Surpresa! A Via Láctea pode ser diferente do que pensávamos
Por Daniele Cavalcante • Editado por Patricia Gnipper |
Parece que o debate sobre o formato da Via Láctea ainda está longe de terminar. Um novo estudo, publicado na revista The Astrophysical Journal, sugere que nossa galáxia tem dois braços principais, contrariando os mapeamentos que propõem quatro braços.
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O estudo sobre a forma dos braços espirais da Via Láctea remonta à década de 1950, quando William W. Morgan e seus colegas usaram medições de distâncias das estrelas de grande massa. Até hoje, elas são consideradas fundamentais para o mapeamento da galáxia.
Eles encontraram três segmentos curtos de braços espirais e, logo depois, as distâncias de nuvens neutras de hidrogênio (HI) revelaram que esses braços se estendiam por quase todo o disco galáctico. Acontece que as distâncias dessas nuvens não são tão confiáveis quanto se imaginava.
Nas pesquisas atuais, os mapas apontam para quatro braços principais: Sagittarius, Orion, Perseus e Norma-Cygnus, do mais próximo ao mais distante do centro galáctico. Contudo, há vários estudos que propõem modelos diferentes: apenas dois braços principais, um braço local maior do que o esperado e até mesmo sugestões de braços nunca encontrados antes.
Modelos de mapa da Via Láctea
A imagem acima é um dos mapas mais famosos hoje em dia, feito por Robert Hurt, do Spitzer Science Center. Ele procura sintetizar todas essas décadas de trabalho na busca por identificar o formato da Via Láctea e mostra uma espiral barrada de dois braços.
Nessa imagem, os braços principais são Scutum-Centaurus e Perseus, enquanto os secundários são Sagitário, o braço externo e uma dupla conhecida como “braços de expansão” (ou near 3 kpc e far 3 kpc), bem pertinho do centro galáctico.
Parece certo dizer que existem dois padrões diferentes de braços espirais em nossa Via Láctea: um interno e outro externo. Os modelos mais aceitos consideram que o braço de Sagitário é parte do padrão interno, enquanto o externo é formado pelos braços de Carina e Perseus.
Outro mapa, publicado em 2019, sugere a estrutura abaixo:
Como podemos observar, o mapa propõe que:
- Os dois braços de expansão estão no centro, em amarelo;
- Norma está conectado ao braço Externo, ambos em vermelho;
- Scutum e Centaurus estão relacionados, em azul;
- Sagitário-Carina também estão conectados, em roxo;
- Braço Local está em ciano;
- Perseu faz a trajetória da linha preta.
O problema é que existe muita dificuldade em descobrir a quais braços certas regiões realmente pertencem, por isso o debate ainda está em aberto. Uma das regiões problemáticas é o quarto quadrante (a parte inferior esquerda que aparece nos mapas), e é justamente ali que a nova proposta se concentra.
Por exemplo, alguns estudos sugerem que os braços Sagittarus e Carina fazem parte da mesma estrutura — tanto que às vezes são chamados de “braço Sagittarius-Carina”. Mas, como veremos adiante, as soluções da nova pesquisa para o quarto quadrante mostram que este pode não ser o caso.
Um novo mapa
Em seu artigo, parte da mesma equipe do mapa acima publicou um novo estudo, propondo um cenário em que Carina é, na verdade, um braço independente de Sagittarius — ou pelo menos desconectado por algum motivo, como a própria evolução da galáxia. Mas essa não é a única curiosidade do novo mapa.
Após analisar as estrelas gigantes e as regiões de nuvens de hidrogênio, os pesquisadores perceberam que, além dos principais, existem vários outros braços espirais na região externa da galáxia, incluindo os braços Externo (Outer, nas legendas das imagens), Local, Carina e Sagitário. Isso significa que a Via Láctea tem múltiplos braços bifurcados e/ou fragmentados.
Os braços Externo, Perseus, Local e Carina foram confirmados principalmente pelas estrelas do tipo OB2 (representadas na imagem abaixo pelas linhas sólidas pretas). O braço Local (onde o Sol “mora”) tem formato que parece se curvar no terceiro quadrante (canto superior esquerdo do mapa) e pode se estender para a frente.
E aqui começam as novidades: devido à falta de dados, os autores não conseguiram determinar se o braço Externo está conectado a um dos braços internos — em contraste com vários mapas que o considera parte de Norma. Além disso, o braço Carina pode não estar conectado ao Sagitário, o que também vai contra outros modelos.
Uma das chaves para decifrar Carina está no quarto quadrante (canto inferior esquerdo), e parece que o novo estudo conseguiu resolver o problema. Segundo os autores, os dados de objetos atribuídos aos braços Norma e Scutum-Centaurus se misturaram em outras pesquisas, mas o novo estudo mostra que eles pertencem ao mesmo braço: Norma.
Compare com o mapa de 2019 e repare que ali "Scutum-Centaurus" é um único braço que parte do centro da Via Láctea, terminando no lado externo (não confundir com o braço Externo) da galáxia. Já o novo mapa mostra Centaurus (linha pontilhada amarela) como um pequeno fragmento de Norma (laranja) — este sim um braço que parece terminar no lado externo.
Além disso, Sagittarius-Carina foram separados, embora ainda estejam bem próximos e fáceis de confundir. A estrutura de Carina no quarto quadrante (linha verde pontilhada) foi inferida usando dados dos objetos jovens detectados pelo satélite Gaia. Por fim, Sagittarius e Perseus se cruzam, formando uma bifurcação; portanto não estão separados um do outro.
Resumindo, os braços Norma e Perseus foram considerados os dois principais, provavelmente simétricos, na galáxia interna. À medida que se estendem para as partes externas, eles se bifurcam e se conectam aos braços de Centaurus e Sagittarius, respectivamente.
No estudo, também foram usadas como base as observações de galáxias espirais parecidas com a nossa, ou, pelo menos, pertencentes às categorias que talvez a Via Láctea compartilhe. Por exemplo, a galáxia M81 tem braços espirais bem definidos, enquanto as floculentas são mais irregulares, apresentando braços espirais descontínuos, como nuvens “fofas”.
Em ambos os casos, quase nenhuma dessas galáxias observadas possui quatro braços espirais estendendo-se desde os centros até suas regiões externas. Segundo os autores do novo estudo, “83% das galáxias externas com múltiplos braços apresentam claramente dois braços internos”, e este parece ser também o caso da Via Láctea.
Isso porque “baseado em dados de alta precisão de vários objetos jovens”, os autores afirmam que a Via Láctea é uma galáxia de múltiplos braços. “Esta é a principal diferença entre o nosso mapa e os mapas existentes, o que fornece uma possível alternativa para futuros estudos da estrutura galáctica”.
Claro, esse estudo não colocará um ponto final no debate, e mais observações serão necessárias para confirmar ou descartar essas alegações. Mas, se estiver correto, o novo mapa mostrará que a Via Láctea não é tão “diferentona” quanto se pensava anteriormente.