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Os filmes de super-heróis e a rivalidade entre diretores e produtores

Por| 28 de Maio de 2020 às 10h17

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DonovanClark
DonovanClark

Essencialmente, a montagem (ou edição) tem a ver com reunir as imagens e sons gravados em um bloco único (que será o filme pronto), tendo como guia o roteiro e as ordens do diretor e da diretora, responsável criativo pela obra. Tecnicamente, é isso. Artisticamente, é muito mais do que isso. Trata-se de entender, em termos de segundos (às vezes frações de segundo), o ritmo de um filme, o momento certo de cortar, qual a transição ideal entre uma imagem e outra, em que momento entra a trilha sonora, como demonstrar que eventos estão acontecendo simultaneamente ou como enganar o espectador para que ele pense isso e, posteriormente, surpreendê-lo… As funções da montagem são inúmeras e há teóricos que pensam essa função como a mais essencial do cinema. Corte (cut) é sinônimo de montagem final e o recente anúncio do Snyder Cut de Liga da Justiça reacende uma antiga querela.

Para compreendermos o poder dessa área do cinema, podemos pensar em filmes como Dunkirk, de Christopher Nolan, vencedor do Oscar da categoria em 2018. Nesse filme de guerra, uma das maiores façanhas é a montagem linear entrelaçada de três linhas temporais distintas. A montagem paralela nos mostra as imagens como se os eventos estivessem ocorrendo simultaneamente, mas a narrativa do filme nos revela que são períodos diferentes, como podemos ver na imagem abaixo. O gráfico ajuda a entender que, em 106 minutos de filme, vemos a passagem de tempo de uma semana para os personagens cercados na praia e no dique (Mole) de Dunquerque, enquanto os eventos que acontecem no mar (Sea), mais precisamente no Canal da Mancha, duram um dia e os eventos aéreos (Air) duram apenas uma hora. Os três eventos só se encontram, temporalmente, nos minutos finais de Dunkirk.

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Não é a primeira vez que Nolan faz esse tipo de montagem: filmes como Amnésia (2000), A Origem (2010) e Interestelar (2014) usam a montagem para criar uma narrativa bastante complexa. Para quem estiver interessado, vale a pena assistir à versão de cinema e à versão linear de Amnésia para conferir os diferenciais desse processo em uma mesma história. Outro concorrente ao Oscar no mesmo ano em que Dunkirk levou a estatueta é um excelente exemplo de poder da montagem: Em Ritmo de Fuga (2017). Edgar Wright cria um filme em que montagem e trilha sonora convivem em perfeita harmonia, com personagens, cortes, movimentos de câmera encaixados nos beats das músicas. São inúmeros os exemplos e “melhores montagens” é tema para outro momento.

Os filmes são obras de arte colaborativas e cada responsável por um setor é, ao mesmo tempo, um técnico e um artista. Geralmente, um filme é bom quando todos os artistas envolvidos, além de serem bons artistas, agem em conformidade. O cinema também é indústria e, como tal, lucro é um dos maiores objetivos, sobretudo nos casos dos blockbusters (claro que existe cinema e filmes excelentes que escapam a isso, mas não quando se trata de grandes produções milionárias). Os produtores são os profissionais responsáveis pela obra como um todo, enquanto o diretor geralmente está mais ligado à responsabilidade criativa. As duas funções por vezes se confundem e é preciso analisar caso a caso: algumas vezes o produtor interfere criativamente e, quando desejam ter um controle maior sobre as próprias obras, não é incomum que diretores sejam também os produtores dos próprios filmes.

Quando um diretor consegue fazer um grande sucesso autoral, algo que é a sua cara e que ganha muito público, as produtoras costumam interferir menos. Se o diretor ainda não tem uma carreira tão forte, é muito provável que os produtores irão tentar dizer o que ele deve fazer.

