20 anos de Metal Gear Solid, o jogo mais influente de todos os tempos
Por Rafael Rodrigues da Silva |
Um submarino atravessa as águas geladas do Pacífico Norte, com uma tripulação claramente militar, a distinguir pelos uniformes. Um torpedo é lançado em direção às rochas. Um ataque? Não... uma câmera guia o torpedo por entre as águas escuras, levando-o até um poço subterrâneo. De dentro, um homem emerge: voz rouca marcada pelo vício em cigarros, equipamento de mergulho completo. Um profissional. Ele nada até a superfície do poço, e chega exatamente aonde deveria estar: a base secreta da organização terrorista FOXHOUND. Seu nome é Solid Snake, e sua missão é simples: salvar o mundo.
E foi assim que, em 3 de setembro de 1998, éramos introduzidos ao mundo de Metal Gear Solid, o jogo para PlayStation que iria mudar toda a história dos videogames.
Um ano para não esquecer
1998 foi um ótimo ano para videogames — alguns até consideram que foi o melhor ano de todos os tempos. Foi nesse ano que nos surpreendemos com clássicos instantâneos como Resident Evil 2, StarCraft, The Legend of Zelda: Ocarina of Time, Baldur’s Gate, Fallout 2, Unreal, Pokemon Yellow e Half-Life. Mas, mesmo entre companhia tão estrelada, Metal Gear Solid se destaca. Afinal, ele não foi apenas um jogo excelente: foi um jogo que mudou para sempre todo o modo como desenvolvedores, jogadores e imprensa iriam enxergar um jogo de videogame.
A obra que mudaria para sempre a vida de seu criador, Hideo Kojima, começou a ser planejada em 1994, quando Kojima preparava o lançamento de Policenauts para o 3DO Interactive Multiplayer. Esse jogo já continha algumas artes conceituais do que viria a ser Metal Gear Solid, com desenhos dos personagens Solid Snake, Meryl Silverburgh e da equipe FOXHOUND.
No caso de Meryl, ela não só teve artes conceituais colocadas no disco como também apareceu como uma das personagens de Policenauts, algo que já desde aquela época mostrava que as criações de Kojima não eram simples polígonos feitos para suplantar uma necessidade, mas personagens tridimensionais que poderiam ser utilizados em jogos completamente diferentes entre si — e talvez seja um dos motivos por tantos fãs hoje acreditarem na teoria de que Death Stranding, o jogo em que Kojima está trabalhando atualmente, faça parte do universo de Metal Gear.
Desde a concepção, Metal Gear Solid era uma ideia ousada; a intenção era criar o terceiro título de uma série, que possuísse ligações concretas com os outros dois anteriores (Metal Gear e Metal Gear 2: Solid Snake, ambos lançados para o MSX), mas que não dependesse em nada deles para que alguém compreendesse a narrativa, já que ambos os jogos tiveram baixa distribuição e pouca gente os conhecia. A intenção da KONAMI — e de Kojima — era fazer com que a franquia de espionagem deixasse de ser um título conhecido por alguns poucos fãs japoneses e se tornasse um sucesso mundial.
E, para que isso fosse possível, a visão de Kojima era mudar tudo aquilo que conhecíamos por videogame.
Redefinindo o espião
Apenas um ano antes, em 1997, outro jogo de espiões havia feito enorme sucesso entre público e crítica: lançado para o Nintendo 64, GoldenEye 007 tinha feito enorme sucesso. Baseado no filme de mesmo nome lançado em 1995, GoldenEye 007 usava o “padrão Hollywood” de ação, o que rendeu um jogo como muitas cenas de tiroteio e a utilização de gadgets exagerados, como um relógio com raio laser. Apesar de ser vendido como um jogo de espiões, baseado num filme de espionagem e ter como protagonista o espião mais conhecido do mundo, GoldenEye não era, em sua essência, um jogo de espionagem. Mas, apesar disso, o sucesso do título fez com que, durante cerca de um ano, achássemos que a Rare poderia ter mudado para sempre o modo como o gênero seria retratado nos videogames.
De certa forma, Metal Gear Solid possui semelhanças com GoldenEye. Ambos utilizam dos clichês de espionagem criados pela franquia 007: uma organização terrorista secreta que possui tecnologia mais avançada do que o imaginado e deseja dominar o mundo; um agente que precisa derrotá-la sozinho apenas com a própria habilidade e inteligência, numa missão secreta que, caso dê errado, terá o envolvimento negado pelo governo que o emprega; a personagem feminina que é donzela indefesa, antagonista e par romântico ao mesmo tempo. No esboço mais básico, MGS não foge em nada das milhões de histórias sobre espiões vendidas por Hollywood. Mas ainda que a inspiração de Kojima fosse bem evidente, o modo que ele escolheu por representá-lo se distinguia bastante do mostrado pela mídia de videogames até então.
