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Crítica | Destacamento Blood é uma obra-prima técnica que exige esclarecimentos

Por| 16 de Junho de 2020 às 10h18

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Spike Lee é um cineasta que deixa descarado em seus filmes que cinema é uma obra de arte de infinitas possibilidades: assim como um quadro pode receber tintas e quaisquer materiais de acordo com a vontade do artista, o vídeo e o som no cinema podem ser o que o diretor entender que deve ser (geralmente em acordo com a sua equipe). Muito do cinema é uma busca megalomaníaca por formas mágicas de imersão, como se um diretor pudesse inserir o espectador em sua história e controlar as emoções de um jeito que nem os melhores equipamentos de realidade virtual são capazes. Diretores desapegados dessa ideia de imersão e realidade no cinema são capazes das imagens mais impactantes e criadores de grandes filmes de arte, como a violência cômica de Quentin Tarantino ou o psicodelismo dark de Panos Cosmatos. Trata-se não da criação de mundos reais, mas de verossimilhança, uma lógica que funciona no contexto do próprio filme.

Destacamento Blood (disponível no catálogo da Netflix) não parece interessado em apenas contar a história de quatro veteranos que se reúnem décadas depois para encontrar um tesouro e o corpo do líder morto no Vietnã. Fazer muito mais do que isso não é uma ambição de Spike Lee, não é como se ele estivesse querendo provar qualquer coisa forçosamente, mas é o entendimento de um compromisso histórico. O entendimento de que o filme é muito longo ou muito enxertado de elementos diversos revela mais sobre o tipo de espectador que pensa isso que sobre o artista em si. Particularmente, a impressão é de que Destacamento Blood foi tão longo quanto precisou ser e tão repleto de discursos quanto os autores sentiram necessidade de expor.

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Spike Lee consolidou seu estilo há muito tempo, mas, para muitos, foi só com Infiltrado na Klan que o diretor conseguiu a popularidade que tem hoje. A crítica ao didatismo de Spike Lee voltou a ser pauta com o lançamento de Destacamento Blood, mas, novamente, acredito que o cineasta esteja sendo profundamente mal interpretado (em termos técnicos). Destacamento Blood é muito mais um desabafo engajado, que compreende que qualquer coisa é sempre múltipla e complexa, do que um enorme amontoado de questões diversas (guerra, racismo, traumas psicológicos, ganância, etc).

O estilo de Spike Lee funcionou perfeitamente em filmes como Infiltrado na Klan, mas tem um efeito complicado quando o cineasta perde seu lugar de fala. Muito do que chegou a nós sobre o Vietnã, sobretudo tendo em vista nosso pensamento colonialista, veio a partir de produções estadunidenses e é escasso nosso conhecimento sobre a cultura vietnamita. Não me parece que Spike Lee diminua a cultura vietnamita, mas quando ele aplica seu modo de fazer muitas vezes (propositalmente) caricatural a uma cultura machucada pelo imperialismo estadunidense, as coisas saem bastante erradas. Farei a defesa técnica de Destacamento Blood, mas infelizmente precisamos falar sobre o núcleo vietnamita.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Senta que lá vem polêmica!

Destacamento Blood não ignora que a Guerra do Vietnã foi sem sentido, uma empreitada do governo dos EUA cujo resultado foi uma tragédia com muitos mortos, feridos e traumas que precisarão de gerações para serem superados em ambos os lados, isso se forem superados. Precisei me debruçar sobre a crítica vietnamita (SAOstar, Ghiền Review, iOne e Next Phim) para tentar compreender a visão deles do filme após ter sido alertada por dois amigos críticos* que contrariaram minha primeira impressão de que o novo filme de Spike Lee era uma obra-prima instantânea e irreparável.

A montagem inicial e as sobreposições mostram os horrores da guerra e Spike Lee não pensa em diminuir nada disso ao mostrar imagens do conflito, expandindo o impacto de imagens que mudaram o rumo da guerra, como a execução captada pelo fotógrafo Eddie Adams e a Napalm Girl, Kim Phuc Phan Thi. Não parece haver indícios de ufanismo por parte da direção do Spike Lee, mas o diretor pode ter errado feio ao representar o Vietnã contemporâneo. Solidário ao que aconteceu, mas ainda assim equivocado sobre a cultura alheia.

