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Conheça a edição macabra de Sandman que chocou leitores em todo o mundo

Por| 31 de Outubro de 2021 às 11h00

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DC Comics
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Muita gente não sabe que Sandman, a aclamada obra-prima do escritor britânico Neil Gaiman, nasceu a partir da vontade da DC Comics de reformular um antigo vigilante da editora para tramas complexas de um selo adulto que estava nascendo no final dos anos 1980, o Vertigo. A intenção era promover a atmosfera noir de mistério e suspense do personagem original e revitalizá-lo com terror gótico. E uma edição em especial, a de número seis, é o maior exemplo desse mix, em um conto que chocou os leitores em todo o mundo.

Embora Morpheus nada tenha a ver com o Sandman vigilante da DC Comics, a proposta inicial era usar uma propriedade que fez sucesso no passado, e que andava esquecida, para reintroduzir as tramas atmosféricas de mistério que Sandman Mistery Theatre trazia para os leitores nos anos 1930 e 1940. Na época da criação do Mestre dos Sonhos, Alan Moore vinha conquistando público e crítica com o Monstro do Pântano, outra criatura da empresa que ganhou uma roupagem mais sombria em meados de 1980.

Então, Gaiman se baseou no clima noir e no suspense psicológico das aventuras de Wesley Dodds para criar aquela que seria a história mais polêmica e macabra da trajetória de Morpheus nos quadrinhos. A repercussão foi muito grande, especialmente em uma época em que os quadrinhos sofriam muito com resquícios de críticas conservadoras: no final dos anos 1980, muitos educadores acreditavam (e até hoje alguns acreditam) que os gibis eram uma influência negativa para crianças e adolescentes — resultado da infame campanha de Fredric Wertham e o livro Seduction of the Innocent, lançado em 1954.

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No lançamento de Sandman #6, em junho de 1989, muitas das pessoas que demonizavam os quadrinhos “confirmaram” suas “teorias”. Mas mal sabiam os detratores que a história macabra e chocante fazia parte do plano de Gaiman e da DC de mostrar como os gibis, que eram muito mais atrelados ao público infantil, podiam trazer tanta provocação, reflexão e sensações em poucas páginas.

O Canaltech conta mais sobre isso abaixo, lembrando que, a partir deste parágrafo, há spoilers sobre a trama, além de descrição e imagens que podem trazer desconforto para parte dos leitores.

O Rubi dos Sonhos

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Já falamos por aqui sobre a jornada inicial de Sandman (é recomendável que você confira as matérias anteriores, linkadas no começo deste texto), que ficou preso durante décadas, e, ao se libertar do confinamento, partiu em busca de alguns de seus pertences mágicos. O primeiro arco de Prelúdios e Noturnos é, basicamente, sobre essa procura.

Um desses artefatos faz parte de uma coleção de 12 pedras oníricas, as chamadas dreamstones, das quais a mais poderosa é o Rubi do Sonho (Dream Ruby). Quando Sandman foi aprisionado, a rocha, juntamente com seu elmo e sua algibeira, foram roubados e espalhados pelo mundo — o elmo foi parar no Inferno, por exemplo (já falamos sobre isso na matéria anterior sobre Sandman).

O Rubi do Sonho, conhecido também como Materioptikon, é uma fonte de energia misteriosa, aparentemente ilimitada; e não se sabe exatamente a extensão de suas capacidades. O que vemos em Sandman, é que o detentor do artefato pode manipular e distorcer a realidade, a partir da materialização de elementos do Sonhar na vida real. Nas mãos de Morpheus, é um símbolo de poder e permite que ele realize façanhas dignas de um deus.

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Quando Sandman esteve aprisionado, Ruthven Syker, um biólogo ligado à sociedade secreta de bruxos britânicos Ordem dos Antigos Mistérios, roubou os pertences do Mestre dos Sonhos, ao lado de uma mulher chamada Ethel Cripps. Ambos fugiram da organização, levando os objetos, e o rubi mágico. Isso aconteceu na trama em 1930.

Já décadas depois, em 1989, Ethel encontrou seu filho no Asilo Arkham, em Gotham City. Nesse ponto da história, Gaiman utilizou um vilão do passado da Liga da Justiça e tornou-o uma ameaça muito maior. John Dee, ou Doutor Destino (não confunda com o rival do Quarteto Fantástico, da Marvel Comics), recebeu, então, o rubi como um presente de sua mãe, Ethel.

Dee, que no passado era um gênio criador de dispositivos tecnológicos, conseguiu manipular o Rubi do Sonho, usando a energia do artefato gerado por Sandman no Sonhar para materializar os mais sombrios medos e desejos das pessoas em um pesadelo sólido, real.

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Um dia de terror

Pois bem, finalmente chegamos à trama chocante. Na trama de “24 Horas” de Sandman #6, Dee aparece com um comportamento psicótico e visual decadente, muito mais assustador que suas versões vilanescas anteriores — o tempo no Asilo Arkham teria agravado seus problemas mentais.

