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Por que Ms. Marvel é o “novo Homem-Aranha” e a essência do legado Marvel

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Na semana que passou a plataforma de streaming Disney+ estreou sua mais nova atração ligada ao Universo Cinematográfico Marvel (MCU, na sigla em inglês). Ms. Marvel vem para agradar uma nova geração de fãs, com uma divertida história colegial, naquela mistura de heroísmo com Sessão da Tarde.

A atração vem sendo desenvolvida há anos e o chefão da Marvel Entertainment Kevin Feige fazia questão de levar o projeto como prioridade. Por que ele estava tão interessado em uma personagem tão recente e que para muitos pode não ter o apelo de heróis com padrões clássicos? Bem, Ms. Marvel representa um divisor de águas na Marvel Comics.

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A história dos bastidores de sua criação pode explicar por que ela pode ser considerada um “novo Homem-Aranha” e o que a transforma na catalisadora de mudanças que trazem algo que sempre foi muito encontrado na DC, mas nem sempre na Marvel: o legado.

Vem comigo que explico isso tudo e trago um recorte do que aquela época diz sobre o presente e o futuro da Marvel Comics e do MCU.

Queda e ascensão da Marvel

A Casa das Ideias aprendeu arduamente a se moldar constantemente, de uma forma dinâmica em sua cronologia, para evitar continuidade retroativa (aquela em que grandes eventos prometem mudanças profundas, mas que, depois da trama, tudo retorna ao que era antes); e para projetar o futuro, dedicando um espaço tão generoso para a nova geração de leitores quanto para os veteranos.

A pobreza criativa, fórmulas desgastadas, eventos caça-níqueis, sexualização excessiva da caracterização dos personagens, mortes “chocantes”, entre outras coisas, afastou os leitores, ainda mais os de uma geração que já crescia com a chegada da Internet e dos aparelhos celulares. Os anos 1990 quase registraram o fim da Marvel Comics.

O pedido de falência obrigou a editora a tomar medidas desesperadas, como vender boa parte dos direitos de adaptação de seus principais personagens para estúdios de Hollywood — daí o famigerado contrato vitalício que a Fox tinha com os X-Men e o Quarteto Fantástico, por exemplo; e o Homem-Aranha com a Sony.

A virada dos anos 2000 trouxe a sensação de um reinício, mas com uma reorganização que precisava de gente com ideias novas e um planejamento mais sólido. Nomes como Joe Quesada, Brian Michael Bendis e Mark Millar foram muito importantes para que a Marvel voltasse a olhar para o seu lado mais charmoso: no final das contas, os fãs da Casa das Ideias gostam mais dos aspectos humanos dos heróis; a identificação e representatividade estão no núcleo dos principais ícones da editora.

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Ainda no comecinho de 2000, os “heróis de rua”, os que foram para a Netflix, ganharam muito mais destaque, em especial Jessica Jones, que antecipou o movimento de empoderamento feminino em 10 anos. Luke Cage saiu da periferia negra das sarjetas dos EUA para se tornar um herói de primeira grandeza. A diversidade se tornou um caminho para revitalizar o heroísmo da editora.

E mais: abriu espaço para que a Marvel começasse a construir heróis com legado. Na DC Comics, é comum vermos vários Batmen, Supermen, Lanternas Verdes, Flash… Todo cantinho dos maiores ícones da editora tem uma “família inteira” com aspectos e dores semelhantes. Já na Casa das Ideias, isso não é tão comum. E era muito menos antes de Kamala Khan.

O caminho até Ms. Marvel com a ascensão do Homem-Aranha Miles Morales

Depois dos anos 1960, a Casa das Ideias passou a apostar mais em algo que se tornaria sua marca registrada para os anos seguintes. Stan Lee, ao lado de lendas como Steve Ditko e Jack Kirby, começaram a criar heróis que pudessem trazer mais identificação e representatividade. Veja bem, a editora não costuma nem usar cidades fictícias, a maioria da ação acontece em Nova York, Los Angeles, entre outras localidades reais.

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É claro que Lee e a Marvel estavam pensando em vender revistas para uma fatia mais ampla de consumidores, mas não dá para negar que a iniciativa de dar voz a outras comunidades é algo louvável. E, ao longo do tempo, isso se desenvolveu de maneira mais justa: atualmente, quem escreve quadrinhos ou dirige filmes e séries para o MCU são autores conectados aos personagens. Os profissionais envolvidos nos títulos da editora e nas produções para cinema e TV têm origens étnicas e o mesmo gênero dos heróis — a britânica-paquistanesa Bisha K. Ali é quem comanda Ms. Marvel e o egípcio Mohamed Diab está por trás do Cavaleiro da Lua no Disney+, por exemplo.

