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Os filmes da Marvel são mesmo desprezíveis?

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Marvel Studios
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Definir com exatidão o que é ou não cinema é muito mais uma tarefa dos teóricos do que daqueles que resolvem fazer, de fato, filmes. Da mesma forma, a crítica (e sempre que eu falar dela quero deixar claro que é na que acredito e não em uma verdade absoluta) existe para prolongar a experiência do espectador, ceder ferramentas para pensar e despertar o senso crítico em muitas camadas. Avaliar um filme, dizer se é bom ou ruim, é algo que existe no crítico enquanto ele é, no final das contas, um espectador. E, de fato, o crítico não é mais do que um espectador que, por algum encaminhamento da vida, por escolhas e até por sorte escreve sobre o tema que acredita lhe caber. Assim, para mim, imaginar a profissão de crítico como algo superior já é algo que desmerece o próprio profissional por ele não se enxergar enquanto espectador-que-escreve e, de algum modo, imaginar-se melhor do que aqueles que o lerão.

Nessa perspectiva, uma discussão que vinha sendo fermentada já algum tempo — dado o grau de dominação das salas de cinema pelos filmes de super-heróis — ganhou outros contornos com a declaração de Martin Scorsese sobre as produções da Marvel. O cineasta afirmou que a empresa subsidiária da Disney não faz cinema e que as produções iniciadas por Homem de Ferro (de Jon Favreau, 2008) são parques de diversão. Pode ser saudável respirar fundo e compreender o que levou um dos maiores diretores vivos a fazer uma declaração tão forte e, ao mesmo tempo, tão inconsistente. E não é difícil encontrar motivos.

Scorsese é um dos sujeitos, em Hollywood, que tem o conhecimento histórico mais vasto. Seus documentários sobre o cinema italiano e sobre o cinema americano são obras-primas necessárias para quem gostaria de entender o cinema desses países (e até do mundo) mais a fundo. A questão é que o fenômeno dos filmes produzidos pela mão controladora da Marvel parte do princípio do entretenimento. Por já estarem alicerçadas como arte — visto que o cinema é irrevogavelmente uma —, as produções se dão ao direito de, historicamente, darem um passo atrás. Isso porque o cinema, que ainda é muito recente, passou por duas etapas muito específicas antes de chegar ao status quo de arte: ciência — com Thomas Edison, William Kennedy Dickson, os irmãos Lumière, Louis Le Prince (e quem mais trabalhou nesse aspecto) — e entretenimento — com Alice Guy Blaché, Georges Méliès e tantos outros.

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Mas isso não quer dizer que é um passo atrás inválido e nem que para ser arte o cinema tenha deixado de ser ciência e entretenimento. As esferas se misturam e podem se harmonizar. Nesse contexto, a segunda declaração de Scorsese, ao dizer que, na verdade, os filmes da Marvel são “uma nova forma de arte” me parece mais respeitosa e, talvez, ainda equivocada, visto que o que acontece, na opinião do crítico que aqui escreve, é o dito passo atrás histórico (não-qualitativo) aliado a algo muito mais profundo do que essa pontinha do iceberg tende a revelar.

Com o mundo sedento por atividades que façam o dia parecer mais leve, o cinema acabou por se encaminhar para ser uma válvula de escape. Isso não é de hoje. Quando os faroestes surgiram em peso, carregando um público considerável para os cinemas, a ideia era de que filmes, encabeçados por lendas como Sergio Leone, faziam um cinema menor ou um trabalho que não valorizava a arte a favor de uma distração superficial.

A história, por mais que os filmes de super-herói (aqueles produzidos pela Marvel no caso específico) não possam ser comparados aos faroestes de Leone, John Ford, Sam Peckinpah e companhia, vai se repetindo. E a questão da comparação não pode ser concebida por um detalhe: se os diretores citados tinham suas assinaturas bem claras, os filmes da Marvel têm o carimbo da empresa... e nisso está a Fórmula Marvel: uma forma segura de sedimentar as produções, de larga escala e que, no final das contas, possuam uma unidade estilística clara e que possam ser vistas dentro de um universo único sem muitos problemas.

Quando algum diretor, dentro dessa fórmula, consegue aplicar algo seu, diferente, ou o filme é mais elogiado do que de costume ou é tido como um erro de percurso — dificilmente havendo espaço para comentários mornos —, o que é bem claro em Thor: Ragnarok (de Taika Waititi, 2017). Esse, talvez, seja o exemplo mais explícito da incompatibilidade entre questões autorais e a pasteurização promovida pela empresa comandada por Kevin Feige. Já o trabalho dos irmãos Russo (Anthony e Joe) geralmente são vistos como os melhores do Universo Cinematográfico Marvel (UCM): Capitão América 2: O Soldado Invernal, Capitão América: Guerra Civil, Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato. Esses podem ser considerados bons filmes por uma maioria, mas isso se dá porque os diretores conseguem se entender com a fórmula e, de alguma maneira, estabelecer uma comunhão com a pretensão de Feige.

