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Crítica | Em Ritmo de Fuga e sob overdose de cafeína

Por| 20 de Agosto de 2019 às 20h10

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Sony Pictures Entertainment
Sony Pictures Entertainment

A noção de ritmo no cinema pode parecer, às vezes, um tanto quanto particular demais. E é, porque depende da percepção individual de cada um. Já na música, o ritmo é normalmente parte essencial – predefinida – e, às vezes, ele é bem rígido (vide o metrônomo). A noção de ritmo musical é tão objetiva quanto a noção de ritmo cinematográfico é subjetiva. Ainda assim, o ritmo no cinema pode ser implacável: quando ele não acontece, não há como fingir – logo se cansa, perde-se o interesse pelos personagens, pela história... e o filme ruma para o esquecimento; quando ele acontece, as chances de permanecer na memória são enormes. Isso porque ritmo, tanto na música quanto no cinema, é repetição, é constância, e memorizar aquilo que é dito com uma cadência regular (ou repetidamente) é muito mais simples.

Por sua vez, misturar linguagens artísticas não é algo fácil de soar com fluência. A forma de passar o conteúdo pode ser prejudicada por muitos fatores. Sendo assim, essa mistura geralmente não é realizada durante todo o filme. Amor Além da Vida (de Vincent Ward, 1998), por exemplo, mistura o cinema com as artes plásticas (a pintura) com uma sensibilidade absoluta, mas é pontual; é em determinada sequência que surge para abrilhantar o filme. Não é o caso de Em Ritmo de Fuga (disponível no Telecine Play), que trabalha duas linguagens em completa comunhão: cinema e videoclipe. No final das contas, o filme se vê emaranhado às músicas e acaba por ser um musical muito mais efetivo do que alguns que, de fato, são classificados no gênero de O Cantor de Jazz (de Alan Crosland, 1977 – o primeiro filme falado e com trilha sonora gravada e sincronizada, não por acaso um musical).

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

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Videoclipe e live action de GTA

A eficiência de Baby Driver – título original que traduzido soaria como uma espécie de continuação de Querida, Estiquei o Bebê (de Randal Kleiser, 1992) – está no domínio rítmico da montagem da dupla Jonathan Amos e Paul Machliss (companheiros do diretor Edgar Wright em seus filmes mais ágeis, como Scott Pilgrim Contra o Mundo). E tudo é esquematizado pela condução de Wright, que dá a impressão de ter escrito e dirigido o filme sob overdose de cafeína. Não deve ser à toa que Baby (Ansel Elgort) aparece comprando e levando cafés para os companheiros e quando, em certo ponto, sobra um copo, a fala é: “Deixa isso aí. A gente bebe.”

Quem bebe é a gente, Bats (Jamie Foxx).

Wright, inclusive, faz questão de eletrizar o início do filme com duas formas musicais diferentes: na primeira, ao revelar o tom do filme deixando uma roda de um carro reconhecidamente rápido tomar toda a tela, emenda um assalto armado no ritmo da pulsação da música escutada por Baby. Cada ação do grupo é sincronizada com o que sai dos fones de ouvido do motorista pela montagem e cada tomada de decisão dele (de Baby) é alinhada à cadência sonora. Os planos escolhidos por Wright são típicos de um videoclipe, ressaltando precisamente os elementos que soam musicais naquele conjunto e, ao mesmo tempo, apresentando a índole de cada personagem. A cena foi criada justamente a partir de um trabalho que ele dirigiu para o Mint Royale (que aparece rapidamente na televisão de Joseph – personagem de CJ Jones).

