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Crítica | Em O Que Ficou Para Trás, terror não é um objetivo, mas sim um recurso

Por| 07 de Novembro de 2020 às 15h15

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O Que Ficou Para Trás, o novo terror de sucesso da Netflix, é mais um sintoma da nova era do terror. Profundamente permeado por problemas sociais (no caso a crise migratória na Europa), o filme usa o terror da ficção para falar sobre o terror real vivido pelos refugiados. O Que Ficou Para Trás também traz um diretor estreante, Remi Weekes, em um movimento que lembra muito o início das produções originais Netflix no sentido de dar oportunidade para narrativas pouco vistas nos cinemas, mas, ao mesmo tempo, é outra consequência do terror pós-Jordan Peele, o que se reflete também em outras características do filme.

Embora o desconhecido e o que não pode ser visto sejam elementos essenciais na construção do terror de muitos filmes, em O Que Ficou Para Trás esses recursos servem muito mais ao suspense de sequências específicas que para o terror, enquanto o medo e os poucos sustos vêm de entidades desveladas e postas sob a luz para plena apreciação do espectador. O filme passeia por subgêneros como maldição, casa mal-assombrada, zumbi, fantasmas, gore e terror psicológico, flertando com muita elegância até mesmo com o trash. Há, também, elementos de horror lovecraftiano, que, somados à fotografia alaranjada de alguns momentos e à presença de Wunmi Mosaku, lembra também o recente e incisivo Lovecraft Country.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

“Your ghosts follow you”

“Seus fantasmas te seguem” (em tradução livre), diz Bol Majur (Sope Dirisu). O mundo globalizado não é, nem de longe, homogêneo. A colonização britânica na África deixou marcas cujas consequências ecoam até os nossos dias e obras como, por exemplo, o livro As Alegrias Da Maternidade, de Buchi Emecheta, retratam como a invasão territorial, cultural e social alterou profundamente os povos colonizados. Vale lembrar também que este foi o mesmo processo que levou a África do Sul a momentos históricos terríveis como o período de Apartheid, muito bem representado na ficção científica Distrito 9. Terminado esse terrível período de invasão, esses locais continuaram sob constantes disputas de poder, com conflitos armados que forçam novas diásporas de cidadãos de diversos territórios africanos.

Fora da sua terra, o conflito cultural e a situação socioeconômica à qual são submetidos é mais uma parte do terror real sofrido pelos refugiados sobreviventes, isso porque qualquer travessia ilegal é sempre uma incógnita: sem nada que garanta a segurança dessas pessoas e tendo que viajar clandestinamente, muitos morrem anônimos pelo caminho. Isso é, ainda, apenas uma pequena parte da enorme e assustadora realidade de muitos refugiados. O conhecimento desses elementos é essencial para entender o terror de O Que Ficou Para Trás, que não é apenas mais um filme para entreter espectadores.

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Em O Que Ficou Para Trás, Weekes utiliza o terror como estratégia para gerar empatia. O assombro vivido pelo casal Majur nos é transmitido através de recursos típicos do terror para que sintamos também a angústia e o medo que os personagens sentem e, assim, criar uma ponte que propicia a compreensão. Nessa tentativa de causar empatia, que pode não funcionar para todos os espectadores, se esconde um silencioso grito de socorro endereçado ao mundo todo.

O filme quase todo oscila entre essa premissa de tirar o espectador da sua zona de conforto e a crítica social à hostilidade sofrida pelos refugiados, mas, ao fim, o filme assume também uma mensagem de força. O reconhecimento do que aconteceu, seguido de um apaziguamento das memórias traumáticas — que não vão deixar de existir, mas podem servir a algum propósito —, mostra que os fantasmas não devem ser temidos, mas sim honrados. Não é possível mudar o que aconteceu, a história foi tecida. Mas é possível criar um novo mundo a partir de práticas cotidianas banais (como assumir a posse da casa), atitudes essas que se tornam verdadeiros atos de resistência.

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Pós-Peele

É difícil não lembrar de Corra! ou Nós, já que ambos os filmes marcaram profundamente o terror ao ponto de fazer com que muitos dos filmes que estejam surgindo agora acabem fazendo referência justamente à essas obras de Jordan Peele. Além do conteúdo, que por si só já é um reflexo do cinema pós-Corra! ou pós-Peele, ainda é possível ver como a temática de Nós ajuda a compreender a relação entre os Majur e os espíritos que habitam a casa.

Em Nós, o discurso sobre privilegiados e invisíveis cria os terríveis doppelgängers, enquanto em O Que Ficou Para Trás o terror adquire características da tradição dos Majur, que trazem sua própria interpretação do que está acontecendo através de uma figura mítica que só se revela nos momentos finais. A máscara da falecida Nyagak é, provavelmente, o elo mais notável da referência à Nós, mas é importante notar que O Que Ficou Para Trás é um excelente filme por ser autoral, apesar das referências. Ao invés de questionar os lugares de privilégio e invisibilidade, o filme da Netflix sutilmente transmite a mensagem de que se deve conviver com os fantasmas que nos seguem não apenas porque eles nunca irão embora, mas também porque fazem parte da história dos protagonistas: cabe aos Majur honrar as mortes daqueles que foram condenados à invisibilidade histórica e uma das armas de luta do jovem casal é justamente assumir a nova casa como lar.

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O Que Ficou Para Trás, assim como os filmes de Peele, não tem intenção alguma de deixar o subtexto nas entrelinhas e joga na cara do espectador os problemas sociais. Os recursos cinematográficos, como os belíssimos momentos de divagação mental/ilusão, são os grandes ápices de um filme que denuncia uma realidade, nos faz criar empatia por suas vítimas, mas — o que provavelmente é o mais importante — reconhece os protagonistas como os principais agentes da sua própria jornada contra o apagamento cultural.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.