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Crítica | A Origem mostra que cinema não tem fronteiras nem limites

Por| 06 de Abril de 2020 às 08h20

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Warner Bros
Warner Bros

Quando assisti ao filme em 2010, no lançamento, tive a impressão de que não conseguiria escrever de forma direta. A Origem (que pode ser assistido na Netflix) tinha particionado meu HD, minhas percepções. De um lado, havia ficado o diretor, Christopher Nolan – até então em franca ascensão –, que, mesmo já familiarizado com o mundo dos blockbusters, começava a camuflar seus filmes com uma inteligência às vezes maior do que a real – ou além da que realmente importava; do outro, um filme que parecia o auge da dita ascensão: inteligente sem forçar esperteza, racional sem prepotência... tudo aquilo que o diretor de Following havia anunciado em 1998, mas com grandeza, poder e orçamento.

Hoje, 10 anos após a estreia, fiquei pensando nos filmes de Nolan que são anteriores a esse em questão e percebi que, para uma abordagem de Inception (no original) mais abrangente e mais relevante após uma década, é necessário passar um pouco por seus trabalhos que antecederam esse provável auge.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

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Following

O primeiro longa-metragem de Nolan tem duração de pouco mais de uma hora e narra a história de um escritor, psicologicamente instável, que sai pelas ruas seguindo pessoas incomuns que ele julga serem a matéria-prima dos seus contos. No entanto, uma dessas pessoas é um golpista chamado Cobb (o mesmo nome do ladrão vivido por Leonardo DiCaprio em A Origem), que o convence a participar dos seus assaltos. O escritor, deslumbrando-se com o mundo apresentado, encarrega-se de o tomar como sua realidade.

Amnésia

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Lançado em 2000, quando o diretor ainda tinha 30 anos de idade, já contava com um elenco de peso. A história, baseada em um conto do seu irmão (Jonathan Nolan), mostra Leonard (Guy Pearce) investigando o traumático assassinato de sua esposa. Porém ele sofre de amnésia anterógrada (que impede a memorização de fatos recentes), adquirida após o trauma.

Além disso, o longa ficou conhecido como o filme feito de trás para frente. Isso porque o roteiro dos irmãos Nolan inicia em fatos que normalmente seriam o final da história e vai retornando com acontecimentos anteriores até o início de tudo.

Insônia

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O único filme dirigido por Nolan que ele não tem participação no roteiro foi lançado em 2002 e é uma refilmagem adaptada de uma produção norueguesa (também chamado Insônia e dirigido por Erik Skjoldbjær, 1997). Aqui, Will Dormer (Al Pacino) é um detetive que vai à Nightmute, no Alaska, ajudar a investigar o assassinato de uma garota. Durante uma perseguição ao assassino (Robin Williams), Dormer, acidentalmente, mata seu parceiro, Hap Eckhart (Martin Donovan) e incrimina o fugitivo.

Em meio a duelos psicológicos constantes, Dormer se vê sem dormir há dias devido às 20 horas diárias de sol do verão do Alasca e, também, por ver a sua verdade ameaçada pela detetive Ellie Burr (Hilary Swank), encarregada de investigar o assassinato de Hap.

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Batman Begins

Reiniciando a história e reinventando (ou não) o ambiente do Homem-Morcego, Nolan apresenta como Bruce Wayne (Christian Bale), utilizando-se do seu próprio medo, torna-se o Batman. Em meio às dúvidas interiores constantes, o filme tenta humanizar o impossível e, ainda, conta com a mesma questão, em outro ângulo, dos filmes anteriores: O que (ou quem) é a verdade?

O Grande Truque

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Baseado em um livro escrito por Christopher Priest, o filme relata a rivalidade entre dois mágicos brilhantes, Robert Angier e Alfred Borden (Hugh Jackman e Christian Bale respectivamente), em busca da mágica perfeita. O duelo entre verdades está mais uma vez presente, mas, ao final, é apresentada a única, que seria, no caso, o verdadeiro grande truque.

Batman: O Cavaleiro das Trevas

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Extraindo o possível da dupla personalidade Wayne/Batman e trazendo à trama o personagem altamente volúvel do Coringa (Heath Ledger em uma das interpretações mais impressionantes do cinema), Nolan se aprofundou o bastante para elevar seu filme a um patamar nunca alcançado por um filme de super-herói – mas merecido por Superman: O Filme (de Richard Donner, 1978), X-Men 2 (de Bryan Singer, 2003) e Homem-Aranha 2 (de Sam Raimi, 2004) – talvez outros, mas é uma discussão longa.

