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Crítica | A Chegada: amor, dor e outras histórias

Por| 18 de Agosto de 2019 às 12h30

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Sony Pictures Entertainment
Sony Pictures Entertainment

Há detalhes, formas e contextos poéticos que apenas os melhores poemas conseguem suportar. Rimas repetidamente pobres, técnica acima do que se sente, o que se sente acima da técnica... Equilíbrio, nesse sentido, geralmente é fundamental para uma poesia. Ou, ao menos, que quem escreve consiga passar ao leitor essa intenção da procura por harmonia. Rimar amor e dor – talvez a rima mais insultada hoje –, por exemplo, pode funcionar em toda a sua pobreza e perfeição quando quem a escreve não a usa pela facilidade, mas pelo que quer dizer.

“Como houve em nós amorE deixou de o haver?Sei que hoje é vaga dorO que era então prazer...Mas não sei que passouPor nós e acordou...”– Fernando Pessoa

Nesse mesmo poema, Fernando Pessoa – um dos maiores poetas de nossa língua (para mim, particularmente, o maior) –, na mesma obra (Amei-te e por te amar), além de rimar mais duas vezes amor e dor, utiliza, ainda, outras duas palavras que, quando rimadas, são muito atacadas ultimamente: amar e mar. E é justo no início, na primeira estrofe:

“Amei-te e por te amarSó a ti eu não via...Eras o céu e o mar,Eras a noite e o dia...Só quando te perdiÉ que eu te conheci...”– Fernando Pessoa
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Pessoa sabia, dentro de sua arte, como criar cenários diferentes e possibilidades de interpretação. Havia um cálculo racional no que ele escrevia. Sua habilidade técnica talvez só não era maior do que o seu sentir. Amor e dor ou amar e mar são rimas como quaisquer outras. Resta à poesia comprovar (ou não) a maestria de quem as usa.

A eterna ampulheta da existência

Se, por um lado e sem generalizar, vê-se a poeticidade nas artes caminhando por meio de um desprendimento de tudo – inclusive de noção do que de fato se está fazendo – há quem consiga aplicar conhecimento de mundo em cada elemento do que produz. Existe, em A Chegada (disponível no Telecine Play), uma espécie de amor pelo processo, pela existência, capaz de incluir o desconhecido.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

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Essa abordagem faz com que, por exemplo, Louise Banks (Amy Adams) entregue-se à sua função profissional não somente com o conhecimento que detém, mas com seu próprio corpo. Ao arriscar-se, a personagem não está somente passando por um momento perigoso – não existe essa gratuidade –; ela está, metaforicamente, afirmando aquilo que dissera antes para Ian (Jeremy Renner), que a língua é como uma expressão artística e, como tal, não interessa o seu saber se não existe também o doar-se.

Isso pode conduzir à percepção de que o conhecimento não é tudo sem a vivência. Trazendo para a minha área: Não importa tanto o quanto se estudou sobre o fazer cinema se não houve a experiência prática em algum momento; não importa tanto quantos pedagogos foram lidos e entendidos se nunca existiu o enfrentamento de uma sala de aula.

Tudo isso se reflete, igualmente, no contato com o desconhecido. Quando competência não é mais exatamente aquilo que se tem, mas aquilo que está à disposição do conhecimento, empenhar-se para, de fato, transformar-se em competente passa a ser uma prova de amor pelo que se é, pela sua própria vida. É um grau de envolvimento com o desconhecido que a direção de Denis Villeneuve consegue inserir até mesmo imageticamente. Seja ao mostrar, da visão de um helicóptero, nuvens encobrindo a tudo e dissipá-las à proximidade da nave (uma das) extraterrestre; seja dentro da nave, quando os seres estão encobertos por uma névoa e esta se dissipa à medida que o contato é realizado – e torna-se praticamente nula com a aproximação máxima de Louise ao tocar a barreira transparente que a separa de Abbott e Costello (em referência a uma dupla cômica dos Estados Unidos).

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É nessa incursão em direção ao inexplorado que Louise parece perceber que não há barreiras para o que é desconhecido. O retorno conseguido pelo seu toque a leva além da dificuldade de comunicação. Ela entende, ali, que está em contato com a barreira do tempo e, sendo o futuro o que de mais incerto existe na linha temporal, passa a ser fundamental a incursão de Louise em outra maneira de pensar. Teoricamente, ela estaria vivenciando o conceito filosófico do eterno retorno, que Nietzsche trabalhou em muitas obras e tem uma certa síntese em A Gaia Ciência:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes. E não haverá nela nada de novo: cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, tudo na mesma ordem e sequência – e, do mesmo modo, esta aranha e este luar entre as árvores; e, do mesmo modo, este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez; e tu com ela, poeirinha da poeira." – Friedrich Nietzsche

Para mais, o símbolo do eterno retorno – o Ouroboros – em muito lembra a língua escrita dos alienígenas. É como se Villeneuve, junto ao desenho de produção de Patrice Vermette (do mais recente Vice), deixasse pistas. Pistas estas que não alteram a percepção do todo se não forem absorvidas.

