Inteligência artificial é aliada ou inimiga do cinema brasileiro?
Por André Mello • Editado por Durval Ramos |
Durante vários anos, a ideia da inteligência artificial substituindo pessoas em seus trabalhos, realizando funções antes exclusivas de humanos, parecia coisa de ficção científica. Com a chegada de ferramentas como ChatGPT e Midjourney em 2022, e seu fácil acesso por quem tivesse uma conexão com a internet, mudou rapidamente a forma como muita gente via a tecnologia e seu uso.
Uma das indústrias que ligou o sinal de alerta foi a de audiovisual, que viu a possibilidade de ver profissionais trocados por máquinas. Em 2023, a atriz, produtora e diretora Justine Bateman (Caras e Caretas) afirmou à Variety que não acreditava em um bom futuro para profissionais de cinema e TV, e que a inteligência artificial sugaria toda a criatividade da indústria.
Inteligência artificial generativa se tornou um dos pontos principais da greve de roteiristas e atores que parou Hollywood em 2023, colocando a tecnologia como vilã, acusando estúdios de querer trocar atores e roteiristas, diminuindo sua contribuição para o cinema e TV.
Jason Vredenburg, professor do Stevens Institute of Technology, comentou que por anos, todos sabiam que haveria avanços significativos na tecnologia de inteligência artificial. "Quando o ChatGPT foi lançado, todos ficaram chocados ao perceber que isso chegou muito mais rápido do que todos imaginavam", disse o professor.
Acordos foram firmados entre os estúdios e sindicatos de atores e roteiristas sobre o uso de IA e a indústria do audiovisual norte-americana voltou à ativa após quase 150 dias, ainda que pisando em território não explorado. Só que Hollywood tem uma realidade completamente diferente do resto do mundo. E no Brasil, como é visto o uso de inteligência artificial na indústria audiovisual?
O mercado audiovisual brasileiro
No estudo "O Impacto econômico do audiovisual na América Latina", lançado pela Netflix e realizado pela consultoria Delloite, o setor do audiovisual, que abrange a produção de TV e cinema, gerou uma receita total de R$ 56,9 bilhões em 2021, com um investimento nacional no mesmo período de R$ 52,1 bilhões em produções de conteúdo.
Mesmo não tendo o mesmo tamanho de Hollywood, a indústria audiovisual brasileira é responsável por uma boa fatia da produção latino-americana e já olha para inteligência artificial como uma ferramenta para seus projetos.
Em entrevista ao site Meio & Mensagem, Allan Lico, vice-presidente de criação e conteúdo da Endemol Shine Brasil, afirmou acreditar que, por conta do fator de novidade no uso de inteligência artificial, é necessária uma elaboração conjunta de soluções que utilizam a tecnologia de maneira inteligente.
O executivo ainda implica em uma mudança na realidade dos estúdios, que devem buscar novos tipos de profissionais criativos que também entendam de tecnologia e referências do audiovisual.
“O uso da IA pode gerar conteúdos mais assertivos, uma vez que envolve dados de comportamento possibilitando a criação de novos formatos. Porém, temos o desafio de não entregar ‘mais do mesmo’ e, sim, criar algo diferente, inovador”, comentou Lico.
Uma substituta à criatividade ou uma ferramenta para o profissional?
Para entender melhor o uso da inteligência artificial no dia a dia da indústria, o Canaltech conversou com Paulo Barcellos, CEO da O2 Filmes, uma das maiores produtoras de audiovisual do país, responsável por produções como Cangaço Novo, Marighella, Dois Papas, Ensaio sobre a Cegueira e Cidade de Deus.
Para Barcellos, essa virada de chave com a presença mais direta da inteligência artificial vai mudar a forma de trabalhar não somente do setor audiovisual, mas da sociedade como um todo. "Isso significa que vai causar desemprego e uma comoção social? Não necessariamente, acredito que é cedo para falar sobre isso. Nós vemos a inteligência artificial como um grande acelerador", comentou o CEO.
Barcellos comentou sobre o uso de inteligência artificial dentro da O2 Filmes como uma ferramenta para empoderar os membros da produtora. "Talento é algo muito raro. Se você consegue dar a esse talento mais possibilidades para eles conseguirem fazer seu trabalho, a médio prazo, isso vai aumentar a qualidade de mais projetos", disse o Barcellos.
O executivo revelou que a produtora já utiliza inteligência artificial através de agentes com diferentes funções, como ajudar na decupagem de roteiros.
"Nós começamos a usar um filtro que reconhece a lógica de um roteiro e ele consegue responder quantas cenas ele tem, quantas locações essa filmagem precisa ter, quantas vezes um personagem aparece, se for necessário alugar um prop específico, em quantas cenas ele vai aparecer. É um trabalho que normalmente pode durar uma semana, mas com o uso desse agente, esse processo pode ser reduzido para um ou dois dias".
Perguntamos se isso não traria uma insegurança aos profissionais que fazem esse tipo de trabalho, o qual Barcellos explicou que na verdade, esse profissional ainda estará lá, mas vai conseguir fazer tudo mais rápido.
"É como se o assistente de direção tivesse um próprio assistente que ele não teria normalmente. O profissional vai acompanhar o processo de verificar o roteiro, passa o texto pelo agente e depois o revisa para verificar se não faltou alguma coisa. Corrigir o que faltou, leva um dia. Fazer do zero, leva uma semana", disse o CEO.
Segundo Barcellos, a ideia é utilizar a tecnologia para agilizar etapas do processo de produção audiovisual, mas sem perder o talento dos profissionais. "O número de pessoas contratadas nos projetos vai continuar o mesmo, mas a qualidade e agilidade do trabalho deles com essas ferramentas deve melhorar. Pois aí poderemos fazer orçamentos com poucos erros, consiga encarar mais projetos por ano. É enriquecer o que nós já fazemos, e não parar de fazer com o humano e passar a fazer com a máquina".
Barcellos ecoa as palavras do sócio-gerente da firma Kyber Knight Capital, que à Variety, disse que nós deveríamos ver a inteligência artificial como "inteligência aumentada", já que pode proporcionar aos profissionais do audiovisual a possibilidade de trabalhar mais rápido e com menos custos de produção, sem abrir mão da qualidade no resultado.
Mas será que essa harmonia entre criador e máquina continuará assim no futuro? Monica Landers, fundadora e CEO da StoryFit, uma companhia americana que usa inteligência artificial para analisar roteiros, fala que é um exercício divertido imaginar que uma IA poderia escrever um roteiro, mas não existe um interesse real nisso. "A máquina não consegue manter o ritmo de uma história ou desenvolver personagens de uma maneira realista. É tudo muito vazio", disse Landers.
Só que isso não significa que as coisas não podem mudar no futuro. Para Barcellos, o tudo ainda está aberto, mas mudanças mais significativas não são improváveis.
"Vai ter um dia que a máquina vai conseguir escrever um roteiro? É possível, mas não é a realidade no momento. O que nós podemos fazer agora é usar essas ferramentas para subir o nosso nível e se preparar para essas mudanças, que eu ainda acredito que serão muito positivas".