Por que refrigerante sem gás — e outros absurdos — não combatem a COVID-19?
Por Fidel Forato • Editado por Luciana Zaramela |
Já pensou se inúmeras publicações nas redes sociais ou mensagens nos aplicativos de conversa começassem a defender a eficácia do refrigerante sem gás contra o coronavírus SARS-CoV-2? Ainda nesse universo (paralelo), o que aconteceria se, em uma segunda onda de compartilhamentos, fossem feitas recomendações sobre a ingestão de 350ml deste refrigerante por dia e que isso garantiria a imunização contra a COVID-19? E se seus familiares, amigos e influenciadores compartilhassem este tipo de conteúdo, você acreditaria?
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A distopia parece absurda, e realmente, é, mas não representa nenhuma novidade no mundo da divulgação científica. Boatos circulam há anos sobre curas milagrosas ou tratamentos mágicos contra doenças reais, como vemos tão recorrentemente na pandemia da COVID-19. Vale reforçar que, no Brasil, mais de 465 mil brasileiros morreram em decorrência da infecção, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Para entender como funciona o método de pesquisa sobre remédios, especialmente aqueles contra o coronavírus, e quais cuidados são necessários durante esse processo que envolve até Inteligência Artificial (IA), o Canaltech conversou com a pesquisadora Karen Lang, professora de Química Farmacêutica na Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares (UFJFGV).
P.S.: Adiantamos que, até onde conseguimos investigar, ninguém sugeriu o uso de refrigerante sem gás como método para a prevenção da COVID-19. O produto foi citado nesta matéria apenas para ilustrar como surgem as falácias e fake news.
Como começa a pesquisa de um novo remédio?
Existem algumas formas de começar a pesquisa para um novo medicamento, sendo que a estratégia mais atual é a de desenvolvimento racional de fármacos. Nesse caso, em primeiro lugar, deve-se definir um alvo para a ação do potencial medicamento e, depois, deve-se pensar em moléculas que consigam interagir com essa parte do agente infeccioso.
No processo de definição do alvo, pesquisadores investigam a estrutura tridimensional do agente e a sua composição de aminoácidos. "Normalmente, se conhece [previamente] um alvo associado com a determinada patologia que se quer estudar. Pensando na COVID-19, o alvo deve ser um receptor que seja importante para a penetração do vírus na célula ou uma enzima do vírus que seja relevante para a sua multiplicação", explica Lang.
Em seguida, o objetivo é identificar uma molécula que consiga inibir o alvo, através de estudos, muitas vezes computacionais — e a IA já integra esses processos. Nesse momento, "tenho a estrutura desse alvo e confronto esse alvo com um banco de dados de muitas moléculas, de milhares. Esse estudo de triagem virtual coloca essas moléculas em contato com esse alvo e, através de uma análise computacional, você consegue uma resposta: se essa substância tem a capacidade de se ligar àquele alvo determinado ou não", detalha a professora de Química Farmacêutica.
Dessa forma, é possível selecionar algumas moléculas de interesse para depois testá-las in vitro. Vale explicar que esse banco de moléculas pode ser de substâncias que já estão aprovadas ou que estão em fase clínica de desenvolvimento. "A vantagem nesses casos é que já se tem dados de segurança dessas moléculas, então, seria muito mais rápido aprovar essa molécula para que se torne um antiviral, por exemplo", conta Lang. Outra estratégia pode ser testar a atividade de uma molécula in vitro diretamente, sem passar pela triagem computacional. No entanto, essa opção é válida quando se tem algumas suposições sobre a sua eficácia.
Qual a diferença entre pesquisas in vitro e in vivo?
Na etapa de pesquisa in vitro, muitas substâncias são capazes de inativar um agente infeccioso. "Quando realizamos ensaios in vitro, o agente infeccioso está super vulnerável. Se agente pensar em uma atividade antibacteriana, vamos colocar substâncias diretamente com a bactéria, sem barreira nenhuma. Claro, precisa penetrar na bactéria, mas isso é muito mais fácil do que seria in vivo", ilustra a professora.