Uma forma de linguagem não fundamentalmente verbal

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Mas o roteiro de Eric Heisserer (do recente Bird Box – ou Caixa de Pássaros) e baseado no conto História da Sua Vida (de Ted Chiang) não se limita a debates internos. Há diálogos tão bem encaixados que podem levantar discussões sobre o quanto o mundo está mais disposto a resoluções duras, rápidas. Não há tempo para pensar em como a língua do outro constrói os pensamentos e formula as ideias, o que existe é a ânsia por saber sem que, para isso, seja necessário conhecer. A citação de que raças mais avançadas costumeiramente destroem outras civilizações é posta em xeque pela pacificidade dos alienígenas e, consequentemente, o alto grau de ignorância da humanidade é exposto.

Villeneuve desenvolve cada trecho com uma paz implícita que pode até incomodar. É como se ele tentasse passar a energia dos visitantes de outro planeta para o espectador. Com planos sisudos, movimentos de câmera apenas quando para ceder interpretações e enriquecer a história (como quando ao expor Louise a closes ou revelar sua mão em quase contato com Abbott), cores ora frias (nos momentos que pedem por paz ou melancolia) ora quentes (quando em meio ao já conhecido e alarmante futuro de Louise) – com a direção de fotografia Bradford Young (de Han Solo: Uma História Star Wars) agindo com perfeição –, o diretor costura tudo com uma precisão assustadora. Do mesmo modo, ele (Villeneuve) não se atém às exatas em sua abordagem científica – como poderia suscitar a presença do físico (a personagem de Renner) – ou ao academicismo da Dra. Banks. Ele encontrou o equilíbrio fundamental para alcançar uma atemporalidade.

Aliás, Villeneuve faz questão de ressaltar a humanidade dos seus personagens antes de revelar as suas titulações. Isso é claramente exposto na introdução do filme, quando o que se vê é uma sequência de cenas curtas, do nascimento à morte da filha da linguista (Adams). Esse grau de intimidade cedido já nos primeiros minutos procura construir toda a empatia necessária para que seja possível o interesse pela história e a delicada sugestão artística do diretor.

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É por se utilizar de muita sensibilidade para contar uma ficção científica, humanizando tanto seus protagonistas quanto alienígenas completamente diferentes dos humanos, que A Chegada abre as portas para uma abordagem poética. Enquanto em um contexto mais abrangente a poesia é relacionada com a arte em si, a totalidade do que se vê nas quase duas horas de filme é justamente uma explicitação do que é, em síntese, arte: uma forma de linguagem não fundamentalmente verbal.

Frágeis e imperfeitos

É pela poeticidade que tudo retorna, afinal, à apresentação inicial. Mesmo conhecendo um futuro dolorido, o caminho antes do fim parece valer a pena. A insistência em amar mesmo reconhecendo uma prevista fatalidade é a metáfora ideal inclusive para quem busca um sonho utópico: realizável sim, mas com chances praticamente nulas. Abraça-se o amor que modifica e se deixa de lembrar daqueles que sufocam. Torna-se, assim, quem realmente se é.

Há toda uma questão que enriquece a personagem de Adams nessa perspectiva. Mesmo ao ter conhecimento do futuro, ela o encara para viver tudo aquilo que já tinha conhecimento. Ela, sabendo de sua dor, mesmo assim busca conhecer o amor. Por um lado, é uma atitude nobre; por outro, entrega a personagem à sua essência como ser humano. Falhos como somos, às vezes não atingimos o grau de empatia necessário para se levar em consideração o outro. Louise, claramente, ama a sua filha como jamais amou outra pessoa (e, talvez, como jamais amará) e, mesmo assim – e sabendo do futuro daquela vida –, não encara a possibilidade de não a gerar. Enquanto isso, Ian, que sempre esteve ao seu lado, surge como o contraponto, aquele que revela sua humanidade falha ao se entregar à impossibilidade do perdão, afastando-se de sua família por não concordar com a decisão (que, de qualquer modo, deveria ser somente dela – de Louise) tomada por ela.

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“Mudaria sua vida se soubesse do início ao fim?”. Heisserer (inspirado por Chiang), assim como Villeneuve, não está disposto a entregar a resposta. A Chegada é um filme de perguntas. Louise (que opta por amar mesmo sabendo da dor) e Ian (que opta pela dor por amar) são dois lados de um equilíbrio que não há como existir. Essa relação de oscilação é exposta pela trilha sonora de Jóhann Jóhannsson (de Mandy: Sede de Vingança) com uma sobriedade sem tamanho. Enquanto o compositor (indicado ao Oscar por A Teoria de Tudo e Sicario: Terra de Ninguém e falecido em 2018 aos 48 anos de idade) traça uma harmonia climática em tudo o que ocorre no presente, a melodia de um violoncelo (e não somente) toma conta das cenas futuras, como se desenhasse, através da música, a saudade prevista.

Villeneuve, em suas decisões de jamais interferir nessa gangorra, tornou-se um artista que conseguiu rimar amor com dor sem qualquer dano ao trabalho. A rima pobre e perfeita dessas palavras tem a força dos seus significados individuais. A Chegada é, enfim, um poema (tanto visual quanto em seu contexto geral) tão poderoso quanto necessário. Sem ceder martelos para que possamos bater em pregos soltos, o filme abre cirurgicamente um peito e, antes de fechá-lo com uma costura que dificilmente deixará cicatrizes, faz com que nos sintamos aquele corpo. Ficamos abertos, imóveis, conscientes (mas nem tanto), sem qualquer dor traumatizante, mas com a certeza de que somos frágeis, imperfeitos e sem a menor ideia do que somos capazes de fazer com aquilo que nos é mais precioso enquanto seres sociais: a comunicação.

A Chegada pode ser assistido pelos assinantes do Telecine Play.