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Crítica | Challenger: Voo Final relembra a tragédia que poderia ter sido evitada

Por| 30 de Setembro de 2020 às 20h20

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Na vida, existem aquelas tragédias que ninguém entende por que aconteceram, que mais parecem um "castigo divino" do que qualquer outra coisa. Por outro lado, existem também aquelas tragédias que poderiam ter sido evitadas, que são consequências de decisões erradas tomadas pelos envolvidos — e é exatamente aqui que se encaixa a tragédia com o ônibus espacial Challenger, que, em 1986, acabou explodindo logo após o lançamento e causando a morte de sete pessoas.

Essa história é retratada na série documental Challenger: Voo Final, que estreou na Netflix em setembro deste ano. A produção de quatro episódios retrata não apenas os acontecimentos com uma boa dose de fidelidade, como também proporciona reflexões válidas que envolvem a ganância e a irresponsabilidade humana, e como tudo isso impactou negativamente a evolução da exploração espacial não apenas para os Estados Unidos, como para todo o mundo.

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O voo ficaria marcado na história, mas por outros motivos

Desde o fim do programa Apollo, em meados da década de 1970, o apelo popular dos norte-americanos estava em baixa ao se pensar na exploração espacial — e no nome da NASA. Na época do primeiro programa lunar tripulado da agência, o assunto estava na boca do povo, com as pessoas acompanhando pela televisão a história sendo feita com a chegada de astronautas ao nosso satélite natural — astronautas que retornaram à Terra como heróis nacionais e elevaram a agência espacial de status.

Passado o frenesi do programa lunar, nos anos 1980 a NASA sentia a necessidade de realizar algum feito que devolvesse os olhares populares à sua direção. A decisão, então, foi usar o novo programa dos ônibus espaciais nessa jogada, e essa jogada foi promover o envio de uma pessoa comum à órbita da Terra — no caso, a professora Christa McAuliffe, escolhida após um processo seletivo como aquela que reunia todas as características que essa pessoa precisaria ter para mexer a fundo com o coração da nação.

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Christa foi adolescente na época do programa Apollo e se inspirou bastante naquelas conquistas, tendo a exploração espacial marcada em sua história de vida. A professora de história americana e estudos sociais foi escolhida entre os 11 mil professores dos EUA que responderam à campanha da NASA em 1984, que tinha como objetivo levar um educador ao espaço para que, de lá, ele desse aulas às crianças do país. Após ser escolhida, Christa se tornou celebridade nacional, conquistando os estadunidenses com sua simpatia, coragem e valores. E muito do impacto que a tragédia do Challenger causou na população se deu por isso — afinal, o país perdia não apenas uma professora, como uma professora que conquistou a simpatia de todos.

Ou seja: o voo do Challenger, que aconteceu em janeiro de 1986, ficaria marcado na história de qualquer maneira. Porém, a ideia era que ele devolvesse à NASA o prestígio de outrora, após provar que o ambiente espacial era "para todos", e não apenas para astronautas e especialistas no setor aeroespacial. Contudo, o que aconteceu foi que o voo do Challenger ficou marcado pela morte de seis astronautas e da professora que acabara de tornar a "queridinha" da nação — tragédia essa que foi transmitida ao vivo pela televisão e pela qual muitas crianças tiveram seu primeiro contato com o conceito de morte, além de tudo.

Arrogância, irresponsabilidade e humilhação em rede nacional

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A série reforça o quanto estava claro — ao menos para boa parte da equipe de engenheiros envolvidos no desenvolvimento do foguete que impulsionaria o voo do Challenger — que fazer o lançamento em um dia frio como aquele seria uma tragédia anunciada. Acontece que os chamados o-rings (anéis de vedação) do veículo eram confeccionados com um material que não mantinha sua resiliência em temperaturas inferiores a 11 ºC e, naquela época, estava fazendo um frio intenso na região do Cabo Canaveral — no momento do lançamento, por sinal, fazia 3 ºC.

Entre gravações originais da época e declarações recentes de envolvidos no "causo", que toparam ceder suas versões à produção da Netflix, fica indiscutível que, em vez de os gerentes e diretores da NASA seguirem a prudência, pedindo para que a equipe técnica provasse que o lançamento seria seguro apesar das contraindicações, o que acabou acontecendo foi que eles pediram aos engenheiros comprovarem que o lançamento falharia, o que não aconteceu — afinal, a montanha de dados analisados durante vários dias apontava grandes indícios de que uma explosão seria inevitável, mas não era uma prova definitiva disso. E, mesmo com o engenheiro-sênior e vice-presidente de engenharia dizendo que, por ele, o lançamento não deveria acontecer, o gerente-geral da NASA reprimiu sua visão técnica, forçando-o a aprovar o voo.

Tudo isso enaltece o quanto a NASA, naquela época, agiu de maneira arrogante acreditando que era capaz de "fazer qualquer coisa", sendo imprudente e inconsequente ao autorizar um voo que, do ponto de vista técnico, causaria um desastre praticamente inevitável. Dito e feito: os anéis de vedação se danificaram, um dos foguetes auxiliares começou a pegar fogo logo após o lançamento, e o Challenger explodiu no ar, matando toda a tripulação — com transmissão ao vivo para uma imensidão de pessoas, que esperavam testemunhar a história acontecendo, mas de uma forma vitoriosa, e não traumática.

