Como The Last of Us quer acabar com as adaptações ruins dos videogames
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
Toda adaptação de um jogo para o cinema ou para a TV é recebida com desconfiança. Afinal, de Super Mario a Assassin’s Creed, são décadas de decepções e tentativas frustradas de levar uma história de sucesso nos games para outra mídia. E por isso a estreia de The Last of Us no próximo dia 15 de janeiro vem sendo tão aguardada. A nova série da HBO promete colocar um ponto final na famigerada maldição das adaptações.
É verdade que, nos últimos anos, as coisas têm melhorado. Sonic e Detetive Pikachu mostraram que é possível entregar algo de qualidade, mas são histórias mais infantis e bem longe das tramas mais maduras que os games apresentaram de um tempo para cá. Por isso, todas as atenções se voltam para o clássico do PlayStation.
Só que ainda restam algumas desconfianças. Afinal, são tantas frustrações acumuladas que é até compreensível se sentir pessimista. Ao mesmo tempo, todas as imagens e trailers mostram um grau de fidelidade tão grande que não há como não ficar animado. Mas também sabemos que a decepção tende a ser tão grande quanto a expectativa.
E a HBO sabe muito bem que esse misto de sensações é algo que permeia todos os fãs e faz questão de acalmar os ânimos. Faltando pouco mais de uma semana para a estreia de The Last of Us, a emissora garante que não só vai fazer jus ao material original como a série vai ser a melhor adaptação de um videogame que os jogadores já viram. Mas como isso é possível?
Acertando a mão
Vamos combinar que, na verdade, esse não é um desafio tão difícil assim. Como dito, são poucos os casos de jogos que se deram bem em outros formatos e muito mais por um olhar benevolente do público do que por serem adaptações primorosas. Só que, com The Last of Us, as coisas devem ser diferentes — ao menos é o que os envolvidos prometem.
Para quem não conhece, o jogo foi lançado em 2013 para PlayStation 3 — e, posteriormente, para PS4 e PS5 — e apresenta um mundo devastado por uma infecção causada por um fungo que transforma as pessoas em uma espécie de zumbi. Só que o foco não está na sobrevivência em meio aos mortos-vivos, mas na relação entre um homem e uma garotinha.
Toda a trama é centrada em Joel, que será vivido na série por Pedro Pascal (The Mandalorian). Ele é um homem que teve sua vida destruída por causa desse apocalipse e se tornou um contrabandista amargo que aceita um dia o trabalho de levar uma carga especial para o outro lado do país. No caso, estamos falando de Ellie (Bella Ramsey). E é nessa relação — que vai do total desprezo a uma dinâmica quase parental — que está o cerne de The Last of Us.
Isso faz com que a história seja bastante emotiva e menos voltada para a ação, como acontecia em The Walking Dead. E, segundo o showrunner do seriado, Craig Mazin (Chernobyl), esse é o grande segredo da adaptação: focar naquilo que o game tem de melhor.
Mazin não tem economizado elogios ao seu próprio trabalho. Segundo ele, The Last of Us será um marco na história das adaptações de jogos em um nível que, nas palavras dele, será impossível alguém fazer algo melhor no futuro. E parte disso é porque o material original permite isso.
“A maneira de quebrar a maldição dos videogames é adaptar o melhor jogo de todos”, diz o showrunner. Há um pouco de exagero na fala, mas ela revela bem o quanto essa trama de um pai sem filha e de uma filha sem pai tocou o produtor — a ponto de ele dizer que, antes de TLOU, os jogos eram apenas um punhado de pixels sem emoção. “Ele me encantou não só pelo jogo, mas por seus personagens e por sua história”, completa.
E é a partir disso que a esperança de vermos um bom trabalho começa a aparecer. Isso porque Mazin está certo: The Last of Us não é um game sobre sobreviver a um apocalipse zumbi, mas sobre o despertar de sentimentos em pessoas que perderam tudo e que abrem mão de tudo por isso, incluindo do futuro e até de sua própria humanidade. Esse é o cerne do game e que parece ter sido levado na íntegra para a tela.
Os trailers e imagens divulgados pela HBO já dão uma boa noção disso. Ainda que seja apenas uma amostra, toda a ênfase dada na promoção da série está na relação de Joel e Ellie e não nos diferentes tipos de monstros que eles vão encontrar pelo caminho. A ação é um complemento para uma história que é muito mais humana e emocional. Nesse quesito, o seriado parece ter acertado em cheio o que os fãs esperavam ver.
Outro ponto que torna tudo isso ainda mais promissor é o envolvimento direto de Neil Druckmann, criador de todo o universo de The Last of Us nos games e que se tornou parte central da adaptação. mais do que apenas supervisionar o trabalho, ele trabalha ao lado de roteiristas e do restante da equipe criativa para levar a história para a TV mantendo toda a essência do conteúdo original.
“O jogo significa muito para mim”, explica Druckmann. “É como um dos meus filhos e ver uma versão ruim dele acabaria comigo”. Por isso mesmo, ele aceitou participar ativamente do processo de adaptação, dando o norte tanto nos rumos que o roteiro deveria seguir como na própria estética e no modo como tudo deveria ser apresentado. Assim, a expectativa é que vejamos na HBO algo muito próximo daquilo que o PlayStation já nos mostrou antes.
Por que adaptar?
Mas se há um apego tão grande por parte do criador e do showrunner — que nada mais é do que um fã —, por que arriscar levar The Last of Us para a TV? Segundo o próprio Druckmann, tanto por uma questão de acessibilidade quanto para mostrar do que os videogames são capazes.
