Estudar proteínas no espaço pode revolucionar o tratamento do câncer na Terra
Por Fidel Forato • Editado por Luciana Zaramela |
A Estação Espacial Internacional (ISS) é a base de diferentes pesquisas e experimentos que, de alguma forma, podem contribuir com o desenvolvimento de novos tratamentos, terapias e medicações na Terra. Este é o caso dos estudos envolvendo o comportamento de proteínas na microgravidade, relacionadas com novas formas de entrega dos anticorpos monoclonais prescritos contra o câncer.
Na linha de frente das pesquisas que podem transformar a maneira como anticorpos monoclonais (sintéticos) são entregues e, consequentemente, a forma com a qual o tratamento do câncer é realizado na Terra, está o pesquisador Paul Reichert, dos Laboratórios de Pesquisa da MSD (MRL).
Reichert foi um dos primeiros cientistas da indústria farmacêutica a propor o estudo da cristalização de proteínas sob condições de microgravidade há cerca de 30 anos, e o seu trabalho continua até hoje, como explicou no 19º Seminário Latino-Americano de Jornalismo em Ciência e Saúde, que aconteceu na quarta-feira (19) em Buenos Aires, na Argentina.
O Canaltech foi convidado para acompanhar o evento, organizado pela farmacêutica norte-americana MSD, de forma remota.
Como é possível estudar as proteínas no espaço?
Antes de seguirmos, cabe explicar que as condições experimentais em microgravidade são únicas. Isso porque, sem a força da gravidade da Terra, as moléculas se comportam de forma diferente — e mesmo o corpo humano pode sofrer alterações, como já observaram alguns estudos. Este é um dos motivos que levam pesquisadores a se questionar se, um dia, humanos poderiam engravidar no espaço.
Voltando às proteínas e ao processo de cristalização na microgravidade, existem duas principais formas de estudo. A primeira envolve entender a estrutura das proteínas e, como em um quebra-cabeça em 3D, identificar quais patógenos podem se encaixar nas suas formas e, assim, serem inativados. É basicamente uma plataforma para estudo de novos remédios.
No entanto, a cristalização também pode ser uma tecnologia usada no processo de fabricação de remédios e as atuais pesquisas de Reichert querem entender como este processo, feito em microgravidade, impacta a qualidade do fármaco. No atual entendimento, este processo pode facilitar a administração dos anticorpos monoclonais na Terra.
Em tese, os pesquisadores conseguiriam aplicar esse conhecimento em circunstâncias em que a gravidade está presente, desde que manipulassem as variáveis e simulassem algo como a microgravidade. Isso é viável a partir do uso de misturadores rotacionais para reduzir a sedimentação no fundo dos cristais.
Testes com remédios contra o câncer na microgravidade
O último experimento da equipe de Reichert foi enviado para o espaço em dezembro de 2021, com o astronauta Mark Vande Hei. A ideia do experimento era estudar os efeitos da pureza, mistura, difusão e temperatura na cristalização das proteínas na microgravidade.
Anteriormente, em 2019, a equipe publicou um estudo sobre a cristalização do anticorpo monoclonal pembrolizumab (Keytruda), na revista científica NPJ Microgravity. Nessas condições, as suspensões cristalinas de anticorpo monoclonal (mAb) eram "menos viscosas e sedimentadas de forma mais uniforme do que as suspensões cristalinas [realizadas na Terra]", afirmam os autores, após analisar os produtos nos hardwares desenvolvidos para os testes — é a placa preta na mão do cientista.
Afinal, onde os cientistas querem chegar com os testes em microgravidade?
Através da atual tecnologia, as sessões de infusão de anticorpos monoclonais são, normalmente, limitadas a baixas concentrações e grandes volumes de fluido devido a desafios de formulação. Uma sessão leva horas e deve ser repetida a cada três semanas.
"Hoje, [os anticorpos monoclonais] são aplicados como infusões intravenosas. São cinco horas de aplicação, nas quais o paciente e o cuidador precisam aguardar o tratamento. Queremos converter essas infusões em uma suspensão que possa ser mais concentrada e administrada no consultório médico, em cinco minutos, através de uma injeção subcutânea", explica Reichert.
Para mudar esta realidade, o principal desafio é criar novas formas de desenvolvimento do composto, capazes de manter a integridade química e estrutural dos anticorpos. Neste cenário, a formulação de suspensão cristalina de anticorpo monoclonal, em microgravidade, parece ser uma alternativa promissora e que permitirá uma nova maneira de entrega, em alta concentração, do medicamento.
Caso os estudos na microgravidade permitiam o desenvolvimento de novas formas de cristalização e de entrega da terapia, isso "melhorará a qualidade vida do paciente e reduzirá os custos significativamente em comparação com a infusão intravenosa".
Quais tipos de câncer poderão ser tratados?
Questionado sobre quais tipos de câncer poderão ser tratados com esta tecnologia, Reichert responde: "Posso dizer que os anticorpos monoclonais podem ser aplicados em quimioterapias em geral". Fora do espaço, estudos clínicos da própria MSD e da Moderna testam o anticorpo Keytruda contra o câncer de pele (melanoma).
Em paralelo à questão oncológica, "estamos tentando chegar a uma plataforma para fazer e preparar as fórmulas de suspensão de cristais que funcionarão com muitos anticorpos monoclonais e fármacos disponíveis", completa Reichert. Nesta futura lista, devem entrar as doenças autoimunes.
Fonte: Com informações: NPJ Microgravity e MSD