Crítica | A Árvore dos Frutos Selvagens ou a beleza da existência
Por Sihan Felix |
"Todo o nosso saber se reduz a isto: renunciar à nossa existência para podermos existir." – Johann Wolfgang von Goethe
No cinema (como nas artes em geral), quase nada é somente o que parece. Claro que um filme muitas vezes precisa ter um fio condutor capaz de guiar os espectadores que não estão dispostos a pensar em camadas. Para pegar um exemplo recente e popular: não é obrigação do público captar as metáforas contidas no filme Nós (de Jordan Peele, 2019). Se a primeira camada já for suficiente para que a história se desenvolva, para que exista o grau de terror proposto pelo diretor, nada mais normal do que se deixar levar.
Nesse meio, surge uma função da crítica bem exposta pelo teórico do cinema – e um dos alicerces da crítica – André Bazin: prolongar a experiência daqueles que já assistiram ao filme. Se as camadas não foram expostas ou se, no momento de assistir, não havia a doação suficiente para que elas fossem digeridas, nada mais nobre do que auxiliar na construção de interpretações. Mesmo assim, é cedida uma visão que, apesar de precisar ser pensada e argumentada, jamais deve ser sentida como verdade absoluta.
Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!
A vida a ser pensada
A Árvore dos Frutos Selvagens, nesse sentido, é um filme de camadas múltiplas. Na primeira, há o protagonista (Sinan – Dogu Demirkol), que, em meio a uma história de intriga familiar e em uma onda crescente de desencanto para com o seu pai – Idris (Murat Cemcir) –, procura financiamento para o seu livro (que dá título ao filme); na segunda, há o conflito que ultrapassa as questões pessoais dos personagens e atinge o nível de identificação para que o filme cause uma necessária empatia; na terceira, há os conflitos internos individuais que enriquecem e fazem de todos seres complexos e reais. Mergulhar na proposta do roteiro do estreante Akin Aksu, de Ebru Ceylan e do próprio diretor Nuri Bilge Ceylan (ambos de Sono de Inverno) é quase como adentrar um mundo que parece simples demais e encontrar até reflexões sobre os processos políticos da Turquia.
É nessa profundidade que há muito em cada passo dado por Sinan. Enquanto os diálogos são escritos de maneira primorosa, jamais sendo dispensáveis na construção de cada personagem, os planos pensados por Ceylan não somente são de uma beleza sufocante, mas são efetivos para que o filme tenha a chance de ser refletido. Ele (Ceylan) utiliza da linguagem do cinema com uma racionalidade e segurança que acabam por transformar as situações mais complexas em algo aparentemente comum. Retorna-se ao ciclo de a primeira camada funcionar sozinha, com suas bifurcações estando ali, prontas para serem notadas, mas sem esta necessidade. É a vida a ser pensada.
A importância de A Árvore dos Frutos Selvagens transcende facilmente o cinema. Trata-se da humanidade e como existem tantos modos de lidar com ela. Dentro de um contexto de diferenças entre os costumes rurais e urbanos, o filme busca tocar em pontos delicados naturalmente. Desse jeito, dialoga com a dificuldade de se manter honesto consigo e com os outros; com a responsabilidade da existência (alcançando algum grau existencialista digno de Ingmar Bergman); com a responsabilidade por assim dizer – especialmente a de precisar fazer o que se diz como certo; e corroendo aquele que talvez seja o lado mais difícil da vida: o enfrentamento da própria insignificância.
Uma superioridade insustentável e a perfeição
São perguntas vitais que constroem Sinan, nunca respostas. Sentir-se impotente perante o futuro, estar a mercê de alguma forma de ego, parece ser o fio condutor da personalidade dele. Ego que, geralmente, começa a se manifestar quando o mundo rejeita uma superioridade insustentável. Na tentativa de abraçar tanto, o ególatra torna-se uma ilha, cercado por um oceano que não para de trazer ondas de insatisfação.
Ceylan, tocando em tantas arestas, ainda consegue jamais aparentar pretensão. Momentos dramáticos arrebatadores dão lugar a um silêncio de intimidade, como se o público estivesse participando de tudo aquilo. Os momentos mais fortes podem, talvez, arrancar pensamentos sobre o que poderia ser feito caso fosse possível conversar com aqueles personagens. É um drama que leva, sim, um certo tempo introduzindo e enriquecendo detalhes, mas, no final das contas, todo o tempo demonstra ser necessário para a compreensão do alcance de desprezo sentido por Sinan.
As reflexões propostas pelo roteiro, aliás, mexem no vespeiro das discussões teológicas, especialmente quando, em certo ponto – e lindamente sem chegar a uma resposta exata – um diálogo sobre a adaptação necessária da religião à realidade se dá. É como querer opinar ali, participar, mas sabendo que a subjetividade escrita pelo roteiro é tão genuína quanto a do próprio cinema.
Não bastasse o peso de tanto, a precisão da direção de fotografia de Gökhan Tiryaki (prolífico cinefotógrafo turco, igualmente de Sono de Inverno) é arrebatadora. É possível que Tiryaki tenha estado tão envolvido com A Árvore dos Frutos Selvagens que tenha passado dias planejando a perfeição entre luz e sombra para cada frame, especialmente quando do uso da luz natural.
A beleza da existência
A verdade (e essa pode ser perto da absoluta – mas sem nunca alcançar tal posto) é que, no cinema contemporâneo, não existe um cineasta tão habilidoso em adentrar na mente masculina quanto Ceylan. A mente frágil, sufocada por conceitos implantados de superioridade e encharcada de ego, esfarela-se com a visão do diretor turco. Ao utilizar a câmera para se distanciar dos seus personagens, ele (Ceylan) demonstra não estar disposto a analisar a psiquê, mas a expor.
Não cabe qualquer sentimentalismo em sua obra. Se isso não ficou claro em seus dois filmes anteriores, Era uma Vez na Anatolia (de 2011) e o já tão citado Sono de Inverno, A Árvore dos Frutos Selvagens ratifica com o mais lindo dos descompromissos formais; com um humor, até certo ponto, irônico; com uma paixão pelo cinema que faz com que o filme deixe de ser algo somente fictício e seja a representação de uma vida, de várias vidas, da vida em sociedade, da própria sociedade e, no todo, da vida em si – gritando para ser encarada, vivida.
Os frutos selvagens, que não passam de peras, podem representar justamente toda a existência comum. Deformados – como bem ressalta Idris –, eles (os frutos) são a representação mais metafórica do filme, o símbolo maior. Uma árvore (a vida em sua completude) que cresce e dá frutos (as nossas vidas). Esses frutos, sempre imperfeitos, desenvolvem-se até caírem do pé... ou até serem colhidos por alguém que, enfim, entenda o que tem em mãos e possa eternizar cada mordida.
Eis a beleza da existência: quando podemos nos dar ao luxo de dramas existenciais, ela (a existência) é uma eterna renúncia do que pensamos que somos para aproveitarmos o que nos tornamos.