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Logo depois, a segunda forma assume o filme como musical. Após uma perseguição de dar nó na cabeça – que evolui como se fosse um live action do game Grand Theft Auto (GTA) –, a trajetória de Baby passa por um plano-sequência que beira a fantasia. A música escutada pela personagem de Elgort enquanto caminha (e dança) pelas ruas é ilustrada nos grafites, nos lambe-lambes, em anúncios... tudo em uma sincronia à laDisney (no melhor sentido). O desenho de produção de Marcus Rowland (também de Scott Pilgrim Contra o Mundo) faz tudo parecer encaixado, em seu lugar, e, enquanto isso, a verdade que se instala é a de que Em Ritmo de Fuga tem o seu universo próprio e bem definido. Não há preocupação com a realidade, o que existe é a criação desse universo, que é único.

Brega-romântico turbinado

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Por outro lado, o que é exposto acaba por ser bastante particular: o mundo de Baby. É tudo tão direcionado pela presença e atitudes do personagem que, em certo momento, para demonstrar a habilidade de leitura labial sobre-humana do moço, vê-se na visão subjetiva dele um silencioso discurso de Doc (Kevin Spacey) para, em seguida, acontecer uma demonstração de competência e segurança absoluta (de Baby consigo mesmo) e de confiança (de Doc para com Baby).

Inclusive, a versão de Baby e Debora (Lily James) sobre o que é a vida, sobre o sonho compartilhado dos dois, é tão simples, ingênua e novamente fantasiosa que pede pela torcida do público: viajar livres e sem problemas pelo país com um carro que não podem pagar. O ar adolescente do casal se conhecendo, conversando e planejando o futuro é segmentado por pequenos plot twists bem significativos: o bilhete que ele repassa para ela discretamente, a ausência dele na fuga por motivos superiores, a visão da felicidade em preto e branco com um vento esvoaçante definindo a paisagem... tudo no relacionamento amoroso de Baby e Debora é brega-romântico; é quase uma versão turbinada de Hairspray: Em Busca da Fama (de Adam Shankman, 2007), cheirando a gasolina e turbinado pelo perigo de morte das situações.

O fluxo constante

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O contraponto do romantismo adolescente permanece no casal que faz referência a Bonnie e Clyde: Darling (Eiza González) e Buddy (Jon Hamm) não somente caracterizam algo muito mais obsceno, mas são intensamente ligados ao crime, estão ali por gosto, salivando amor pelo que fazem. É interessante perceber como Wright se utiliza até mesmo de regras (que, claro, podem ser quebradas) do terror em seu terceiro ato – a partir da morte de Darling.

É então que Em Ritmo de Fuga ganha contornos mais graves e a vingança passa a fazer parte da história, com a direção de fotografia de Bill Pope (mais um de Scott Pilgrim Contra o Mundo) abusando das luzes vermelhas – sobretudo nas expressões de um já perturbado Buddy. Se, antes, Wright flertara com o clássico Halloween: A Noite do Terror (de John Carpenter, 1978), seu filme se encaminha exatamente para um terror (sempre recheado de ação e com um ritmo imparável) que prefere não brincar com as regras do gênero (talvez para marcar mesmo a utilização). Assim, morrem primeiro os “promíscuos”, permanecem vivos virgens e “santos”.

Com o terror instalado, partir para um final catártico acaba se tornando mais fácil, sendo a recompensa muito mais prazerosa. Aquela visão da felicidade em preto e branco ganha contornos reais (para Baby). Novamente, após quase duas horas, o filme abraça a fantasia e revela a importância de saber contar uma história. Porque não importa se é brega, se é intenso, se é impossível... ou se é uma mistura de tudo isso e mais. O que importa é se a história funciona dentro do seu universo próprio (e dentro do mundo de Baby), se a linguagem consegue dizer algo ao público. Não foi por acaso que, um dia, Orson Welles disse: “O cinema não tem fronteiras nem limites; é um fluxo constante de sonhos.”

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E o fluxo constante de sonhos que é Em Ritmo de Fuga é inteiramente – do início ao fim – fundamentado pela arte mais ligada a qualquer prática cultural e humana: a música. Banhada em café. E é a gente que bebe.

Em Ritmo de Fuga pode ser assistido pelos assinantes do Telecine Play.