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Crítica | Moxie é divertido, punk, feminino e necessário

Por| Editado por Jones Oliveira | 03 de Março de 2021 às 12h47

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Há muito que consumimos as comédias adolescentes estadunidenses e podemos ver como esse gênero evoluiu desde clássicos como Juventude Transviada, passando por Grease: Nos Tempos da Brilhantina, pelos filmes de John Hughes, American Pie e outros tantos que nos mostram um espelho dos estereótipos do Ensino Médio estadunidense. Ver, hoje, esses filmes mais antigos, no entanto, pode ser chocante. É possível notar que, por espelharem os estereótipos óbvios e capazes de gerar identificação em massa, esses filmes ajudam a expor uma série de comportamentos que eram normalizados e que, hoje, soam muito mais do que apenas “chatos”.

Esses mesmos filmes-reflexo também ajudaram a alimentar esses estereótipos. Idealizando a garota mais popular, ridicularizando o “burro”, romantizando violências, tratando o babaca como herói e professores como vilões. O sucesso de alguns títulos fez com que os estereótipos se tornassem uma atração à parte, influenciando a realidade e perpetuando maus comportamentos. As demandas sociais que ganharam força nos últimos anos têm impulsionado o surgimento de obras que tratem os problemas adolescentes com mais responsabilidade.

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É interessante, inclusive, notar que alguns dos melhores títulos teen dos últimos tempos têm surgido na Netflix, sobretudo com o sucesso das séries Sex Education e Big Mouth, que não deixam os hormônios de lado, mas fazem pessoas de todas as faixas etárias refletirem sobre si mesmas. Em termos de atmosfera, Moxie é similar às séries citadas e seria incrível se este fosse um título que viralizasse como os colegas. Ainda é cedo para saber se a Netflix moldará as gerações de hoje como a Sessão da Tarde ajudou a moldar as gerações dos anos 1990 e 2000 no Brasil, mas se isso acontecer, podemos alimentar certo otimismo.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

RIOT GRRRL

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Quem conhece Amy Poehler já pode prever que Moxie é um filme não apenas divertido, mas também muito inteligente. O que Poehler faz com a obra de Jennifer Mathieu é incrível. Embora eu não tenha lido o livro, é possível notar a genialidade de Poehler justamente por aquilo que não é possível em livros, ou seja, o audiovisual.

Inclusive, vale notar que, nesse caso, o filme tem algumas perdas na versão dublada. Embora as comédias geralmente sejam mais engraçadas na versão dublada, porque há uma adaptação para o público brasileiro, Moxie infelizmente não ganha muito com a dublagem. Isso porque o humor proposto é muito mais sutil e envolve a personalidade criada pelas atrizes e pela direção para as personagens. A fala é um importante elemento na construção da comicidade das personagens, sobretudo para o público estadunidense, que deve se identificar muito mais com os novos estereótipos propostos. Na dublagem, infelizmente, acontece uma espécie de pasteurização que pode deixar todo mundo mais parecido do que deveria.

A direção de Poehler é maravilhosa ao dosar os elementos. O drama não cai em melodrama, o romance não é o centro das atenções e a comédia é extremamente cuidadosa ao fazer piadas construtivas e que fazem os espectadores questionarem sobre o que é certo e o que é errado. No papel de mãe, Poehler é perfeita ao quebrar os estereótipos tradicionais de mãe-solo e incorporar elementos cômicos geralmente ligados à figura do pai-solo em filmes do gênero.

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As quebras de estereótipo, muitas vezes, são bastante discretas, mas nem por isso menos potentes. Na história do cinema, a imagem da mulher usando pijamas e comendo sorvete em frente à TV geralmente ilustrava o drama de um fim de relacionamento, um momento de desleixo consigo mesma após a decepção romântica. Mesmo quando a cena é protagonizada por homens, a suposta “fragilidade feminina” fica subentendida para os espectadores. A naturalidade de Poehler no sofá, como uma mulher que está apenas descansando, mostra que nem sempre os estereótipos precisam ser quebrados a marteladas. É com decisões criativas sutis como essa que ela demonstra suas qualidades como atriz, diretora e humorista.

Além disso, não é fácil realizar uma comédia romântica adolescente de ensino médio que seja, ao mesmo tempo, um espelho e um manual.