Para o planejamento de revitalização no começo dos anos 2000, era necessário encontrar vozes atuais em novos personagens, que pudessem trazer a este século os conceitos clássicos da editora; mas com a complexidade dos leitores que nasceram com uma rede de informações, comunicação e entretenimento bastante disruptivo para heróis e vilões criados há mais de 50 anos.

Dois personagens foram essenciais para o que foi chamado de All-New All-Different Marvel: o Homem-Aranha Miles Morales e Kamala Khan, a Ms. Marvel. Bem, antes de dar destaque à garota, é preciso lembrar por que o Escalador de Paredes é tão importante para a Casa das Ideias — veja bem, ele é a “cara” da Marvel e é o herói mais conhecido no mundo, capaz de reunir três gerações de atores e fãs no último filme do MCU.

O Homem-Aranha é o cara comum, pobre que mora com a tia, que sofre bullying no colégio; com tragédias pessoais que poderiam levar qualquer um para o fundo do poço. Ele não veio de outro planeta, não é bilionário e nem foi escolhido por uma entidade mágica ou uma corporação de policiais espaciais.

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Mesmo assim, os ideais aprendidos com a Tia May e o Tio Ben transformam um garoto ordinário em extraordinário, quando Peter Parker consegue suportar o ódio, a pobreza de espírito e a solidão para se sacrificar, salvando vidas, com poderes que só vencem as ameaças por causa de seu lado humano. Qualquer um que puder exercitar o altruísmo e apanhar do mundo e continuar em pé, sem corromper suas convicções, pode ser o Amigão da Vizinhança.

Essa mensagem conseguiu ser atualizada para os anos 2000 com Miles Morales, um herói conectado com a velocidade da informação e da tecnologia e suas raízes afro-americanas. Ele consegue traduzir o que é ser solitário, sofrer bullying e ser um herói para os leitores adolescentes de sua idade, da mesma forma que Peter Parker sempre fez. E quando a Marvel percebeu o enorme sucesso de Morales, sacou que deveria usá-lo como referência não somente para a revitalização de seus ícones.

Morales serviu como guia para a construção de legados e a expansão da representatividade e diversidade. E aí é que entra Kamala Khan.

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Marvel começou tudo de novo em 2015 com Kamala Khan

Com o crescente sucesso do MCU, que otimizou a bem-sucedida recuperação de franquias (como a dos Vingadores), a Marvel Comics conseguiu finalmente realizar um reboot mais profundo em 2015. As segundas Guerras Secretas realmente organizaram melhor sua continuidade e abriu espaços para a nova geração de heróis.

Aí é que entra Kamala Khan, adolescente estadunidense descendente de paquistaneses que é nerd e adora super-heróis, em especial a Capitã Marvel. Ela sofre todas as agruras da adolescência colegial, e, assim como Peter Parker, sente-se uma outsider. Some a isso ao fato de a jovem trazer a representatividade da pele marrom, sofrendo com a discriminação e com dilemas sobre tradições familiares e religiosas. Ela é a primeira personagem muçulmana de destaque na Marvel

“Há algo realmente adorável em uma jovem da cidade de Jersey olhando para o outro lado do rio e vendo esta cidade brilhante [Nova York], onde todos os dias esses heróis salvam o mundo. Eles são lindos e poderosos, mas não se parecem em nada com ela”, diz Sana Amanat, cocriadora de Kamala Khan, ao lado do editor Stephen Wacker, da roteirista G. Willow Wilson e dos artistas Adrian Alphona e Jamie McKelvie.

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A série solo de Ms. Marvel nasceu em 2014, um ano após sua primeira aparição na revista Captain Marvel #14. E, em 2015, após as Guerras Secretas, a Marvel deixou temporariamente vários de seus ícones em segundo plano, enquanto os heróis de legado apareceram para representá-los na fase All-New All-Different Marvel.

