Os Guerreiros da Rua e o Cinema como ferramenta social
Por Sihan Felix |
Em 2005, o excelente filme brasileiro Quanto Vale ou é por Quilo? (de Sergio Bianchi) causou um certo incômodo por ser uma releitura perto de radical da desigualdade social – especialmente a brasileira. O título do filme refere-se ao valor do ser humano, com os mais pobres sendo a própria mercadoria e a elite financeira sendo os compradores. A maior parte, portanto, só tem o que vender e o poder de compra dessa maioria é praticamente nulo. O filme, construído de uma forma muito contundente por Bianchi, acaba se embaralhando entre ficção e realidade e englobando as situações e não causadores individuais delas. Esse resultado só é possível pela exploração intensa do conjunto, do todo, e, consequentemente, pela economia de investidas no microuniverso dos seus personagens. Porque tudo é, exatamente, uma metáfora macroscópica de um modelo real – extremado – de capitalismo, desumanizado para deixar exposta a humanidade.
O Cinema Recurso e a transformação social
Há produções, por outro lado, que se fundamentam na mente dos seus personagens e que, por isso, crescem de uma maneira mais íntima. Quando a história é apenas um acessório simples, mas inseparável para uma vida pela qual vale se importar, surgem filmes tão contundentes quanto o dirigido por Bianchi. A diferença é que esses atingem suas miras seguindo por outro caminho. Nesse espectro, os recentes Lazzaro felice (de Alice Rohrwacher, 2018), Roma (de Alfonso Cuarón, 2018), Me Chame pelo Seu Nome (de Luca Guadagnino, 2017) e, para citar um brasileiro, O Céu de Suely (de Karim Aïnouz, 2006) pintam suas existências com tintas individuais, mas as cores jamais são egoístas, egocêntricas ou narcisistas: são cores sociais, retratos do mundo através de um universo particular e intimista.
Em uma terceira boa vertente, surgem aqueles filmes que de tantas boas intenções são tão efetivos em seus mundos e ultrapassam com tanta força o valor subjetivo enquanto filme que a própria existência é o suficiente para tudo valer a pena. Nesse caso, é possível saber de suas limitações (técnicas ou narrativas) e relevá-las a favor da experiência emocional. Christopher Robin: Um Reencontro Inesquecível (de Marc Forster, 2018) é um exemplo recente que pode se encaixar por aqui, como um abraço quentinho (assim diria Olaf de Frozen: Uma Aventura Congelante – de Chris Buck e Jennifer Lee, 2013).
É interessante como o contrário – produções vazias de significado dentro e fora de si – tendem a não funcionar. Essas são criadas, geralmente, com alguma prepotência, com provável arrogância entranhada, subjugando o público, menosprezando seus próprios alvos. Acabam atirando em direção ao vazio e caindo na gravidade do esquecimento.
Há, ainda, aquelas produções que sintetizam as três boas vertentes: atingem o macro por serem visualmente e em seus enredos as ditas metáforas do mundo real; o micro por pintarem seus universos com a complexidade de emoções mais pessoais, causando quase que um grau identificação universal; e se valem especialmente por suas existências. O equilíbrio desses três poderes dá luz ao que talvez seja possível chamar de Cinema Recurso: aquela espécie de trabalho que serve de ferramenta para algo muito maior, ultrapassando a tela, o público e transformando todos ao seu redor.
Isso, por sinal, é de uma grandeza absoluta, mas não é o alvo – é a ideia. É aquilo que surge na memória do passado, acontece no presente e tem poder suficiente para influenciar o futuro, por mais que caia no esquecimento aos poucos. E isso não é contraditório: a memória do ser humano é eficiente o suficiente para, muitas vezes, não guardar o fato em si, mas a emoção do momento, o sentimento, a sensação. As recordações são competências críticas que cumprem papéis vitais nas relações sociais, emocionais e cognitivas. Elas (as recordações) constroem a base da consciência de identidade, guiam pensamentos e juízos, influenciam atitudes e facilitam qualquer aprendizado.