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Punk

Moxie nem precisa citar a palavra punk para dizer que é um filme punk. Um indie-punk para ser mais justa. A trilha sonora, claro, é parte importantíssima dessa atmosfera (e também demonstra a qualidade da direção). Além de introduzir a icônica banda Bikini Kill para as novas gerações, o filme apresenta muitos elementos punk sem passar pelo didatismo de explicar teoricamente cada elemento. Até mesmo nesse sentido o filme é punk: você entende tudo pelas ações dos personagens e não através de algum argumento de autoridade.

As canções que fazem parte da trilha sonora foram tão bem escolhidas que são capazes de antecipar elementos da trama. Logo no início do filme, quando Vivian (Hadley Robinson) está chegando na escola, a música “No Going Back”, de Yuno, já indica que a personagem é introvertida, o que ela só irá revelar posteriormente. Depois, as inserções musicais viajam pelo punk e entregam, inclusive, uma belíssima versão indie de “La Vie En Rose” na voz de Lucy Dacus.

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A estética indie, além de ser de baixo orçamento, ajuda também a criar um colorido que vai além do apelo oitentista que, de tempos em tempos, retorna à moda. O indie e o punk tem a falta de recursos financeiros como elemento comum, o que empurra ambas as correntes em direção ao “faça você mesmo” ou DIY (sigla em inglês). Isso transborda não apenas no zine Moxie, mas na própria história, com as protagonistas ganhando voz e lutando por seus direitos.

O colorido ainda pode encontrar referência em outro movimento punk feminista, o Pussy Riot. Em um de seus livros, Nadya Tolokonnikova comenta que as participantes do grupo usam roupas coloridas para deixar bem claro que não são terroristas, mas apenas mulheres lutando pelos seus direitos. Sem precisar ceder ao peso do coro, do jeans rasgado, do moicano e dos spikes, Moxie consegue fazer um filme que representa a essência do punk feminino: expor o que está errado e lutar com as próprias mãos.

É também das memórias de ativistas punk que vem o reconhecimento das falhas e a noção de que, apesar de tudo, as coisas podem dar errado. Conselho dado pela mãe de Vivian e que se concretiza quando capitã do time acaba perdendo a votação. Reconhecer o que deu errado, entender que mudanças podem acontecer mesmo quando o objetivo maior é frustrado, o poder de se expor e também o poder do anonimato… Tudo isso é punk, então não se deixe enganar pelas aparências.

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Culturas que precisam mudar

Há muito que o cinema se questiona sobre o próximo John Hughes e, se ainda não temos o sucessor do diretor que supostamente melhor entendeu os anseios adolescentes, estamos no caminho com Poehler e Laurie Nunn (Sex Education). Precisamos superar Hughes com urgência, apesar de ser necessário reconhecer a sua importância para o seu tempo.

Por que essa superação é necessária? Uma comparação simples expõe um enorme problema: o clássico Gatinhas e Gatões versus Moxie. Enquanto o filme de 1984 naturaliza a cultura do estupro quando “o príncipe encantado” Jake (Michael Schoeffling) entrega a namorada bêbada para que o nerd (Anthony Michael Hall) faça o que quiser com ela; Moxie expõe o tradicional capitão do time em uma sequência que seria completamente ficção se não fosse tão parecida com a vida real.

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Esta não é a primeira vez que cito Gatinhas e Gatões. Esse cultuado filme me veio à mente também quando escrevi sobre o documentário Rede de Abuso. Inclusive, ter visto esse documentário fez com que eu chorasse copiosamente com Moxie: ainda que seja uma divertida comédia fictícia, Moxie mostra uma forma de resistência para as mulheres que enfrentam a naturalização da cultura do estupro em escolas que protegem seus atletas a todo custo.

Moxie é, enfim, um filme muito diverso e capaz de gerar identificação não apenas para aqueles que pertencem aos clássicos estereótipos da líder de torcida, do capitão do time, do nerd e do excluído, mas sim para diversas jovens mulheres (e homens) que já estão saturados com a falta de representatividade de um Ensino Médio muito mais diverso e coerente com os nossos tempos.

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Moxie: Quando as Garotas pode ser assistido na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a visão do Canaltech.