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Essa perspectiva soa estranha, uma vez que as obras de Spike Lee têm um compromisso cultural e social. A caricatura também não é estranha aos seus filmes e personagens de grandes filmes seus, como Faça a Coisa Certa e Infiltrado na Klan são caricaturas respeitosas, pelo menos no que diz respeito à comunidade negra. Se a caricatura enfatiza características dos indivíduos de uma forma cômica, o resultado pode ser positivo ou negativo. Em Infiltrado na Klan, a caricatura do protagonista eleva Ron Stallworth (John David Washington) ao status de um herói blaxploitation, enquanto os membros da Ku Klux Klan são ridicularizados e, consequentemente, moralmente diminuídos.

Essa era a única explicação que eu tinha em mente para a representação que Lee faz dos vietnamitas, como se a caricatura fizesse parte do seu estilo. Um diretor consciente do que faz, no entanto, saberia que isso não funcionaria ao representar vítimas de uma guerra sem sentido. Não acredito que o diretor tenha sido racista com os vietnamitas, mas ele realmente não teve o tato necessário com a cultura alheia. Ao ler os artigos vietnamitas dos veículos que citei acima, muitos deles demonstravam que os autores estavam indignados com a representação de Saigon, o que é evidenciado sobretudo pelo momento em que os amigos saem do bar e são surpreendidos por uma criança que usa fogos de artifício para assustá-los. O objetivo do momento parece óbvio: demonstrar que qualquer coisa que soe como tiros deixa os veteranos à flor da pele (e há algumas “pegadinhas” com veteranos de guerra no YouTube que mostram esse humor perverso). No Vietnã, no entanto, é proibida a compra, venda ou posse de fogos de artifício. Além disso, os críticos locais disseram que não há tantas minas terrestres espalhadas por lá, nem tantas crianças afetadas fisicamente por isso nas ruas, além de que americanos não fariam aquela expedição sem um guia florestal (o que é um argumento mais fraco, já que eles não estavam interessados em agir na legalidade).

Em um vídeo feito para o Netflix Film Club, Spike Lee fala sobre como seu processo criativo e de responsabilidade com o que pretende fazer exige muita pesquisa histórica.Apesar disso, são fortes as acusações da má representação que o diretor faz do Vietnã. Ignorância por parte dele é certamente um argumento inaceitável. Talvez ele tenha focado tanto na questão dos Bloods que não deu a importância devida para a representação dos vietnamitas, o que também é uma falha grave, sobretudo em se tratando de um diretor experiente.

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Explicações são necessárias. Vale lembrar, também, que Spike Lee tem um posicionamento bastante polêmico sobre representatividade, o que inclui animosidades com Quentin Tarantino, e é surpreendente que ele faça com a cultura vietnamita justamente o que ele não aceita que seja feito com a cultura negra. Se eu tivesse escrito esse texto logo após assistir a Destacamento Blood, esse texto seria apenas elogios, mas não é possível deixar isso passar despercebido.

Prós e contras de um estilo

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As críticas sobre a representação dos vietnamitas realmente precisam ser discutidas, mas, deixando isso de lado para uma análise técnica, Destacamento Blood é impressionante. Mesmo que sua hipocrisia seja confirmada, ainda assim, tecnicamente, Spike Lee é genial.

Se os livros de História não contam a história com imparcialidade, Spike Lee é um diretor que vê na arte a possibilidade de passá-la a limpo e isso não é novidade na sua carreira. O tom documental transborda em meio à ficção, com o seu já estilizado modo de entrecortar a trama com imagens reais e fotografias, que podem tomar conta do frame ou fazer parte de alguma sobreposição que, aliás, é outro ponto fortíssimo da montagem de Destacamento Blood. A inserção de elementos da cultura negra dialoga justamente com quem tem conhecimento sobre o assunto, fazendo referências nada sutis (mas pouco reconhecidas, sobretudo pelas gerações mais novas) como o caminho percorrido pelos veteranos em um bar simulando a estrutura das Soul Train Lines**.

Há ensinamento, claro, e Spike Lee muitas vezes é condenado por seu didatismo. É preciso, no entanto, entender que existem formas positivas de didatismo. Um filme que explica a própria trama é didático de um jeito ruim, porque pressupõe que o espectador não é capaz de entender uma trama complexa e bons diretores raramente fazem isso. O didatismo de Lee tem a ver com a escrita da História: há algo que não está nos livros, é preciso fixar na memória das pessoas a imagem e os nomes de figuras que também fizeram História, mas tiveram seus nomes esquecidos. Esse didatismo, além de esteticamente consistente e narrativamente rico, é necessário pelo próprio posicionamento do autor.