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A Origem de A Origem

Enquanto Nolan procura trabalhar em uma zona de conforto temática ou de subtexto desde o início de sua carreira, evitando se arriscar mesmo quando assumiu uma trilogia sobre um super-herói, seus filmes podem ter se tornado repetitivos para uma parcela considerável do público. Mas em 2010, ele (Nolan) pode ter conseguido extrair o máximo dessa sua veia aberta: Quase como um laboratório de sua experiência, A Origem reúne temas já expostos em sua filmografia – da escolha entre realidades do escritor de Following, passando por lapsos de memória de Amnésia, duelos e discussões sobre verdades de Insônia e O Grande Truque e conflitos internos de Batman Begins e Batman: O Cavaleiro das Trevas). Mas também vai além.

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Carregado de conceitos – que quando não são científicos são minimamente intrigantes –, o roteiro dedica-se, nas mais de duas horas de filme, a aprofundar alguns limites da compreensão. Como uma espécie de blockbuster supostamente (sem mau sentido) mais desafiador, o filme não duvida da inteligência do espectador – ao menos, não de maneira óbvia. Existe uma preferência por demonstrar que os próprios personagens têm questionamentos referentes ao que está acontecendo sem que isso transpareça a explicação de obviedades para o público, visto que o que acontece não são detalhes cotidianos. Em um momento, por exemplo, Ariadne (Ellen Page) questiona: "Agora estamos entrando no inconsciente de quem mesmo?"

Essa abordagem que desvia A Origem do estigma de um filme expositivo (ao menos em parte) é, portanto, auxiliada pela própria premissa do filme: sonhos dentro de sonhos – exposta já na sequência inicial. Os diferentes níveis oníricos e seus tempos próprios são apresentados sem muita demora e, para isso, não há interrupção na história ou na ação. Sem essa quebra de ritmo no roteiro, o contexto é mantido e a ideia também.

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Os Personagens

Dominic Cobb (Leonardo DiCaprio) é O Extrator. Ele é o líder e é quem tem a tarefa de persuadir a vítima, dentro dos sonhos, a compartilhar o que for necessário. Também é ele quem põe em risco as missões, projetando, em seus sonhos, a imagem da sua falecida mulher, Mal (Marion Cottilard). Seu nome, como dito, é reminiscente do ladrão Cobb, de Following, que possuía, igualmente, o poder da persuasão. Por outro lado, Cobb também foi um pensador da psicologia que afirmava: "Tudo não passa de codificações criadas pela mente."

Mal (Marion Cottilard) é A Sombra, a esposa (falecida) de Cobb. É ela quem protagoniza alguns dos plot twists do filme. Como a Alma (do mais recente Trama Fantasma – de Paul Thomas Anderson, 2014), seu nome pode ter muitas interpretações, não sendo uma palavra essencialmente portuguesa e estando presente em inúmeras obras filosóficas e religiosas.

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Arthur (Joseph Gordon-Levitt) é o Point Man (intraduzível talvez). Parceiro e amigo de Cobb, ele é o encarregado de dar ação à ação. Gordon-Levitt consegue conquistar o espectador e até surpreender quem o lembrava apenas como um ator de comédias românticas. Seu nome pode vir – e aí fica a teoria – da intimidade de Nolan com a obra do filósofo Arthur Schopenhauer, que chegou a postular que o mundo não é mais que Representação.

Ariadne (Ellen Page) é A Arquiteta. Seu principal trabalho é criar o mundo sonhado da forma mais coerente e real possível. Em sua primeira aparição, vê-se obrigada por Cobb a desenhar um labirinto que ele sinta dificuldade para achar a saída. Ariadne, na mitologia grega, é filha do rei Minos, de Creta. É ela quem ajuda Teseu a escapar do labirinto do Minotauro. Há outros fatores que podem ficar abertos para discussões. Teseu só escaparia do labirinto ajudado pelo amor. Ele escapa com a ajuda de Ariadne e volta com ela para sua terra – mas ele não sente o mesmo amor que recebe. Em A Origem, Ariadne demonstra o que começa a sentir por Cobb com seu olhar e, ao final, é ela quem o liberta. Mas Cobb, em nenhum momento, demonstra qualquer sentimento recíproco.

Eames (Tom Hardy) é O Falsificador. É ele quem assume a forma das pessoas de maior confiança da vítima para que o segredo seja revelado. Hardy deve ser o principal destaque do elenco, mesmo com um menor tempo em cena, ao trazer humor e oferecer alguma segurança sensitiva ao espectador. Seu nome oferece algumas interpretações, porém o mais provável é que Nolan tenha se referido ao casal Charles e Ray Eames, que ficou conhecido como o "casal dos sonhos" do designer americano. Inclusive, em um dos momentos cômicos do filme, Eames percebe a dificuldade de Arthur em um tiroteio e, para ajudar, aparece com um lança-foguetes e afirma algo como "É preciso pensar grande às vezes." Afirmação que coincide com Charles e Ray.