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Marvel

Quando algo faz sucesso, não demora para que as produtoras concorrentes tentem reproduzir a fórmula, o que é muito difícil, já que a maioria dos sucessos revelam a genialidade de um produtor e/ou diretor e sua equipe. Por isso, as tentativas da DC de fazer filmes mais sérios e dark como a trilogia Cavaleiro das Trevas falharam: a marca era Christopher Nolan, não uma fórmula que poderia ser aplicada aos demais personagens. Quando o objetivo se tornou fazer o mesmo que a Marvel, falharam igualmente. Embora tenha agradado muitos fãs, o excesso de efeitos utilizado por Zack Snyder em 300 (2006) foi excelente se levarmos em conta a estética dos quadrinhos, mas se tornou saturada quando aplicada aos filmes que iniciaram o universo cinematográfico da DC, o DCEU (sigla em inglês).

Nem sempre a produção erra ao ir além da responsabilidade como empresário do cinema para garantir que a equipe tenha tudo o que é necessário para concretizar a ideia do diretor e da sua equipe. As produções Marvel são exemplos disso. Na coluna Criativity (Critividade) do Harvard Business Review, os autores do artigo citam uma entrevista em que o presidente do Marvel Studios, Kevin Feige, deu à Variety revelando que a chave do sucesso desses filmes parece estar no equilíbrio entre a criação de filmes inovadores que apresentam elementos comuns e que permitem que os produtos sejam reconhecidos como parte de algo unificado:

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"Sempre acreditei em expandir a definição do que poderia ser um filme do Marvel Studios. Tentamos manter o público voltando em maior número, fazendo o inesperado e não simplesmente seguindo um padrão, molde ou fórmula".

Isso funciona perfeitamente, porque é possível notar nos filmes da Marvel uma originalidade que convive de forma saudável com um padrão imposto pelo estúdio. Como indicou Feige, a fórmula existe, ela apenas não é reproduzida a risca em todos os filmes, uma vez que isso causaria exatamente o efeito dos filmes da DC: uma saturação. Embora em alguns momentos os filmes da Marvel tenham sofrido um pouco de saturação, com o excesso de alívios cômicos sendo um dos principais alvos de crítica, é a contratação de diretores autorais (que têm um certo nível de liberdade criativa) que renova a fórmula a cada novo filme.

Mesmo dentro da Marvel, é possível reconhecer o trabalho de diretores como Jon Favreau (Homem de Ferro), Joss Whedon (Os Vingadores), James Gunn (Guardiões da Galáxia) e dos irmãos Joe e Anthony Russo (Capitão América 2: O Soldado Invernal). Os grandes sucessos de filmes de super-heróis, antes do advento Marvel, também eram extremamente autorais: a fantasia dark de Tim Burton, a racionalidade científica de Christopher Nolan e os efeitos práticos fantásticos de Guillermo del Toro. Para não citar somente sucessos, ainda podemos mencionar os inesquecíveis Batmans carnavalescos de Joel Schumacher. Os filmes de menor sucesso da Marvel são justamente os menos autorais e que parecem apenas replicar a fórmula.

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O artigo do Harvard Business Review ainda comenta que é extremamente difícil manter franquias e que a tendência é, quase sempre, ter uma queda de qualidade. Jon Favreau chegou a comentar que o ápice das franquias, historicamente, geralmente acontece no segundo filme e que, depois disso, costuma ser ladeira abaixo. A conclusão do artigo, que chama a Marvel de “Máquina de Blockbusters”, é o seguinte:

"A maioria das abordagens para sustentar a criatividade e a inovação concentra-se em construir uma cultura ou seguir um processo. Essas abordagens são úteis, mas eles perdem um fato importante: em muitos contextos, um produto de sucesso impõe restrições sobre o que se segue. Os quatro princípios do Universo Cinematográfico da Marvel ajudarão as empresas a superar essas restrições — mas eles devem ser aplicados como um todo. Selecionando inexperiência com experiência (princípio #1) sem um forte, compromisso sustentado de desafiar a fórmula (princípio #3) e uma equipe central estável (princípio #2) significará apenas que as pessoas que você recebe não poderão fazer o que você quer que elas façam. Similarmente, falta de compromisso em desafiar a fórmula (princípio #3) minará o potencial de cultivar a curiosidade do cliente (princípio #4): Easter Eggs inteligentes não podem compensar um filme de fórmula ou uma linha de produtos sem graça. Se uma empresa conseguir disparar todos esses cilindros de uma só vez, ela construirá um mecanismo de inovação sustentável e em constante renovação".