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Destacamento Blood também é uma paródia requintada de Apocalypse Now, um dos melhores filmes de guerra de todos os tempos e uma forte denúncia da loucura que foi a Guerra do Vietnã. Diversos elementos estão no filme de Lee: a travessia de barco, a loucura, a desconfiança de que mesmo os vietnamitas inocentes são vietcongues, a Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner, o icônico e enorme sol no horizonte marcado pela silhueta de um helicóptero, a descendente de uma família colonial francesa e que “trabalhava” com borracha... Nada disso é escondido: Apocalypse Now dá nome ao bar que os veteranos vão em Saigon e, atrás do DJ, parte do pôster toma conta de uma parede. Um dos momentos mais marcantes do filme de Francis Ford Coppola reaparece, inclusive, no momento em que Paul (Delroy Lindo) faz seu monólogo, quando a trama já se encaminha para o seu final.

Tecnicamente, muitas referências de Lee parecem deslocadas, mas, se sabemos que Lee não é um diretor inexperiente e se sabemos que ele conhece a história do cinema e seus artifícios, se algo soa estranho, certamente não foi inabilidade e é nossa responsabilidade como espectador com senso crítico tentar compreender o que foi feito.

Se em Apocalypse Now Wagner era a trilha sonora de um ataque dos EUA (que, por sua vez, era uma comparação ousada com o nazismo), em Destacamento Blood a trilha concede uma grandiosidade à aventura do grupo: eles finalmente conseguiram e voltaram ao Vietnã, enfrentando um processo de cura e coragem. É o início de uma guerra pessoal, travada dentro de cada um dos personagens.

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Spike Lee parece propositalmente ter aplicado aos Bloods toda a glória aplicada aos heróis brancos em filmes de guerra e o efeito é cômico, mas profundamente forte. Esteticamente, as memórias de guerra adquirem o aspecto de uma produção setentista e Stormin' Norman (Chadwick Boseman) é absolutamente estilizado. O que pode parecer artificial e pouco verossímil, entendo como corroboração do que trouxe no início deste texto: Lee entende as possibilidades do cinema, da poesia audiovisual e brinca com estereótipos e clichês dentro do seu lugar de fala com primazia.

O diretor não faz apenas um resgate e uma correção histórica sobre os Bloods, mas também um resgate da produção cinematográfica e documental da guerra, o que aparece inclusive na inserção de diversas proporções de tela (aspect ratio) e no uso de Super 8, um equipamento importante por sua portabilidade para o registro da guerra. Embora as imagens em Super 8 não digam muito no contexto da narrativa de Destacamento Blood, essas mesmas imagens servem como o reconhecimento de que o registro documental também é uma arma, uma arma histórica, uma prova dos fatos.

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Infelizmente, Destacamento Blood levanta polêmicas sérias e parece dialogar muito melhor com quem tem conhecimento cinematográfico, tornando o filme intelectualizado e, portanto, menos acessível, o que certamente se torna um ponto negativo tendo em vista o público alvo do diretor. Por um lado, a estrutura técnica de Destacamento Blood é um convite à busca por conhecimento. Por outro, a falta de costume do público com obras esteticamente arriscadas e consideravelmente longas condena o filme ao estranhamento.

Com esse filme, muito do posicionamento de Spike Lee como militante e como cineasta parece ter sido posto em xeque: a genialidade (se ela de fato existe) não é explícita justamente porque muitos pontos são bastante dúbios. Mesmos elementos podem ser bem ou mal interpretados e, embora eu tenha apreciado muito o filme, não é difícil entender o posicionamento de quem interpretou Destacamento Blood como um filme controverso.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech

*Agradeço imensamente às discussões dos membros do Cineclube Natal, sobretudo nas figuras de Igor Gomes e Jonathan De Assis, que me fizeram atentar para a questão da imagem vietnamita pintada por Spike Lee.

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**Aqui, meu agradecimento a Jeff Augusto, que me ajudou a entender diversas referências culturais inseridas por Spike Lee na trama e que passariam despercebidas caso eu tivesse assistido ao filme sozinha.