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A série também mostra que, mesmo após o acidente, a NASA não "desceu do salto", mantendo as causas da explosão como segredo de estado e evitando que tudo isso caísse na mídia, o que mancharia ainda mais a sua reputação. Eis que, de maneira inesperada, o ganhador do Nobel, Richard Feynman, ao participar de uma comissão pública durante a investigação dos problemas, impediu que a NASA "abafasse o caso" ao demonstrar, ao vivo pela TV, como um o-ring se quebraria em baixas temperaturas — e o fez de um jeito bastante simplório, simplesmente mergulhando um desses anéis em um copo com gelo. Então, a NASA acabou sendo humilhada publicamente, uma vez que tamanha tragédia poderia ter sido evitada se a agência tivesse dado ouvidos a seus especialistas, em primeiro lugar.

Assim sendo, a ganância em manter o cronograma na tentativa de fazer do programa dos ônibus espaciais o novo motivo de orgulho da América falou mais alto do que o senso de responsabilidade, e a tragédia do Challenger acabou se tornando um retrato da ambição sendo posta acima de valores humanos básicos. No fim das contas, o acidente acabou sendo encarado, por muitos, como um assassinato — e reverter uma imagem dessas é uma tarefa difícil a qualquer um.

No auge de sua prepotência, a NASA acabou protagonizando uma das maiores tragédias já transmitidas ao vivo pela televisão e, com isso, ocasionou um atraso de décadas no avanço da exploração espacial, em diversos aspectos.

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Onde estaríamos hoje se não fosse a tragédia do Challenger?

Pois bem, logo acima falamos que a tragédia com o ônibus espacial Challenger causou um atraso de décadas no avanço da exploração espacial. Estamos falando, especificamente, de viagens rotineiras à órbita da Terra, bem como do conceito de veículos reutilizáveis que barateiam os lançamentos.

Sim, é verdade que o programa continuou acontecendo e só foi aposentado em 2011, mas, sem prestígio e sem confiança, apenas continuou realizando missões científicas como era de se esperar, não abrindo as portas para algo que poderia ter acontecido já a partir de 1986, que seriam as viagens espaciais para "qualquer pessoa", não somente para astronautas. Em 2007, Barbara Morgan, a professora reserva de Christa, acabou fazendo tal viagem, cumprindo o que deveria ter acontecido 21 anos antes. Contudo, o fez sem o prestígio que a ocasião teria tido se a tragédia com o Challenger não tivesse acontecido, também sem se tornar um marco como a viagem original teria se tornado se tivesse sido bem sucedida.

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Ao terminar de assistir a Challenger: Voo Final, é inevitável pensar em onde estaríamos se não fosse essa tragédia. Será que o turismo espacial já não estaria evoluído a ponto de, hoje, termos à disposição a compra de passagens de nave espacial para darmos uma voltinha ao redor da Terra quando quiséssemos (ou melhor, quando pudéssemos pagar por isso)? Afinal, caso a professora Christa tivesse cumprido seu objetivo, a NASA, desde a década de 1980, provavelmente continuaria investindo em levar cada vez mais pessoas comuns ao espaço, e é natural pensar que o turismo espacial seria apenas a fronteira seguinte a ser inaugurada logo depois disso.

Somente agora, mais de 30 anos depois, é que estamos vendo veículos espaciais reutilizáveis se tornarem "carne de vaca" — e, nesse sentido, o mundo tem a agradecer mais a Elon Musk e sua SpaceX do que à própria NASA que, já nos anos 1980, vislumbrava o uso de veículos reutilizáveis com o programa dos ônibus espaciais. O sucesso de veículos reutilizáveis é fundamental para que o acesso ao espaço se torne cada vez mais barato (ou menos caro), o que, consequentemente, abre possibilidades para o uso da órbita terrestre de muitas outras formas, além da execução de missões científicas, estas que nunca pararam de acontecer.

Desde o fim do programa dos ônibus espaciais que a NASA não trabalha mais com naves reutilizáveis, algo que só está mudando agora, com a chegada do programa lunar Artemis e sua nave Orion, que, dentro de poucos anos, começará a levar novos astronautas ao nosso satélite natural, sendo reaproveitada para viagens posteriores — algo que a SpaceX já faz com a sua Crew Dragon, que, em 2020, mostrou-se um sucesso ao levar à ISS e trazer de volta à Terra dois astronautas da própria NASA.

Resta, agora, acompanhar o desenrolar desse novo capítulo na história da NASA para descobrir se a agência espacial realmente aprendeu com os erros fatais do passado, deixando a arrogância para trás de uma vez por todas quando inaugurar a próxima era de seus voos espaciais, contando com novos foguetes, novas espaçonaves e novas oportunidades de provar que uma tragédia como a do Challenger realmente não tem mais chances de acontecer — ao menos não mais por motivos como prepotência e ambição desenfreada.

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Challenger: Voo Final está disponível no catálogo da Netflix.