Crítica | Corra! para ver ou ver de novo
Por Laísa Trojaike • Editado por Jones Oliveira | •
Lançado em 2017, Corra!, de Jordan Peele, chegou com um orçamento modesto (quase 5 milhões de dólares) e viralizou a tal ponto que existem teorias da conspiração que o colocam no mesmo universo de Quero ser John Malkovich (de Spike Jonze, 1999), o que pode até não ter sido a ideia inicial do filme, mas caiu no gosto de ambos os realizadores. Na edição de 2018 do Oscar, Jordan Peele levou a estatueta na categoria de Melhor Roteiro Original, além de ter o filme indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Diretor. Oscar é atestado de obra-prima? Não. No entanto, ter um filme que é essencial e assumidamente terror em tantas categorias importantes de uma premiação popular como o Oscar é um sintoma significativo desse filme.
A grande repercussão da obra se deve também à bandeira política levantada por Jordan Peele a cada entrevista e a cada discurso quando ganhava um prêmio. O problema é real e o filme segue fresco para quem ainda não viu. Para quem já viu, vale a pena rever e tentar encontrar todas as camadas possíveis. Para quem já viu muitas vezes, ainda há muito sobre o que refletir. Para os assinantes do Telecine Play, o título está disponível no catálogo.
A partir daqui, o texto pode conter spoilers.
Mentira
Acredito que, como espectadores, devemos sempre tentar ver um filme com nossos próprios olhos e não com o olhar de outra pessoa, mesmo que esse olhar seja de um crítico, do próprio diretor ou a interpretação de alguém que admiramos. Nossa experiência é tão valiosa quanto a de qualquer outra pessoa e é importante que ela seja realmente nossa para que possamos colocá-la frente a outras experiências. Assisti Corra! tão logo foi lançado nos cinemas e revi algumas outras vezes em casa, geralmente recomendando o filme para familiares e amigos. Se Corra! voltasse hoje mesmo aos cinemas, ele continuaria tão fresco quanto era há dois anos e o motivo disso é simples: as coisas não mudaram muito nesses dois anos.
Mesmo que um dia sua temática se torne datada, o filme é executado de tal forma que muito provavelmente permanecerá como um lembrete, uma experiência necessariamente desagradável. Jordan Peele, estreante como diretor após mais de uma década atuando como ator e comediante, faz o que milhões de dólares investidos em tecnologia de imersão não conseguem fazer: colocar o espectador (ainda que minimamente) na pele do personagem. O sentimento de estranheza é praticamente imperativo e é constante a sensação de que algo está errado. Ao contrário da maioria dos filmes de terror, não temos um personagem que simplesmente permanece no ambiente que lhe é hostil contrariando todas as possibilidades lógicas e não é difícil entender que Chris Washington (Daniel Kaluuya) está aturando aquele final de semana como um esforço pelo seu relacionamento.
A questão racial é óbvia e inúmeras vezes Jordan Peele levou às entrevistas a ideia de que o filme trata diretamente da mentira que é a noção de que, após a eleição de Obama, os americanos estariam vivendo uma época “pós-racial”, discussão que não foi muito notada para os espectadores brasileiros, mas que muito provavelmente foi sentida: embora os diálogos insinuem o tempo todo que está tudo bem Chris ser negro, a atmosfera criada pela direção grita o contrário. É justamente por sabermos que as questões raciais (e de preconceitos de modo geral) não foram superadas que o terror de Corra! é ainda mais aterrorizante: até onde sabemos, toda a parte da intervenção cirúrgica é completa ficção, mas a sensação de estar constantemente isolado, em posição defensiva ou até mesmo ameaçado é uma realidade ainda comum.
Escolhas
Fazer funcionar a empatia é uma das maiores habilidades de Jordan Peele. Há, no entanto, uma tremenda responsabilidade envolvida na provocação que convida o espectador a ser parte da trama. Corra! possui dois finais bastante distintos: o pessimista, que foi o primeiro pensado por Peele, e o otimista, utilizado na versão final exibida nos cinemas.
Ao comentar o final alternativo (o pessimista) no canal Fear: The Home Of Horror, Peele descreve esse primeiro Chris como um mártir, enquanto o do final otimista seria um herói. Voltando à responsabilidade que tem uma produção sobre a experiência que proporciona, é interessante perceber como o final otimista, apesar de soar improvável mesmo dentro do próprio universo do filme, é muito mais capaz de mobilizar pessoas do que a outra opção: é preferível lutar pela causa do que morrer por ela.
Camadas
Da mesma forma que Heráclito disse não ser possível mergulhar duas vezes no mesmo rio, nunca vemos um mesmo filme duas vezes: ainda que, ao contrário do rio, o filme possa ser o mesmo (e não será caso as condições de exibição sejam distintas), nós jamais somos os mesmos. Um espectador é feito de suas próprias experiências e rever um filme nunca é de fato apenas rever, mas sim ver o que não havia visto antes. Alguns filmes nos oferecem um espectro mais limitado de informações, mas, de modo geral, um bom filme é praticamente inesgotável.
Jordan Peele constrói um roteiro que engana o espectador de uma forma positiva: a primeira vez que assistimos, somos tão alheios às intenções dos personagens quanto o próprio Chris. Assistir novamente nos fornece a experiência de ressignificar todos os primeiros momentos do filme, sobretudo no que diz respeito a Rose Armitage (Allison Williams). Quase todas as atitudes dela têm um duplo sentido: se em um momento ela parecia estar defendendo o namorado do racismo do policial, em um segundo momento podemos notar que talvez o policial realmente estivesse apenas fazendo o trabalho de registrar todos os envolvidos no incidente, enquanto Rose estava evitando qualquer espécie de registro que a colocasse ao lado de uma pessoa que em breve seria considerada desaparecida.
Essa e outras tantas interpretações revelam o quanto o filme é rico em detalhes, o que significa que não somente o roteiro foi muito bem pensado, mas também a sua decoupagem. Jordan Peele é um diretor extremamente consciente em cada escolha, mesmo nos mínimos detalhes. Em diversas entrevistas ele confirma que o material encontrado por Chris no interior da poltrona é algodão, material emblemático da história negra nos EUA, e chega a comentar que poderia ser outro material, mas, se ele tem em mãos o poder de escolha, por que não fazer uma escolha significativa? E é justamente esse tipo de pensamento que separa os grandes realizadores daqueles que não são memoráveis.
Corra! pode ser assistido pelos assinantes do Telecine Play.