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Crítica | "Nós" e a dança da vida

Por  • Editado por Jones Oliveira |  • 

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Universal Studios
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Ao modificar o final de Corra! para algo mais esperançoso, Jordan Peele demonstrou empatia. O desfecho pensado e filmado antes das eleições que dariam a vitória para Donald Trump mantinha a pegada de crítica social, entregando o jovem Chris (Daniel Kaluuya) à prisão. O negro culpado pela morte de uma família branca — e pego em flagrante em seu último assassinato. Observando movimentos como o Black Lives Matter, Peele revogou a ideia e optou pela linha que faz de Chris um herói sem que o protagonista precisasse pagar com sua própria liberdade.

Havia, ainda, outro final, mais aberto, que ficou na mente do roteirista e diretor. Esse fim diria respeito à questão de não se conhecer: Chris fugiria e, meses depois, seria encontrado pelo seu amigo Rod (Lil Rel Howery). Nesse trecho, ele (Chris) olharia para um espelho e diria não se conhecer... utilizando alguma forma de linguagem estranha. Não há gravações dessa opção, apenas uma entrevista com Peele.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

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Costurando o início com o final

Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei. – Jeremias 11:11

Diferente de Corra!, que traz uma crítica direta e ácida ao racismo e à apropriação cultural, Nós está contaminado por tudo aquilo que leva às atrocidades sociais. Peele deixa de lado as questões mais claras do seu filme anterior e embarca em uma viagem que vai em direção às raízes dos problemas. Indo além da busca por identidade no sentido pessoal, o roteiro do próprio diretor assume um ar histórico, contrabalanceando seus passos entre dicotomias: Uma é determinista, fica entre ser alguém por ter nascido de tal forma ou poder ser outra pessoa por ter uma criação diferente; outra, mais abrangente, abraça o todo e diz respeito a uma nação que é aparentemente exemplo, mas, no fundo, está doente.

É interessante perceber como um filme tão carregado de metáforas e simbolismos evolui tão naturalmente, dando espaço para que as referências sejam percebidas, abrindo alas para que suas intenções sejam notadas, mas, mesmo assim, deixando o todo livre dessas amarras. Peele, com essa forma de contar uma história, parece demonstrar um estilo próprio, construindo uma relação de proximidade tanto com o público que vê no cinema uma arte escapista quanto com aqueles que se entregam a um filme de uma maneira mais intensa. Há uma elegância na forma encontrada por Peele em Corra! e aperfeiçoada em Nós que contagia o conteúdo e funciona como imersão.

Nesse sentido, a frase inicial que surge na tela já planta uma das raízes do terror: o mistério. A citação sobre túneis subterrâneos existentes nos Estados Unidos, com o acréscimo do provável despropósito deles, deixa claramente em aberto algo a ser resolvido. Ainda assim, não é o suficiente para que o mistério tenha força de fato. Mas isso não tarda: Quando a pequena Adelaide (Madison Curry) afasta-se do desatento pai (Yahya Abdul-Mateen II) e acaba em uma sala de espelhos, ela adquire um trauma que a perseguiria por toda a vida.

As dimensões construídas por Peele, a esse ponto, são explicitamente sofisticadas. No que diz respeito às imagens, ele opta por separar completamente aquela criança de tudo o que a cerca após a saída daquele lugar. Para isso, utiliza uma lente com pouquíssima profundidade, deixando-a sempre bem visível em primeiro plano e com todo o restante desfocado – ou o contrário: focando na locação e desfocando a personagem. É perceptível também que, antes de entrar naquela sala, Adelaide deixa cair sua maçã do amor (toffee apple em inglês), sua ligação visual com o que é concretamente doce.

Uma sala de espelhos, por sinal, liga-se quase sempre ao clássico noir A Dama de Shangai (de Orson Welles, 1947), o que pode fazer muito mais sentido no desfecho de Nós. E há mais nessa introdução que costura o início com o final do filme: Ao escolher a camiseta estampada de Thriller, de Michael Jackson, aquela criança parece anunciar algo. Essa alimentação constante do mistério, desde a dita frase inicial, intensifica o terror pretendido por Peele. E isso é só o início, nos primeiros minutos do filme.

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A música e... "Seu irmão, cadê?"

A música de Michael Abels (companheiro de Peele também em Corra!) apresenta elementos que vão se misturando com as imagens de um jeito tão orgânico que parece impossível dissociá-los. Se o coral com vozes infantis introduz a questão do determinismo ao focar em um aspecto infantil, mais à frente, naquela que talvez seja das cenas que virão a figurar entre as mais bonitas do ano, os graves das cordas de uma orquestra contrapõem os pizzicatos (quando se toca pinçando as cordas com os dedos) de violinos, numa dança performática entre Adelaide e Red (ambas interpretadas por Lupita Nyong'o). A representação sonora de cada personagem fomenta uma das trilhas sonoras mais eficientes para um filme de gênero deste século. Abels não incomoda a história, não transforma o todo; ele acentua a intenção do diretor, fazendo com que sua música, apesar de propositalmente estranha para ouvidos mais consoantes, soe absolutamente orgânica (e, às vezes, passe até despercebida por isto).

Enquanto isso, o roteiro dá a impressão de que se desenvolve sem obstáculos, dando espaço para situações especialmente naturais: “Onde está seu irmão?”, pergunta Adelaide (Nyong’o) para Zora (Shahadi Wright Joseph) e, não ouvindo, a menina retira os fones do ouvido e escuta da mãe a mesma pergunta de forma mais casual, algo como “Seu irmão, cadê?”. Esses pequenos detalhes nos diálogos conseguem impor uma empatia quase que instantânea ao costurarem uma normalidade que se afasta da percepção de falas decoradas.