Desde que a Sony lançou o PlayStation em 1994, uma das estratégias de venda do console para as desenvolvedoras era a possibilidade de criar uma revolução: com o abandono de cartuchos e o uso de CDs, os jogos para PlayStation poderiam garantir uma maior fidelidade gráfica e de som (por conta da maior capacidade de armazenamento dos CDs em comparação a qualquer cartucho existente no mercado à época), o que permitiria que os jogos tivessem uma aproximação real à linguagem dos cinemas.
O PlayStation foi a primeira geração de consoles a popularizar as cutscenes (também conhecidas como cenas em CG), onde o jogador pode largar o controle para curtir um vídeo sobre a história que está jogando; um verdadeiro mini-filme. Em 1997, Final Fantasy VII foi o responsável por mostrar para os jogadores como essas cenas podem ser úteis para um jogo, utilizando-as para criar momentos de tensão e de maravilhamento que seriam simplesmente impossíveis como mecânicas de jogo. A morte de Aerith, por exemplo: a carga dramática da cena seria muito menor se Sephiroth simplesmente a matasse em uma animação de batalha, ao invés de naquela cena que até hoje impede muita gente de ter uma noite de sono tranquila.
E ainda que FF7 tenha mostrado como o uso de CG pode fazer bem para o processo narrativo de um jogo, foi Metal Gear Solid que as aperfeiçoou a níveis utilizados até hoje. As CGs do jogo não apenas lembravam a linguagem dos cinemas, mas pareciam um filme de verdade. A escolha do ângulo de câmera para cada tomada e o uso de dubladores garantia maior imersão para cada cena, e era possível sentir no conforto de casa a mesma emoção que o personagem sentia no jogo. Até a apresentação de cada personagem, quando aparecia na tela não só o nome do personagem em questão mas também do dublador que dava voz à ele, ajudava nessa impressão de que MGS fosse, na verdade, um filme jogável — sendo talvez o primeiro a agitar a discussão de se videogames seriam apenas criações de engenharia ou se poderiam ser uma derivação das artes audiovisuais.
Outra diferença perceptível é no roteiro. Comparado ao outro grande jogo de espionagem da geração (GoldenEye 007), a narrativa de MGS é muito mais complexa. É aqui que o jogo se parece muito mais um filme de espionagem do que de ação; muito mais Missão: Impossível do que James Bond. Ao invés de te enviar ao redor do mundo atrás de um grande mal, o jogo todo se passa numa única base do Alaska, com uma narrativa cheia de viradas de trama e que aborda temas como pesquisa científica, proliferação nuclear, comércio internacional de armas, geopolíticas pós-URSS e o microgerenciamento do legado de uma vida. Mais do que uma linha guia do que se deve fazer entre uma e outra luta com chefões, a narrativa de Metal Gear Solid existe para quebrar a expectativa do jogador a cada passo.
E várias dessas quebras de narrativas acontecem direto pelo codec, um intercomunicador que, na prática, funciona como uma “pausa para exposição”. Em diferentes momentos da aventura, a ação é interrompida por uma tela estática de comunicador, na qual uma conversa em áudio é usada para explicar algum personagem avistado ou algum evento que aconteceu. Até aquele momento, qualquer jogo que usasse uma tela de pause para dar profundidade ao mundo, explicar para o jogador a importância daquilo que aconteceu e do que está em jogo, certamente seria escorraçado por travar o andamento natural da ação. Mas em MGS essa solução não só funciona, como parece orgânica para o próprio andamento do jogo.
O Diabo está nos detalhes
Em entrevista para o Playstation Blog em 2012, quando comemorava os 25 anos de lançamento do primeiro Metal Gear para MSX, Kojima explicou por que escolheu o PlayStation como o console para o desenvolvimento de Metal Gear Solid. Enquanto trabalhava na produção de Policenauts para o 3DO, Kojima ouviu rumores sobre um console que permitiria a renderização de polígonos em tempo real, e aquilo o deixou intrigado sobre o tipo de jogo de ação que seria possível fazer com esse tipo de tecnologia. Para Kojima, a ideia de criar uma câmera que poderia mudar de ângulo com cada movimento do jogador era algo que o deixava ansioso para utilizar em um jogo da série Metal Gear. Por isso, assim que a produção de Policenauts chegou ao fim, ele imediatamente começou a produzir para o novo console da Sony.
Na essência de sua mecânica, Metal Gear Solid é um jogo de esconde-esconde, onde o conflito é criado pela necessidade de evitar conflito, a tensão do confronto é um produto da tentativa de evitar confronto a qualquer custo. No sentido básico do gameplay, MGS não trazia nada muito novo ou transcendental; os mapas da base Shadow Moses eram bem simples, sem nenhuma sofisticação, e 7 meses antes Tenchu: Stealth Assassins já havia introduzido o gênero de ação stealth em 3D. Mas a inovação de MGS não estava na essência das mecânicas, mas sim no polimento delas.
