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Crítica | Capitã Marvel: para que ninguém sofra como Nannerl

Por| 08 de Março de 2019 às 20h00

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Crítica | Capitã Marvel: para que ninguém sofra como Nannerl
Crítica | Capitã Marvel: para que ninguém sofra como Nannerl

A caminhada dos direitos das mulheres sempre teve o dedo masculino. No Brasil, por exemplo, vivia-se em uma repressão patriarcal da invasão (em 1500) ao fim do Brasil Colônia (em 1822). Nesse período em especial, as mulheres só não eram mais subjugadas do que os negros (logo, tudo era ainda pior quando se tratava de mulheres negras). Elas eram propriedades, primeiro dos seus pais ou irmãos (do chefe da família) e depois dos seus maridos. A luta, durante mais de três séculos, era por direitos básicos, como ao voto, à educação, ao mercado de trabalho e ao divórcio.

Longe da terra do pau-brasil, não era tão diferente. Na Áustria do século XVIII, Maria Anna Mozart, tão talentosa quanto o irmão mais novo, Wolfgang Amadeus, trilhava um caminho na música que seria praticamente esquecido na história. Nannerl (como era apelidada) – que chegou a ser considerada superior como instrumentista – era deixada em casa pelo pai, Leopold, para costurar e se empenhar em conseguir um marido enquanto ele (o pai) acompanhava o irmão em turnês pela Europa.

Talvez, esse tipo de relação explique justamente o que é o feminismo: não é o posicionamento das mulheres como seres superiores; não é o contrário de machismo; não é matriarcado. Feminismo é a igualdade entre os gêneros. Uma igualdade que teria deslocado Nannerl e tantas outras mulheres dos rodapés para os textos principais e as deixado protagonizar suas próprias vidas.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers.

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Onde está a protagonista afinal?

Capitã Marvel surge, após mais de uma década de filmes produzidos pela Marvel, como o primeiro protagonizado por uma super-heroína. E não somente: junto à produção, vêm Anna Boden e Geneva Robertson-Dworet como corroteiristas e a própria Boden como codiretora. Ao mesmo tempo, basta perceber nos créditos finais que algumas funções essenciais para a construção do filme também estão nas mãos de mulheres, como Debbie Berman (de Pantera Negra) na montagem e Pinar Toprak (que compôs inclusive para o jogo Fortnite) na trilha sonora original. São realizações possivelmente sem precedentes para a cultura pop representada pelos filmes do Universo Cinematográfico Marvel (MCU).

Nesse sentido, é interessante o quanto existe a tentativa de humanizar Carol Danvers (Brie Larson), distanciando-a de quaisquer estereótipos e afastando-a da sexualização. Se, em um primeiro momento, ela levanta-se para lutar em treinamento contra Yon-Rogg (Jude Law), mais à frente ela entende que não precisa dele para ter sua independência. Em uma das melhores cenas do filme, Yon-Rogg a provoca para que ela o enfrente sem seus poderes e a resposta é uma metáfora poderosa como recado: “Não tenho nada a provar para você.”

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Por outro lado, ao mesmo tempo em que é um momento forte pode ser também o calcanhar de Aquiles da produção. Isso porque uma interpretação nunca é unânime. Assim sendo, a frase dita pela Capitã pode ecoar e rebater nos fãs mais ardorosos da MCU, provocando uma espécie de resposta mental. Algo como: “Sim. Você precisa nos provar. Pagamos o ingresso para isso.”

Acostumados a dramas indies, a diretora Anna Boden e seu parceiro Ryan Fleck, que juntos dirigiram o excelente Sugar (de 2008) e a delicada comédia-dramática Se Enlouquecer, Não se Apaixone (de 2010), demonstram alguma falta de tato com o público de um blockbuster. Nada que comprometa o resultado, mas é uma forma que acaba por deixar o conteúdo um tanto quanto em segundo plano. É visível a empolgação da dupla com as cenas de ação e com os planos gerais que transformam os personagens em seres minúsculos – o que contrasta intensamente com o tom intimista dos seus filmes anteriores.

Dessa maneira, os créditos iniciais, que trazem uma homenagem lindíssima in memoriam para Stan Lee – modificando até mesmo os tradicionais quadrinhos que formam o nome da empresa –, emendam em uma abertura frenética que pouco dá chance de o espectador conhecer o mundo Kree. Onde está a protagonista afinal? Intercalam-se planos impessoais que revelam um mundo vasto e vertical com a primeira sessão de treinamento da heroína. Quase nada, ali, tem poder para causar intimidade. Capitã Marvel acaba preso à ação, à grandiosidade, com seus mentores esquecendo exageradamente que o filme trata de uma origem.

