Crítica | Ratched é a pura essência de Ryan Murphy, mas engana como prequela
Por Natalie Rosa |
Não é difícil ver uma captura de tela de uma série e não adivinhar que se trata de um trabalho de Ryan Murphy, caso você já tenha assistido às produções mais recentes dele. Depois de estrear na Netflix as séries American Crime Story, The Politician e Hollywood, o diretor/criador/produtor está de volta à plataforma de streaming com Ratched.
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A estreia, que conta como Sarah Paulson no protagonismo, é uma série inspirada na enfermeira Mildred Ratched, do clássico filme Um Estranho no Ninho, do diretor Miloš Forman, lançado em 1975. O longa foi baseado no livro de mesmo nome de Ken Kesey, publicado 13 anos antes.
No filme, a enfermeira é uma personagem misteriosa. Não se sabe sobre a sua vida, seu passado, suas reais intenções, seus relacionamentos ou família. Nada. Apenas a vemos como uma profissional de um hospital psiquiátrico, sendo a enfermeira-líder, mas que apenas deixa subentendido uma seriedade que não aparenta ser resultado de boas intenções. Vemos também no longa, brevemente, uma cena de tratamento feito com choque, mas é algo que não é explorado e muito menos desenvolvido, sendo então a brecha necessária para que uma obra derivada saísse disso tudo.
Atenção: esta crítica contém spoilers da série Ratched
Mildred Ratched foi resgatada do filme e transformada em uma personagem peculiar, intensa e decidida, mas isso não fica tão evidente desde o começo. Aliás, o mistério está presente na trama do começo ao fim, pois é muito difícil decifrar e desmembrar todos esses personagens que, ironicamente ou não, quase todos precisam de uma forte ajuda psiquiátrica.
Ratched surgiu no Lucia State Hospital, uma instituição psiquiátrica privada, decidida de que iria conseguir uma vaga de enfermeira no local. Para isso, ela conseguiu criar desafetos logo na sua chegada, manipulando todos os responsáveis pela sua contratação até que chegasse ao cargo. A situação já era estranha por si só, nos fazendo questionar o motivo de ela querer tanto trabalhar ali, mas toda a história piora e vira uma grande bola de neve.
A série se passa no fim dos anos 1940 e Murphy aproveitou toda a estética da década para criar uma produção visualmente forte, com uma fotografia bem colorida, penteados, maquiagens e peças de roupas impecáveis, mas sem deixar de lado as questões sociais debatidas na época. Durante o seu período menos intenso de trabalho no hospital, vemos mulheres sendo tratadas com a psiquiatria para "curar" o lesbianismo, algo que jamais passava pela cabeça de um médico como algo que não fosse uma doença, mas sim natural do ser humano.
Como a série traz muitas mulheres em destaque, é claro que o tema da homossexualidade, machismo e outros preconceitos são debatidos, seja com o tratamento de tortura feito com as pacientes que chegam no hospital, como com Gwendolyn Briggs (Cynthia Nixon) trabalhando com o desrespeitoso governador da Califórnia, George Wilburn (Vincent D'Onofrio), vivendo ainda uma vida de fachada para esconder a sua sexualidade fingindo ter um relacionamento com o marido, também homossexual.
Toda essa questão já é pesada por si só para absorver, imaginando que naquela época o preconceito era ainda maior, e isso acaba trazendo um pouco de horror para a trama. São cenas perturbadoras e difíceis de assistir, de procedimentos de lobotomia. Enquanto isso acontece, é difícil entender a que ponto os funcionários do hospital sentem pena daquelas pessoas ou não, sendo que esse sentimento acaba acontecendo somente com alguns. Mais uma vez, Ratched mostrando ser uma série cheia de elementos duvidosos e prontos para geraram em novas reviravoltas, pois inicialmente ela parece ser uma pessoa 100% apática e cruel, enquanto no desenrolar da história se mostra empática e preocupada com alguns pacientes.
A premissa da série é que ninguém nasce um monstro, mas torna-se um, e isso é revelado junto com o fato de que o paciente mais perigoso do hospital é irmão de Mildred. A história dos dois consegue ser mais perturbadora do que a série inteira, sendo eles duas crianças de pais diferentes que foram registradas como irmãos para sempre terem um ao outro, mas que foram vítimas de pais adotivos abusivos durante a infância inteira. A última adoção revela um casal perverso que gerou consequências graves para a cabeça dos dois, deixando o pior dos traumas com o irmão, Edmund Tolleson (Finn Wittrock), que tem o motivo da sua internação apresentada nos momentos iniciais do primeiro episódio.
Então, o roteiro fica mais fácil de ler, mostrando que a missão de Ratched é, realmente, salvar o irmão. Em meio ao decorrer desse objetivo somos apresentados a outros personagens tão bizarros quanto, como o dono do hospital Dr. Hanover (Jon Jon Briones), que ao mesmo tempo em que é completamente incorreto consegue ser eficiente em um dos tratamentos envolvendo a hipnose, até a enfermeira Dolly (Alice Englert) que se apaixona por Edmund e se transforma em uma pessoa ainda mais insana que ele.
Todos os personagens e atuações têm seus méritos e construíram seus personagens correspondendo às expectativas de Murphy na criação de uma obra. Vemos Sharon Stone mais incrível do que nunca representando uma mãe milionária de um filho seriamente perturbado, vemos também a atuação perfeita de Sophie Okonedo, interpretando a esquizofrênica Charlotte Wells e suas intensas personalidades, e até Sarah Paulson, a protagonista, consegue criar o papel de uma pessoa que sabemos que foi traumatizada e que, por isso, tomou as decisões que tomou, mesmo que isso não a torne menos odiável.
Não se deve esperar comparações com Um Estranho no Ninho ao assistir Ratched, visto que Ryan Murphy definitivamente apenas emprestou a personagem e a transformou em uma pessoa completamente diferente do imaginável, adaptado ao seu padrão de construir séries. É preciso desvincular as duas histórias para que não passar todos os episódios tentando fazer essa relação, sendo ideal acreditar se tratar de histórias independentes. No futuro, Murphy já afirmou ter a ideia de trazer o protagonista do longa para a trama, mas até lá ainda tem muita coisa para acontecer.
Ratched não deve agradar a muitos, principalmente as pessoas que não conhecem o trabalho do diretor, que traz características muito únicas para as suas obras. É claro que isso não é uma justificativa para a crítica negativa que a trama vem recebendo, mas se trata de um estilo que tem o seu próprio público, que clama por ver mais disso na televisão e no streaming.
Tem mistério, tem fotografia forte, tem gore, tem gente perturbada, tem tortura e um pouco de humor, daqueles que não sabemos o por que estamos rindo, afinal são cenas horríveis, tem debates sociais e tem muita estética, sendo um prato cheio para quem busca por esses fatores em uma série, mas também uma confusão mental para quem prefere uma trama mais próxima das possibilidades reais e menos teatrais.
A série Ratched está disponível na Netflix em oito episódios.