Nem todos os filmes Marvel são excelentes. Assim como a filmografia de um diretor, o MCU (Universo Cinematográfico Marvel, sigla em inglês) tem seus altos e baixos, óbvio. Mas o que isso nos diz sobre as produções recentes de filmes de super-heróis que não deram certo?

Director’s Cut

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Embora os produtores tenham muito poder, a voz do set é a do diretor. Durante as filmagens, é o diretor que guia a performance dos atores, os enquadramentos e movimentos de câmera com vistas à montagem final. Tudo o que ele faz tem como objetivo o filme que ele tem em mente. A versão dos filmes que vemos nos cinemas é, geralmente, o comum acordo entre produção e direção, entre a proposta criativa do diretor e a visão comercial do produtor. Quando há discordâncias, o dinheiro tende a ganhar e o que vai para o cinema, na esmagadora maioria das vezes, é a versão do produtor (que é quem recebe o Oscar de Melhor Filme, inclusive).

Grandes obras, verdadeiros clássicos inquestionáveis, passaram por esse problema. Apocalypse Now (1979) recebeu a versão Redux e Blade Runner - O Caçador de Androides (1982) também tem um Director’s Cut (corte do diretor), que divide críticos e audiências sobre qual versão é a melhor. Os Director’s Cuts apresentam mudanças estruturais na história e, muitas vezes, cenas que os diretores filmaram e que os produtores removeram do corte final. Apocalypse Now ganhou um ritmo mais lento e Blade Runner, um final menos otimista, por exemplo. Indo ainda mais longe na história do cinema, em 1924, a produção obrigou F. W. Murnau a dar um final feliz para A Última Gargalhada.

Voltando para nossos tempos e para o gênero de super-heróis, em 2012, Josh Trank chamou a atenção com Poder Sem Limites e, pouco tempo depois, estava dirigindo o aguardado reboot de Quarteto Fantástico, que prometia muito, sobretudo pelo elenco envolvido. O diretor admitiu ter ficado intensamente estressado com a produção do blockbuster (que tem um outro nível de complicações técnicas se comparado ao filme de baixo orçamento que Trank havia realizado), mas foi quando o primeiro corte foi mostrado para a produção que a verdadeira treta começou: além de não ter um final, o filme era sombrio demais e “não era para os fãs”. Particularmente, não vejo o diretor como culpado disso. Os produtores são os responsáveis pela contratação da equipe, logo cabe a eles contratar um artista que seja compatível com a energia que eles esperam ser transpassada pelo filme. Poder Sem Limites já havia mostrado que Trank tinha nada a ver com o jeito Marvel de fazer filmes (Quarteto Fantástico não é um filme Marvel, mas sabemos que era essa a fórmula que os produtores de muitos filmes quiseram copiar quando os Marvel dominaram a cena), então um filme sombrio não deveria ser uma surpresa. A parte sobre não ter um final, bom, isso foi porque a produção cortou boa parte do orçamento previsto e Trank ficou sem ter como fazer o que havia planejado.

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Depois disso, os dois grandes exemplos do momento foram os fracassos de crítica Esquadrão Suicida e Liga da Justiça, ambos da Warner Bros./DC. No caso de Liga da Justiça, Zack Snyder acabou se ausentando por causa da morte da sua filha e o filme acabou nas mãos de Joss Whedon, ou seja, a Warner Bros. chamou para o filme que reúne os heróis da DC justamente a pessoa que fez isso para a Marvel, como explica melhor Claudio Yuge na matéria "O que esperar do Snyder Cut da Liga da Justiça?".