"No caso do vírus, é possível que se tenha um pouco mais de dificuldade, porque o vírus precisa de uma célula para se multiplicar, ou seja, ele precisa estar dentro da célula, e não fora. Isso reflete num aumento pequeno, mas considerável de complexidade para descobrir substâncias com atividade antiviral. A substância precisa transpassar a membrana da célula que está infectada e, assim, poderá chegar ao vírus. Depois, ainda vai precisar entrar no vírus para interagir", detalha Lang. Mesmo com esse maior grau de dificuldade para se testar uma molécula com atividade antiviral, o mecanismo é completamente diferente de uma atividade in vivo, já que ainda mais barreiras precisam ser ultrapassadas.
"Muitas substâncias podem ter atividade in vitro e não ter efeito nenhum in vivo, porque, no in vivo, vamos ter várias outras dificuldades para que essa substância consiga alcançar o microorganismo", destaca a pesquisadora. Inclusive, substâncias, que não têm absolutamente nada a ver, podem apresentar algum resultado no laboratório. Por outro lado, essa mesma substância “pode causar danos em alguns órgãos, porque, como ela está no organismo, ela não vai diretamente para o agente infeccioso, mas passará por diversos sistemas e órgãos, onde pode provocar malefícios", explica.
No primeiro momento do combate à COVID-19, por exemplo, "a ideia da cloroquina foi baseada nos mecanismos de ação do fármaco, que poderia ser interessante para atividade antiviral e, ao se testar, se observou uma atividade in vitro", explica a professora. No entanto, nos estudos em humanos, o antiparasitário não demonstrou atividade antiviral.
Caso do desinfetante contra o coronavírus
Se a ingestão de refrigerante sem gás foi uma provocação no começo do texto, há alguns meses, pessoas, de fato, sugeriram o uso de desinfetante para a proteção contra o coronavírus. A ideia é que como o produto era eficaz em um ambiente externo contra o agente infeccioso, de alguma forma, ele também poderia ser eficaz no organismo humano. Inclusive, o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a sugerir estudos sobre isso. No entanto, vale ressaltar que ingerir produto químico de limpeza é extremamente perigoso.
“No começo de uma doença, quando não se conhecia nada, é natural que muitas suposições apareçam, mas, a partir do momento que se começa a conhecer um pouco mais da patologia, essas hipóteses precisam ser desmitificadas", pontua a pesquisadora. Como não há respostas prontas, infelizmente, é preciso ter paciência e esperar que as comprovações científicas possam mostrar um benefício sobre aquela terapia e hipótese que está sendo levantada. Afinal, "tem coisas que são muito perigosas, como injetar desinfetante, que é um completo absurdo. Isso pode levar uma pessoa ao óbito, porque a substância é extremamente tóxica para o organismo, ainda mais se for injetada".
Mais questões sobre o desenvolvimento de um fármaco
Para entender: o processo de desenvolvimento completo de um novo fármaco é, em alguns aspectos, semelhante ao de uma vacina. Isso porque, além da fase in vitro, ocorrem testes em modelos animais (camundongos, ratos e coelhos), pesquisas clínicas (com fases 1, 2 e 3) e, por fim, ocorre o registro. Nesse percurso, milhares de substâncias são testadas, mas poucas demonstram eficácia e segurança necessárias.
Por que não temos profilaxia para infecções do coronavírus?
Quando se pensa na COVID-19, muitas pessoas esperam — e, às vezes, usam medicamentos — de forma erroneamente profilática, ou seja, para evitar que se contraia a infecção. "No caso de profilaxia de infecções virais, o que normalmente se consegue é o desenvolvimento de vacinas. Para vírus, o que temos de carro-chefe, de profilaxia, é a utilização de vacinas", explica Lang.
Como os vírus são literalmente minúsculos, é muito difícil desenvolver um medicamento para prevenção de infecções virais. Na maioria dos casos, "precisamos contar com o sistema imunológico [do próprio organismo] para a defesa", comenta a pesquisadora. O método mais simples para isso são os imunizantes, já que eles podem ensinar o sistema imunológico a se defender contra invasores, como é possível ver no caso da COVID-19. Por exemplo, a maioria das vacinas não impede, com 100% de eficácia, que as doenças se desenvolvam, mas podem impedir o agravamento dos casos e as complicações.
Por outro lado, pesquisadores já desenvolveram alguns medicamentos que impedem o agravamento de casos do coronavírus, como os coquetéis de anticorpos monoclonais, sendo que alguns já foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). São os casos do composto REGN-COV2 (casirivimabe e imdevimabe) e do composto da farmacêutica Eli Lilly (banlanivimabe e etesevimabe).