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Por outro lado, enquanto as piadas em Corra! são basicamente feitas por Rod, que pouco participa da história (estando afastado fisicamente de onde se passa a maior parte do filme), aqui o alívio cômico é Gabe (Winston Duke), o pai da família. Isso faz com que alguns dos momentos que se pretendem engraçados possam soar um pouco exagerados ou deslocados. Não é nada que afete o filme a ponto de Peele ter o controle perdido, longe disso aliás. A maioria, inclusive, demonstra uma agilidade enorme do roteirista e diretor em realizar a tensão e o alívio logo em seguida para, de repente, o retorno da tensão ter ainda mais força. Mas pode ficar a impressão de que Gabe ultrapassa o alívio cômico, e por isso, enfraqueça algumas sequências.

Pequenos detalhes, muitas pegadas

São os pequenos detalhes que fazem de Nós um filme tão bem pensado. A direção de Peele é milimétrica, funcionando como a mais bem-sucedida cirurgia. Na ida da família Wilson à praia de Santa Cruz, por exemplo, Adelaide sugere ao filho, Jason (Evan Alex), que estale os dedos no ritmo da música. Para além de ser algo que causa simplicidade e empatia, a personagem de Nyong’o está estalando os dedos no contratempo – consequentemente quebrando os tempos da música que toca no som do carro em duas partes, sendo seus estalos as segundas partes.

Ao chegar à praia, o diretor investe em um plano do alto, conhecido como God’s eye view, que se diz simular a visão dos olhos de Deus. Nesse plano, a família chega à areia acompanhada por sombras enormes. A ideia de Peele, executada com competência pelo diretor de fotografia Mike Gioulakis (do excepcional terror Corrente do Mal e de Vidro), deixa mais uma pista do que está acontecendo e do que está por vir. Tudo, claro, vai se somando na mente do espectador de uma maneira subjetiva que, aos poucos, ganha contornos concretos.

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É deixando tantas pegadas que o filme retorna à casa na beira de uma lagoa. O mistério, então, dá uma guinada e se solidifica como terror. “Eu não me sinto eu mesma.”, diz Adelaide para Gabe. Em uma leitura talvez mais profunda, pode-se descobrir que ela, na verdade, é o seu próprio reflexo. Ela é o medo; no espelho, ela é a imagem que existe sem haver corpo algum a se olhar.

Zumbis, vampiros e gêmeas do mal

Materializando o terror, Peele exibe uma família que representa uma espécie de oposto dos Wilsons. Ao perguntar quem eles são, durante um debate que referencia, em posicionamento e atitudes, Violência Gratuita (de Michael Haneke, 1997 e 2007), Adelaide escuta a resposta que é a base da dicotomia mais abrangente, aquela que denuncia o que, na prática, aquilo tudo quer dizer: “Nós somos americanos.”

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Como um vírus, Red (a outra face de Lupita Nyong’o) dá a impressão certeira de trazer com ela um mundo próprio. A atuação de Nyong’o é tão intensa e a sua composição vocal é tão acertada (e se justificaria ao final) que ela acaba se tornando o centro de Nós. Vale voltar, portanto, à ideia da camiseta estampada de Thriller, visto que Red é uma espécie de líder de uma legião de seres que em muito lembram zumbis – tão ordenados e conscientes quanto no videoclipe de Michael Jackson.


Quase tão referenciada quanto é a localização da praia de Santa Cruz, nas proximidades dos acontecimentos de Os Garotos Perdidos (de Joel Schumacher, 1987), um dos clássicos do terror vampiresco da década de 1980. Assumindo-o como elemento referenciado, quem são os vampiros da sociedade? Quem está na superfície ou quem sobrevive nos túneis subterrâneos? Nós ou eles?

Peele utiliza, também, as convenções tradicionais do gênero para assumir o seu terror. Há o contraponto social, por exemplo, materializado em Kitty e Josh (Elisabeth Moss e Tim Heidecker respectivamente) – casal que recebe o julgamento mais incisivo, por meio da música Fuck Tha Police, do N.W.A. Desse modo, tudo é realizado para a construção de uma familiaridade antes que a mesa seja virada: como as gêmeas Becca e Lindsay (Cali e Noelle Sheldon nessa ordem), que surgem como típicas adolescentes barbies para, por meio de suas sósias, tornarem-se referência às gêmeas de O Iluminado (de Stanley Kubrick, 1980) – ainda mais sendo embaladas pela música de Abels.

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A dança da vida

Nós é construído sob a luz da realidade e é nesta luz que está o seu maior terror. De qualquer forma, sua camada mais superficial, a da fantasia, é desenhada com um cuidado meticuloso. Essa junção tem força para dar a impressão (pretensiosa e acertada ao mesmo tempo) de que seu criador tenta agradar a gregos e troianos. Mas, afinal, o filme consegue ser sobre nós e sobre eles... e é assustador o que está no subterrâneo das entrelinhas: o fato de que, socialmente, sempre há espaço para que sejamos eles e o “nós” sejam outros.

A dança entre Adelaide e Red, prestes a encerrar o filme — e que em muito reflete o Cisne Negro entre os cisnes brancos do balé O Lago dos Cisnes (de Tchaikovsky), utilizado, claro, no filme Cisne Negro (de Darren Aronofsky, 2010) –, introduz o fim de maneira violentamente plástica. Não se trata apenas de uma dança pela sobrevivência. É a dança da vida, onde a morte está incluída e jamais deixou de existir. Então, pode-se voltar à sala de espelhos e ao noir de A Dama de Shangai, para, enfim, perceber onde sempre esteve a femme fatale. E ela nem precisa de uma maçã do amor.