“Tem pessoas que nunca vão jogar um videogame na vida e ver pelo YouTube não é a mesma coisa, pois a experiência foi pensada para ser jogada e não assistida”, explica. “Eu sempre quis quebrar a tal maldição das adaptações para mostrar às pessoas que os jogos podem ter grandes narrativas. Que elas possam se surpreender e descobrir o potencial que existe nessa mídia”.
É por essa razão que ele aceitou levar a jornada de Joel e Ellie para a TV e não para o cinema. Druckmann conta que sua primeira ideia era transformar The Last of Us em um longa-metragem, mas percebeu o quanto era difícil condensar as dezenas de horas de história do game em um roteiro de 120 minutos. “Muito do coração, daquilo que faz do jogo ser especial, acabava se perdendo”, diz.
Para Craig Mazin, isso acontece porque a beleza de TLOU não é sua premissa — que é bem genérica, se formos olhar bem. Segundo ele, o que faz com que essa história funcione bem é a dinâmica de seus personagens e o modo como isso é construído, algo que exige tempo para ser desenvolvido.
Isso mostra o quanto os responsáveis pela série da HBO estão cientes das nuances e dos detalhes que ajudaram The Last of Us a se tornar o fenômeno que é. Como o próprio Mazin aponta, não se trata apenas de criar cenas que sejam iguais aos jogos, mas de criar momentos e situações que passem a mesma mensagem e emoção que conquistaram os jogadores.
Foco no que importa
Para isso, os produtores decidiram não cair em algumas armadilhas típicas de adaptações. Portanto, não espere encontrar referências, easter eggs e outros acenos gratuitos a quem conhece os jogos. A ideia é se concentrar naquilo que realmente importa para a trama, para seus personagens e para as relações que estão sendo apresentadas.
Pode parecer um ponto pequeno, mas é outro ponto positivo que nos deixa mais otimistas com The Last of Us. No histórico de adaptações, não são poucos os exemplos de filmes que tentam tanto agradar o jogador que se perdem em meio às referências. Do “Game Over” aleatório de Street Fighter: A Batalha Final à câmera em primeira pessoa em Doom, essas brincadeiras se tornaram muito mais uma maldição do que algo legal de se ver.
Segundo Druckmann, foi decidido que The Last of Us não iria brincar com easter eggs por considerar que isso tiraria o foco do que é importante para a história com coisas sem sentido. E embora os jogadores vão reconhecer muitos elementos vindos diretos dos jogos, cada um deles está ali por ser uma peça desse quebra-cabeça, ajudando a compor tanto esse mundo pós-apocalíptico quanto a personalidade e a relação dos personagens.
Ainda assim, ele antecipa que alguns elementos vão ser reconhecidos e que não puderam ficar de fora da adaptação. É o caso do bunker de Ish, um lugar que é totalmente explicado em documentos no game e que aparece sem muita explicação dentro da série. De acordo com o autor, isso só foi feito porque era impossível reproduzir a dinâmica no seriado e o local precisava aparecer por ter uma carga emocional única para a trama. Portanto, espere esse como o máximo de referência na série.
Adicionando coisas novas
Outro ponto de preocupação em qualquer jogo que é levado para a TV ou o cinema são as modificações. Afinal, é impossível adaptar uma história sem fazer alguns ajustes — e são nessas alterações que a bagunça geralmente começa. Com The Last of Us, a promessa é que isso não ocorra.
Primeiro, porque Neil Druckmann está trabalhando junto com os roteiristas para garantir o máximo de fidelidade possível. Segundo, porque tanto ele quanto toda a equipe sabem bem o quanto os fãs são apaixonados por esse universo e o quanto estão de olho em qualquer eventual tropeço.
A HBO já tinha antecipado que a série iria explorar elementos originais, sobretudo personagens que não existem no videogame ou que tinham uma participação muito pequena. No entanto, Mazin garante que essas intervenções são bastante pontuais e feitas para complementar e preencher aquilo que o jogo deixa em aberto ou é pouco desenvolvido.
Além disso, Druckmann conta que algumas ideias surgidas depois do lançamento do jogo foram reaproveitadas na série, mas não revelou quais.
Uma mudança que os fãs podem estranhar em um primeiro momento é o funcionamento da infecção do fungo. Nos games, a transmissão acontece tanto pela mordida de infectados quanto pela inalação de esporos em certas áreas, o que obriga Joel a vestir uma máscara de gás ao entrar nesses locais. Na série, isso não existe.
Segundo o criador do game, esse conceito dos esporos não funcionaria tão bem na TV por ser difícil explicar para o público por que essas partículas não são um problema fora dessas áreas específicas. Em tese, eles deveriam estar em todo o ambiente e isso forçaria os personagens a estarem sempre de máscara.
A solução para isso foi mudar o funcionamento dos fungos. Assim, o seriado traz infectados que estão literalmente mofados por dentro e em que o fungo está presente na mordida e que é possível até mesmo ver parte dele dentro dos corpos das vítimas. Em outras palavras, uma mudança sutil e que pouco impacta o cerne da história.
E é desse modo que a HBO pretende quebrar a maldição e estabelecer um novo paradigma para os jogos com The Last of Us. Por mais exagerado e até mesmo irritante seja o otimismo de Craig Mazin e demais envolvidos no projeto, não há como negar que tudo o que vimos e ouvimos até agora mostra que realmente vamos ter um divisor de águas vindo aí. Já não era sem tempo.
The Last of Us estreia no dia 15 de janeiro. Ao todo, a primeira temporada terá nove episódios.