Com o hype gerado pelo Snyder Cut, David Ayer, diretor de Esquadrão Suicida, voltou a comentar o desejo de também liberar seu corte do filme e recentemente postou a foto de um dos momentos que ficaram fora do corte final. Embora Ayer e o presidente de produção da Warner Bros., Greg Silverman, tenham declarado ao The Hollywood Reporter que Esquadrão Suicida era um filme do Ayer e que foi tudo construído em conformidade, após sofrer muitas críticas o diretor acabou dizendo que o filme era pra ser muito mais sobre o relacionamento entre a Arlequina e o Coringa, algo que não é tão explorado na versão que conhecemos.

Cinema é arte, diretores são artistas

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Embora possa acontecer a título de exceção, não se espera de um artista algo que se distancie demais do seu estilo e quando alguém como Spike Lee, por exemplo, anuncia sua versão do clássico Romeu e Julieta, não devemos esperar uma adaptação nos moldes clássicos. Sua versão da história será ambientada no cenário hip-hop dos anos 1980, o que é perfeitamente coerente com sua filmografia. Por outro lado, é claro que marcas como a DC e a Marvel querem manter o controle sobre o que é produzido com seus personagens, mas é um erro terrível tentar submeter o estilo de um artista a um molde específico.

A declaração de Kevin Feige é essencial para compreender isso: existe um molde, mas também é necessário experimentar e escolher os artistas certos, que terão liberdade criativa dentro das fórmulas. É responsabilidade do produtor escolher alguém que não se sentirá podado pela produção, não porque é submisso, mas porque seu estilo encontra na proposta do estúdio uma possibilidade de se expandir, ressignificar-se ou mesmo dar um novo caminho para o estúdio. Além disso, Feige entende a relação com o público de uma forma realmente incrível para uma profissão que precisa estar muito consciente ao investir somas estratosféricas de dinheiro: às vezes é preciso arriscar e ver se o público vai gostar ao invés de ficar investindo em algo que deu certo e engessar os profissionais que farão os futuros filmes. Uma fórmula funciona, mas se repetida incessantemente, cansa. É preciso sempre procurar algo novo: às vezes funciona, às vezes não. Paciência. A DC só percebeu isso com o sucesso de Coringa (2019) e, agora, está investindo em versões autorais de seus personagens, deixando de lado a ideia de criação de um universo como o da Marvel (vale lembrar que rumores apontam que o Snyder Cut pode reavivar esse desejo da Warner Bros.).

É papel do público, de sua parte, entender os artistas como aquilo que eles são: artistas (com o perdão da tautologia). Somos muito apegados a certos personagens e é sempre horrível quando vemos algo que não faz jus à nossa visão de algo que amamos. Por outro lado, um artista não tem obrigação alguma de nos agradar. A adaptação de Sandman, que me é particularmente muito cara por ser meu quadrinho favorito, está passando justamente por esse problema: há uma preocupação tremenda em agradar os fãs, além do fato de ser uma obra extremamente complexa. É preciso levar em conta, também, que quadrinhos e cinema são linguagens artísticas distintas, ainda que de natureza sequencial. Adaptação é sempre algo conflituoso, mesmo quando dá certo, e a dificuldade do processo é muito bem discutida por Sihan Felix em "Adaptar – a tarefa ingrata (ou não) de agradar".

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Ainda que não seja sempre viável, a existência de Director’s Cuts é uma forma de o diretor dizer para o público que aquela versão da obra é o mais próximo do seu ideal. É, ainda, uma forma de nós, como público, entrarmos em contato com o diretor enquanto artista na melhor versão da sua expressão artística.

Se o Snyder Cut vai ser bom ou não, não sabemos. Mas se você é fã do Snyder, a notícia da liberação do seu corte é realmente um motivo para comemoração. Quanto aos demais filmes, sobretudo do gênero de super-heróis, faço um convite para sermos menos haters ao tentarmos entender que o processo de produção de um filme encerra em si uma tremenda disputa entre financeiro e artístico, uma mistura muito instável, que pode dar muito certo ou muito errado. E não há nada demais. Se não deu certo, reboots e remakes estão aí para trazer novas versões das mesmas coisas.

Fonte: Harvard Business Review, The Hollywood Reporter