Sim, Metal Gear Solid não foi o primeiro jogo a basear toda a ação numa mecânica de stealth em 3D. Mas, ainda que Tenchu tenha introduzido conceitos como o cone de visão dos inimigos e a possibilidade de se esconder em quinas de paredes para esperar a hora certa de atacar, MGS levou esse conceito além ao colocar na equação o ambiente em si. Você não apenas podia se esconder numa quina da parede para atacar um inimigo sem ser visto, mas também dar tapinhas na parede, chamando a atenção desse inimigo para uma armadilha. Não apenas o corpo de um inimigo no meio do corredor iria chamar a atenção de outro soldado que passasse por ali, mas as próprias pegadas que seu personagem deixava ao pisar na neve podiam ser o suficiente para alertá-los de sua presença. Não só a neve, mas o próprio ambiente gelado poderia ser um empecilho para a missão: ficar muito tempo desprotegido em um ambiente externo fazia com que seu personagem pegasse um resfriado, o que fazia com que ele espirrasse aleatoriamente — e o som do espirro era o suficiente para comprometer a posição dele e fazer com que o local fosse infestado de soldados.
Assim como dos ambientes, o uso da câmera em Metal Gear Solid também foi algo inovador. Apesar de normalmente estar posicionada num ponto fixo acima do ombro de Snake, conforme o personagem se movimentava a posição da câmera podia variar, se distanciando numa área aberta para dar ao jogador a impressão de vastidão, ou se aproximando em salas mais fechadas, aumentando a sensação de claustrofobia. Além disso, a qualquer momento o jogador poderia optar para uma perspectiva de câmera em primeira pessoa, o que permite vasculhar com maior precisão cada detalhe do ambiente.
E conhecer cada detalhe do ambiente poderia ser a diferença entre o sucesso e a falha completa. Isso porque, ao contrário da maioria dos jogos de espionagem até então, armas não são as principais ferramentas de Snake. Ao contrário de James Bond, que utiliza relógios laser e submetralhadoras nada discretas, Solid Snake entende o significado da palavra “secreto” em “agente secreto”. Assim, ele precisa evitar não só o conflito com os soldados, mas também ser pego pelas câmeras e outros dispositivos de segurança do complexo. E ao invés de encher o personagem de tecnologias rocambolescas que tornam esses dispositivos inúteis, o jogo te impele a pensar em soluções mais discretas, como se esconder em caixas de papelão para não ser notado por câmeras de segurança ou utilizar a fumaça do cigarro para detectar feixes de laser de um alarme.
Além disso, ao contrário dos outros jogos de ação lançados até então, deixar uma trilha de corpos por onde o personagem passava não era mais uma necessidade, mas se tornava uma opção. O jogo oferecia uma série de armas e técnicas não-letais para se lidar com as ameaças da base, algo absolutamente impensável até então.
Um marco histórico
Ainda que desde o lançamento Metal Gear Solid já deixasse claro que era diferente de todos os jogos da época, é apenas vinte anos depois, com a vantagem do distanciamento histórico, que podemos entender a real importância que o título teve para os videogames como um todo.
Metal Gear Solid foi, sem dúvida nenhuma, o primeiro videogame da era moderna. O modo como Kojima utilizou a linguagem do cinema como base para seu jogo, e as mecânicas do jogo para influenciar na narrativa, fizeram com que as pessoas passassem a olhar com mais atenção para essa mídia, que até então era vista apenas como um brinquedo tecnologicamente avançado. Se hoje, em 2018, discutimos se os videogames são uma forma de arte ou não, é somente porque Metal Gear Solid nos ajudou a perceber que os jogos podiam, sim, ser muito mais do que um passatempo divertido. Como qualquer outra mídia audiovisual, os videogames podem (e devem) discutir assuntos complexos de nossas vidas, criticar políticas reais feitas por políticos reais, contar histórias que não só entretenham, mas que emocionam e nos façam refletir sobre nossas escolhas.
Assim, Metal Gear Solid está no mesmo panteão de títulos que mudaram a história dos videogames, como Pong, Mario e Doom. E, de todos esses, talvez seja o que é o mais fácil de notar a influência exercida em todos os jogos lançados atualmente — inclusive, ironicamente, nas mais recentes versões de Mario e Doom. Na tentativa de fazer um jogo que satisfizesse suas ambições, Kojima pode ter, inadvertidamente, criado o videogame mais influente de todos os tempo, que inspirou, de uma forma ou outra, quase todos os títulos lançados depois dele. E esse é o tipo de influência que talvez ninguém esperasse de um jogo de espionagem — mesmo que o papel do espião seja, em sua essência, exercer uma influência não esperada por ninguém.
Fonte: PlayStation Blog, Eurogamer, The Ringer