre, resultando em um roteiro com intenções confusas e até mesmo nocivas. Essa consequência, no entanto, era esperada: com o sucesso de Corra!, é claro que surgiriam os discípulos, mas também aqueles filmes que claramente estão apenas pegando uma carona no hype.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.