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Saito (Ken Watanabe) é O Turista. O título dado por Nolan se deve ao fato de que, mesmo participando das operações da equipe, Saito só o faz porque é o contratante e quer ter a certeza de que seu investimento será levado a sério. Mesmo não possuindo um papel importante dentro do grupo, O Turista é fundamental para a história. É possível que seu nome esteja ligado a Hajime Saito, que foi um capitão do exército japonês conhecido por ser um homem de pouca conversa e de ir direto ao que interessa. Hajime Saito também era um espião interno e monitorava atividades inimigas e outras inteligências, fato que se encaixa com a personagem de Watanabe, que, além de tudo, é um perito em defesa pessoal (dos sonhos, claro).

Robert Fischer (Cillian Murphy) é O Alvo: a vítima da equipe, bem treinado para se defender dentro da própria mente. Seu nome é uma provável alusão direta a Bobby (Robert) Fischer, enxadrista considerado o melhor do século XX. Vale notar que o totem de Ariadne é um peão de xadrez.
Afinal, trata-se de um filme que é (ou tenta ser) um exercício de raciocínio bem elaborado que apresenta a inserção de uma ideia na mente da vítima assim como o xadrez cede a possibilidade de colocar um oponente em dúvida.

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Colhendo conclusões

Com A Origem, Nolan estabelece alguns paralelos que podem passar despercebidos, como a união entre ciência e religião. Mal não pode ser, por exemplo, uma personagem inserida na história, como uma projeção da mente do marido, sem a intenção de provocar qualquer discussão espiritual. Do contrário, perde-se a lógica do Limbo, que, sendo o último nível dos sonhos, estabelece o lar de uma suicida. Simultaneamente, todos acabam por se referir ao lugar como lá embaixo – algo que remete às citações populares sobre existência do inferno.

Mesmo não sendo um diretor com altas habilidades emocionais – algo que somente a cena de Interestelar (de quatro anos depois) por meio da qual Cooper (Matthew McConaughey), do espaço, conversa com a filha por videoconferência viria a contrapor –, Nolan constrói um paralelo interessante para os sentimentos. Ao tornar cada sensação uma questão racional, principalmente ao situar a culpa de Cobb por ter indiretamente induzido sua mulher ao suicídio como motivo para que ela surgisse como uma projeção da sua mente, o diretor, enfim, revela uma unidade bem definida dentro de sua obra: a idealização de que sentimentos são elementos cerebrais.

É interessante, também, como essa unidade é sedimentada pelo conjunto: Se a direção de arte de Luke Freeborn (de Logan) e Dean Wolcott (de Vice) obedece uma lógica coerente na ambiência e até em quando a aliança de casamento está ou não no dedo de Cobb (sendo seu totem), o figurino de Jeffrey Kurland (de Missão: Impossível – Efeito Fallout) é tão lógico quanto, fazendo com que os personagens tenham personalidades visuais claras: das roupas de colegial de Ariadne e dos vestidos à laChicago de Mal aos ternos sérios e quase doloridos de Cobb.

Essa idealização da mente sobre o coração dá ao trabalho de Hans Zimmer ferramentas de contrapeso: ao mesmo tempo em que sua música é densa e pesada – contornando tudo com muita seriedade e até urgência –, o compositor emprega o tema de Non, Je Ne Regrette Rien no meio de tudo. Essa escolha, dada a síntese da canção e da mulher compassiva que foi Edith Piaf, pode equilibrar o resultado e acabar por ser fundamental para A Origem não se tornar cansativo.

Além de tudo, é interessante como Nolan dificilmente sugere os efeitos visuais com a intenção de embelezar os filmes, com futilidade no emprego desses artifícios. Se surgem ruas dobrando-se, a verdade é que elas estão ali para auxiliar o desenvolvimento do roteiro e para criar uma ideia estilística sobre o que é visto e, consequentemente, para inserir as dúvidas que seus personagens, enfim, buscarão responder.

No final das contas, algumas dessas dúvidas restam e elas podem ecoar por algum tempo. Em meio a elas, uma pode ser fundamental não só para A Origem, mas para a tentativa de pensar um filme como uma obra – assim como um quadro ou uma música. Pode ser que a ideia de Nolan tenha sido somente a de trabalhar personagens inserindo uma ideia na mente de uma vítima (Fischer no caso), mas, indo além-cinema, ele (Nolan) pode ter trabalhado com a hipótese de que essa inserção seja metalinguística e que, como uma vez disse Orson Welles, "O cinema não tem fronteiras e nem limites: é um fluxo constante de sonhos."

O limite de Nolan, de todo modo, talvez tenha sido em 2010. Resta saber se existe força – para além do interesse pela mente humana – para cruzar essa fronteira. Não sei se dá pra duvidar que existe emoção por trás da paixão por uma zona de conforto.

*Crítica dedicada ao amigo e colega João Victor Wanderley.