Nessa fase, Kamala Khan e Miles Morales lideraram a ascensão de jovens inspirados pelos heróis clássicos. Assim, vimos Kamala e Morales levarem adiante os valores pregados por Carol Danvers e Peter Parker. O chinês Amadeus Cho se tornou o novo Hulk. Shang-Chi ganhou mais estofos e uma abordagem mais localizada.

Thor foi substituído por Jane Foster, o Sam Wilson se tornou o Capitão América e a Coração de Ferro apareceu como um gênio tecnológico com capacidade para superar o Homem de Ferro. O Motoqueiro Fantasma deu lugar ao Motorista Fantasma Robbie Reyes, um jovem latino. Vários personagens gays assumiram publicamente o romance, como Hulkling e Wiccano. O Pantera Negra expandiu o afrofuturismo nos quadrinhos e também promoveu a força feminina com Shuri.

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Veja bem, em 2015, o presidente dos Estados Unidos era Barack Obama e o movimento de empoderamento feminino estava prestes a ganhar uma dimensão ainda maior, com o ativismo do #MeToo, que expôs casos de assédio e violação contra mulheres, em 2017. E os questionamentos sobre racismo e xenofobia se tornaram ainda mais intensos e recorrentes desde então.

A chegada desses novos heróis, com Kamala Khan à frente, ecoou os tempos atuais, sem deixar para trás o núcleo que tornou os clássicos tão queridos. Com isso, a Marvel entendeu que repetir a fórmula que deu certo não é criar cópias; e sim mostrar com o legado que os heróis só fazem sentido quando o aspecto humano nos lembra quem é que eles estão realmente salvando.

E por que Kamala Khan é também tão importante para o MCU?

Nos cinemas e na TV, o amadurecimento e a passagem de idade dos personagens é muito mais rápida, dado, claro, ao envelhecimento dos atores. E como a identificação é peça-chave para o legado da Marvel, Feige tem escolhido algumas “âncoras” para promover a diversidade e estar alinhado com os veteranos; e, principalmente, com a nova audiência.

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Nem todo mundo que assiste aos filmes já leu as revistas, mas quem vê e acaba gostando pode dar longevidade à base de fãs. E isso é mais importante nos dias atuais, em que o porfólio da Marvel compete com muita coisa, não somente no entretenimento — diferente de décadas atrás, o tempo e o dinheiro que um guri pode consumir com gibis atualmente é disputado por aparelhos e softwares e amplas opções de cultura e diversão.

Como explicado acima, foi a construção do legado Marvel nos quadrinhos e cinemas que elevaram o valor dos ativos da Marvel Entertainment. E a Disney só vai continuar lucrando se mantiver e ampliar os leitores da Marvel Comics e a audiência do Marvel Studios. Assim, é sempre necessário ter personagens como o Homem-Aranha, que amadurecem junto com os fãs.

O cara que tinha 13 anos quando viu Homem-Aranha: De Volta para Casa em 2015 cresceu junto com o Peter Parker de Tom Holland e, quando assistiu a Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, neste ano, também se graduou no colegial com uma história que se desenvolveu simultaneamente ao seu próprio crescimento. Esse mesmo cara, atualmente com 18 anos, criou memórias e laços afetivos com o único herói Marvel que mais mostrou nos cinemas  o tempo passando e o amadurecimento em sua vida. Nenhuma outra franquia do MCU teve esse tratamento.

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E como o Peter Parker de Tom Holland está agora mais próximo à popular fase de jovem adulto do Homem-Aranha, é necessário que outra franquia traga essa mesma proposta no MCU. Assim, Ms. Marvel vem para levar à frente o legado Marvel nos cinemas e na TV com mais uma história narrada no estilo coming-of-age story, em que veremos a protagonista saindo do início da adolescência para se tornar uma jovem heroína.

E Kamala também faz parte do plano de destacar personagens que trazem o legado Marvel no MCU, a exemplo de Echo, Mulher-Hulk, Coração de Ferro, America Chavez, a Poderosa Thor, Shang-Chi, entre outros com protagonistas que trazem mais complexidade e escopo à representatividade, diversidade de gênero e etnias.

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Então, se você assistiu a Ms. Marvel e não gostou muito, não se preocupe. Embora novos personagens resgatem o passado de cada um que já viveu as agruras adolescentes e sorriu e chorou com heróis clássicos, Kamala Khan veio para construir laços com muita gente que não se via representada até então, ainda mais com o destaque de um headliner. E isso é justamente o que o legado Marvel tem feito de melhor nos últimos anos.