Nada disso, ainda, é uma nova forma de arte. Os filmes do UCM são cinema e, por mais que tenham como prioridade o entretenimento, não são desmerecedores de serem o que são. E, no mesmo dito mundo onde a procura por diversão é uma necessidade até de saúde mental, esse ponto acaba por ser bem sensível: no momento em que o público alcançado é absurdamente mais elevado do que o de uma obra-prima contemporânea (em minha opinião – reitero) como A Árvore dos Frutos Selvagens (de Nuri Bilge Ceylan, 2018), filmes como Pantera Negra (de Ryan Coogler, 2018), por mais que estejam dentro desse espectro formulaico, dão voz e representação a minorias de uma maneira global que somente um blockbuster poderia fazer.

Mas Scorsese não foi tão insensato quanto seu colega Francis Ford Coppola. O diretor que, para mim, tem umas das décadas mais perfeitas da história do cinema (a de 1970, com as duas primeiras partes de O Poderoso Chefão, A Conversação e Apocalipse Now – 1972, 1974, 1974, 1979 respectivamente), desconsiderou toda a relevância social de sua própria arte ao afirmar que os filmes do UCM são desprezíveis. Do alto dos seus vinhedos, Coppola demonstrou não enxergar a força que tem uma criança negra de periferia se ver representada por um super-herói (escrevi sobre isso ao comentar sobre Os Guerreiros da Rua e o cinema como ferramenta social) ou uma mulher percebendo-se poderosa, após anos de submissão, com a Capitã Marvel (de Anna Boden e Ryan Fleck, 2019).

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Em meio a tudo isso existe o fato claro do domínio das salas de cinema pelos filmes de super-herói e é nisso que reside o maior problema. Quando não há a chance de o público assistir a um filme como o citado A Árvore dos Frutos Selvagens; quando o espectador não tem uma mínima intimidade com questões autorais por falta de oportunidade... dificilmente haverá abertura para algo além do próprio domínio. É verdade que a facilidade para se encontrar todos os tipos de obras é muito maior do que na época dos faroestes de Ford — a internet esconde maravilhas —, mas também é factível que o peso dessa mesma facilidade, a força de ser soterrado pela mídia, pelo marketing duro e incessante e pela construção social da necessidade de assistir àquilo que todos assistem e comentam são os maiores formadores de opinião da nossa geração.

Em resumo, o cinema tem sofrido do mesmo que sofre a educação: a falta de um pensamento a longo prazo. E está tudo interligado. Porque pensar o futuro não dá lucro. Tolher uma sociedade a ponto de torná-la substancialmente mecânica, subjugando humanidades e o pensamento crítico é um problema estrutural. Está tudo tão emaranhado que não é culpa de uma decadência (inexistente) do cinema ou da Marvel o domínio dos filmes de super-herói e, ao mesmo tempo, Feige e companhia são cúmplices dessa estrutura esmagadora.

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Gênios também falam besteiras, mas comentários como os de Scorsese e Coppola são pensamentos deles enquanto espectadores; são revelações de gostos pessoais formados por mentes individuais que jamais devem representar verdades absolutas (como minhas palavras também não representam). No meio disso tudo, é interessante como um expoente do cinema francês, da nouvelle vague — e também da crítica —, pode ser mais sensato. François Truffaut, em seu livro O Prazer dos Olhos: Escritos sobre Cinema, diz:

“Discute-se muito a propósito do que deve ser conteúdo de um filme: devemos nos ater ao divertimento ou informar o público sobre os grandes problemas sociais do momento? Fujo dessas discussões como o diabo da cruz. Acho que todas as individualidades devem se exprimir e que todos os filmes são úteis, sejam formalistas, barrocos ou engajados, trágicos ou ligeiros, modernos ou obsoletos, em cores ou em preto e branco, em 35mm ou em super-8, com estrelas ou desconhecidos, ambiciosos ou modestos...”

No final das contas, falta muita oportunidade para o contato com o cinema em sua totalidade. Falta espaço para o autoral — e os streamings têm sanado isso de algum modo. É o cinema se transformando sem deixar de ser cinema; é ciência sempre (Projeto Gemini – de Ang Lee, 2019 –, por exemplo, pode ser visto mais como ciência do que como outra coisa), é entretenimento também e é arte. Cinema é tudo isso e não deixa de ser a máquina de sonhos de Méliès.