Crítica | Wolfwalkers traz conto folclórico que explode em beleza visual
Por Beatriz Vaccari • Editado por Jones Oliveira |
Filmes animados servem muitas vezes como uma forma mais delicada e nem tão bicuda de problematizar paradigmas já enraizados na sociedade. Pelo visual semelhante ao desenho, a mensagem chega como um filme infantil que se mostra, mais tarde, como algo para todas as faixas etárias, além de seu conteúdo ser bem-vindo até nas mentes mais fechadas. Em Raya e o Último Dragão, por exemplo, a Disney coloca o dedo na ferida ao abordar uma guerra geopolítica fadada à catástrofe por interesses individualistas; já em Os Boxtrolls, a Laika aborda os perigos de uma sociedade hierárquica utilizando o grupo dos Chapéus Brancos como uma ferramenta aristocrática.
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Os exemplos são diversos e, no Oscar deste ano, há mais uma produção de cunho político que carrega uma crítica social ao crime ambiental movido a negacionismo religioso ao mesmo tempo em que volta às raízes da animação 2D e explora a beleza dos desenhos à mão e da riqueza do folclore irlandês: este é Wolfwalkers, representante do Apple TV+ na premiação da Academia de Ciências Cinematográficas e forte concorrente a Soul, da Pixar.
Atenção! Esse texto pode conter spoilers sobre o filme. Leia por sua conta e risco.
Wolfwalkers é mais um trabalho do cineasta irlandês Tomm Moore, que mergulha nas origens do folclore irlandês e explode em esplendor visual. O longa-metragem de US$ 2 milhões de orçamento (que bate de frente com os US$ 200 milhões de Soul) traz o aconchego de uma obra aquarela e exploração do uso das cores em uma história até então inocente, mas que está longe de ser considerada infantil ao ter suas camadas descobertas.
O longa é ambientado em 1650 e acompanha a pequena Robyn (Honor Kneafsey), filha única do caçador Bill (Sean Bean). Ambos acabaram de se mudar da Inglaterra para a cidadezinha medieval Kilkenny, pois o pai fora convocado para ajudar com o extermínio dos lobos na floresta que rodeia o vilarejo em que vivem temporariamente. A jovem é hiperativa e sonhadora, disposta a ser uma caçadora após passar anos se espelhando nas habilidades com armadilhas e equipamentos de caça do mais velho — este, por sua vez, sempre cortando suas asas e direcionando-a para tarefas domésticas.
Tudo muda quando Robyn escapa de seu vilarejo e adentra a floresta, determinada a matar um animal com as próprias mãos. No entanto, ela acaba conhecendo a pequena Mebh (Eva Whittaker), uma wolfwalker, criatura mística que, ao adormecer, vê seu espírito desdobrar-se do corpo e assumir a forma de lobo. A partir desse momento, o conto irlandês cria forma nas mãos de Moore e do roteirista Ross Stewart, que trazem a mitologia para mais perto do conhecimento global como uma verdade maior, traduzida por sentimentos e inigualáveis ilustrações do estúdio Cartoon Saloon.
Em paralelo, Wolfwalkers ainda traz uma crítica carregada ao comportamento e liderança do Lorde Protetor (como é chamado pelos demais personagens do longa), um governante fascista que deseja acabar com a floresta e seus habitantes para ampliar a área urbana de Kilkenny. Robyn é a ferramenta que quebrará essa ordem social estabelecida pelas vontades ditatoriais do Lorde Protetor: seja pela teimosia em respeitar as vontades do próprio pai e desafiar a autoridade local ou por ajudar Mebh a encontrar a mãe, que está desacordada há anos porque seu espírito de lobo nunca voltou para o corpo.
Isso tudo é muito bem retratado pela arte animada do Cartoon Saloon, cuja técnica em aquarela misturada à animação em 2D traz um ar antigo ao visual. E isso é proposital: como se o espectador assistisse a um material antigo, histórico e, é claro, medieval — tudo muito bem pensado, já que uma das vantagens do cinema de animação é ir até lugares em que as câmeras não são capazes de registrar.
A arte vai além dos cenários, seja para entregar a atmosfera cinzenta e suja da parte urbanizada do vilarejo irlandês que transcende às telas: como em um momento que Mebh comenta como "a cidade" é fedorenta e o espectador quase pudesse sentir o odor pelas cores e traços grosseiros que desenham-na; ou pela caracterização dos personagens, em que a natureza está presente nos mais detalhados traços da pequena wolfwalker e o uso das cores, o desenho caricato da aparência do Lorde Protetor e o jogo de luzes das cenas o vilanizam de forma subjetiva.
Por fim, a forma como o mais improvável acaba se tornando uma peça-chave na história é o que torna Wolfwalkers sem igual — e um forte concorrente a Soul, que venceu as categorias de animação nas premiações até agora; mas trazer duas personagens femininas para protagonizar uma história de revolução e embate ao negacionismo religioso (de um líder que usa Deus para justificar suas próprias ações ou esconde a promoção de sua própria imagem na do divino) e, ainda acima de tudo, trazer questões ambientais por meio de um conto folclórico irlandês.
É claro que há alguns fatores que possam fazer o público mais jovem se desconcentrar da história, como os 100 minutos de duração ou os difíceis nomes dos personagens, lendas e locais em que o filme é ambientado. No entanto, Wolfwalkers pode soar muito familiar para quem acompanhou a trilogia carro-chefe da Dreamworks atualmente, Como Treinar Seu Dragão, seja por trazer criaturas mitológicas da cultura escandinava ou pela atmosfera medieval que acolhe o espectador logo nos primeiros minutos.
É difícil dizer se a animação de Tomm Moore levará um Oscar para casa esse ano, uma vez que a categoria possui nomes de peso competindo por apenas uma estatueta. Mas a derrota, se ocorrer, não torna Wolfwalkers um filme a se ignorar — muito pelo contrário, o título escondido no catálogo do Apple TV+ merece tanto apreço como qualquer longa da Disney, Pixar ou Dreamworks de um público de qualquer faixa etária.
Wolfwalkers está disponível no catálogo do Apple TV+.