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Brie Larson e Samuel L. Jackson (e os gatinhos)

Embora existam correlações dentro do MCU, como em Guardiões da Galáxia (de James Gunn, 2014), e até mesmo na série Agents of S.H.I.E.L.D., a sensação pode ser estranha para um filme de gênese, especialmente por se tratar de uma obra sobre uma super-heroína tão importante para os fatos que virão (a primeira cena em meio aos créditos finais é simbólica por esse ângulo). A apresentação dá lugar às demonstrações de força, de poder, para que o público entenda quão poderosa é a Capitã Marvel. Parece, em suas camadas mais rasas, que se trata de uma personagem que dispensa apresentações, quando, na verdade, é justamente o contrário.

Mesmo assim, a partir do segundo ato, quando Carol chega ao planeta C-53 (a Terra), tudo parece dar uma respirada e, enfim, o roteiro (escrito pela dupla que dirige e por Geneva Robertson-Dworet – de Tomb Raider: A Origem) começa a buscar revelar os segredos do passado daquela que dá nome ao filme. Nesse ponto, é de uma eficiência enorme a química entre Larson e Samuel L. Jackson (que se mostra, inclusive, nos vários eventos de divulgação da produção).

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Enquanto com Law tudo é acertadamente mais superficial, é contracenando com Jackson que a atriz parece se soltar mais e encaixar um carisma fora do comum. Se ele demonstra estar se divertindo ao interpretar o jovem Nick Fury, ela torna-se absoluta e, de fato, encarna a Capitã Marvel em sua forma mais humana possível, alcançando uma naturalidade para o papel que, talvez, só mesmo Robert Downey Jr. (Tony Stark, o Homem de Ferro) tenha dentro da equipe dos Vingadores – por mais que todos sejam mais do que eficientes em seus papéis.

Capitã Marvel, ainda, tem uma carta na manga que é particularmente excepcional: Goose, o gato que rouba todas as cenas em que aparece e tem uma relação especial com Nick Fury – relação tanto emocional quanto, posteriormente, física. E não somente: com o filme tratando de mundos alienígenas, o bichano – que nas HQs se chama Chewie em homenagem ao Chewbacca (de Star Wars) – acaba por se tornar uma referência ao gato sobrevivente de Alien, o Oitavo Passageiro (de Ridley Scott, 1979). E se torna uma referência ainda mais acertada e profunda quando se lembra que o filme de 1979 era protagonizado por uma das maiores heroínas da história do cinema, a Tenente Ripley (interpretada por Sigourney Weaver).

Ainda referenciando os felinos, Goose tem um paralelo interessante com o gato Orion de MIB: Homens de Preto (de Barry Sonnenfeld, 1997). Se Orion transporta o universo em sua coleira, Goose carrega o elemento que ditará o futuro do universo de um modo gloriosamente mais gosmento e que encontra seu eco final e derradeiro na última cena, após os créditos.

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Para que todas possam ser

Capitã Marvel é um filme que se encaixa naturalmente dentro do MCU. Muito devido à sua responsabilidade político-social de abraçar, sim, o feminismo e, em parte, pela capacidade da Marvel de guiar seus projetos com mãos de ferro. Sem espaço para diretores autorais terem muita autonomia, a empresa continua com uma unidade absoluta, refletindo-se, entre tantas questões, nas poucas lembranças sobre quem dirigiu os seus filmes. Não são filmes de diretores, são filmes da Marvel e ela, toda poderosa, contrata aqueles que aceitam se submeter.

Pode errar e pode acertar, claro – e tem conseguido mais acertos do que erros –, mas, aqui, mesmo que tenha se inflamado por cenas grandiosas e escolhido um caminho inicialmente efusivo, produziu uma obra atual e necessária. Perde no motor maior – a emoção –, aquele que faz com que um filme seja apreciado em sua completude pela maioria, mas segue firme e intencionalmente em direção ao próximo capítulo.

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É possível que exista quem acredite que o filme ultrapasse a linha do feminismo, da igualdade, com algumas cenas mais agressivas contra os homens. Diante disso, há de se recolher, colocar-se no lugar de Nannerl (resgatando o primeiro exemplo) e imaginar que foi há muito pouco tempo que as mulheres conquistaram direitos que os homens têm há séculos. É necessário deixar que todas possam ser, ao mesmo tempo, Capitã Marvel e Tenente Ripley. Sentir-se ofendido pelo filme é muito menos doloroso do que perceber iguais sendo assassinadas diariamente na vida real apenas por serem o que são.