Dee sai do Asilo Arkham e entra em uma típica lanchonete do interior estadunidense. Ele passa a observar as pessoas que estão por ali, e suas ações vão escalando a cada 60 minutos, em um período de 24 horas. Todas as pessoas ali presentes escondem algo sob as facetas aceitas pelos “cidadãos de bem” da sociedade estadunidense.

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Bette Munroe é garçonete que aspira ser escritora e é amante de Marsh, que traía sua esposa Marsha antes mesmo de ela morrer por complicações do alcoolismo. Garry e Kate Fletcher se casaram porque, aparentemente, ele está de olho na fortuna dela. Judy é uma jovem lésbica apaixonada por Donna, e ambas sofrem com a desaprovação da comunidade. Mark não tem amigos e é solitário. Todos os personagens da trama parecem ter algum distúrbio mental por ter que manter as aparências enquanto guardam coisas em segredo.

Esses personagens com vidinhas ordinárias escondem desejos e segredos que vão se revelando e escalando em comportamentos violentos. A realidade vai se distorcendo a cada hora, sob influência da manipulação de Dee e do rubi, transformando cada página em uma representação gráfica dos pensamentos, medos e anseios mais estranhos e sombrios de cada um.

Orgia, necrofilia, assassinato, mutilação, espancamento, decapitação e tortura; um programa de tevê sugerindo a crianças que cortem seus pulsos e suicidem-se; uma das personagens enfiando facas nos olhos, entre outras coisas de arrepiar, acontecem a cada hora que Dee segue explorando o lado mais cruel e sombrio do ser humano com o uso do rubi.

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No final, Sandman consegue encontrar o padrão violento criado com os elementos do Sonhar e chega até à lanchonete onde Dee está, recupera seu rubi e pune o vilão. Morpheus consegue restabelecer a realidade distorcida no local, mas, infelizmente, não pode reverter os assassinatos ocorridos por ali durante as 24 horas de terror.

Vale destacar que, desde o começo dos anos 1990, as editoras norte-americanas, que viviam uma crise de criatividade, passaram a abusar de sexualização das personagens femininas e da violência gráfica, com tratamento visual de primeira — mas com textos pobres. Gaiman via Sandman como um contraste para isso, então, ele fazia questão de contratar desenhistas que tinham traços muito diferentes do padrão “comercial” — a intenção era fazer com que o leitor deixasse de prestar tanta atenção na beleza plástica das ilustrações e ficasse mais preso ao texto e à narrativa. Os traços de Mike Dringenberg e Malcom Jones, com a colorização de Daniel Vozzo, conseguiram criar a atmosfera perfeita para o pesadelo real da trama de Sandman #6.

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História ganhou adaptação de fãs e está confirmada na Netflix

Embora tenha sido criticada por muitos leitores e a ala conservadora dos Estados Unidos na época, a trama de “24 Horas” ganhou cada vez mais adeptos ao longo dos anos. A criatividade de Gaiman e o refinamento narrativo que explora o terror psicológico e gráfico colocam Sandman #6 como uma das obras mais aterrorizantes já vistas nos quadrinhos.

A história marcou tantas pessoas que um grupo decidiu fazer um fan film baseado nela. Sandman: 24 Hour Diner foi produzido por Evan Henderson e Nicholas Brown e segue à risca o que acontece em cada página da revista. O vídeo lançado em junho de 2017 não tem fins comerciais, e está disponível no YouTube, com quase 126 mil visualizações — e, claro, não é recomendável para menores de 18 anos.

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E para muitos que sonhavam com uma adaptação oficial da história macabra, já havia indícios de que isso iria acontecer quando a Netflix divulgou a escalação dos atores, confirmando o ator David Thewlis (o Professor Remo Lupin de Harry Potter) como John Dee. Em junho deste ano, Gaiman também reforçou que “24 Horas” realmente foi gravado e será exibido no quinto capítulo da série no streaming. O autor até brincou no Twitter, “recomendando” às pessoas para não assistí-lo.

Ou seja, prepare-se, pois Sandman na Netflix também terá um episódio que vai chocar muita gente por aí.

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Trama chocante ajudou a consolidar os quadrinhos adultos

Como dito anteriormente, com a decadência dos heróis entre o final dos anos 1980 e em todos os anos 1990, a DC Comics passou a investir no material adulto que já vinha dando certo com o Monstro do Pântano e Hellblazer. E, claro, as outras editoras do mercado também perceberam essa tendência, e passaram a produzir um material menos comercial e mais nichado, com temas densos e muitas vezes perturbadores.

O próprio arco inicial de Sandman, Prelúdios e Noturnos, que reúne as oito primeiras edições da série mensal, tem uma tonalidade muito diferente do resto da trajetória do Mestre dos Sonhos. Embora o horror sempre marque presença ao longo dos 75 números, Prelúdios e Noturnos é muito mais sombrio do que os outros volumes — natural que fosse assim, pois o terror de Monstro do Pântano e Hellblazer faziam sucesso na época.

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No final das contas, a trama de Sandman #6 não somente serviu para ajudar a alavancar os quadrinhos adultos e o selo Vertigo, como também é um “tapa na cara” da sociedade conservadora estadunidense e da hipocrisia do “american way of life”.