O Cinema Destino através d’Os Guerreiros da Rua
Dentro desse contexto, o trabalho transmídia (envolvendo filme – que mistura live action e animação –, HQ e videoclipe) de Os Guerreiros da Rua parece ser não somente Cinema Recurso. Ao ser de uma eficiência mais profunda do que talvez tenha pensado o idealizador Erickson Marinho, ele é também uma espécie de Cinema Destino: porque muda o presente dos membros da equipe, da comunidade e de quem chega um pouco mais perto – especialmente das crianças – de uma maneira que tem força para repercutir no futuro, modificando destinos. Por mais que o trabalho em si caia no esquecimento (o que já é difícil), a construção realizada modifica o ethos individual e coletivo e, certamente, guia pensamentos, juízos e atitudes.
Após o lançamento de Os Guerreiros da Rua, no Cinema São Luiz, o pequeno Miguel saiu com essa.
Os Guerreiros da Rua vai ainda além e é extremamente contundente na questão da representatividade. Ao utilizar sua própria comunidade (a Ilha de Santa Terezinha, no Recife) para construir um filme sobre o poder da imaginação, a força da amizade e sonhos e sem deixar de tocar no difícil ponto da perda da infância para o comércio ilícito de drogas, Marinho ergue um mundo ideal dentro de uma realidade que é praticamente desprezada e marginalizada. Algo que é possível notar nas vezes em que os protagonistas estão duelando contra o monstro Voarag e, em segundo plano, os carros passam como se nada acontecesse.
E é justamente por mostrar crianças brincando com a imaginação, lutando contra algo invisível aos olhos adultos (ou por quem não passou pelo portal), que a velocidade dos carros que passam ao fundo diz tanto. Ali está, em primeiro plano, a infância (que um dia se vai) e, ao fundo, o futuro que as espera. Dentro dessa perspectiva, essas mesmas cenas podem causar uma reflexão mais aberta: Quais chances são dadas às crianças de uma comunidade periférica para que elas tenham a perspectiva de chegarem àquela vida adulta em pé de igualdade (ou pelo menos perto disso) com as demais? Ou mais alarmante: Quais chances são criadas efetivamente para que as crianças de periferia tenham a possibilidade de simplesmente chegarem à vida adulta?
A verdade é que, ao participarem de um filme, aquelas crianças estão tendo uma oportunidade antes inimaginável. Ao verem o filme sendo exibido, seja em uma televisão ou em um dos cinemas de rua mais tradicionais do país (o Cinema São Luiz, na capital pernambucana), o elenco infantil, as amizades deles, os conhecidos e a Ilha de Santa Terezinha se veem e não veem imagens somente: enxergam sonhos. Ver-se em algo de tal porte alimenta a alma, a estima.
Algo muito semelhante e em escala estratosférica aconteceu com o recente Pantera Negra (de Ryan Coogler). Não importa, nesse caso específico, se a produção da Marvel não é infalível em diversos pontos. O que importa é a sua relevância histórica, a sua força sócio-política. Vendar os olhos para o Cinema enquanto ferramenta social e ater-se ao filme em si e nada mais é vendar os próprios olhos para o mundo. A representatividade impulsiona a possibilidade de acreditar em um mundo que parecia inacessível. Produções como Pantera Negra, que trazem minorias em posições de poder, e Os Guerreiros da Rua, que refletem as realidades de minorias por meio da imaginação, dos sonhos e do otimismo, ganham ares educativos ao sugerirem pontos de vista diferentes e exercitarem a empatia.
Marinho, aliás, é certeiro ao trabalhar tudo de maneira lúdica, o que o faz atingir a faixa etária de uma forma universal. São crianças brincando como crianças. Por outro lado, se o vilão Voarag é visto primeiramente como a personificação da vilania, como um ser unidimensional, é porque ele é exatamente o mal ou, em outra medida, o medo – de perder a imaginação (sempre renovada ao surgir outro Guerreiro da Rua), os amigos (como na cena mais emotiva e dolorosa do filme – a derrota de Will para o comentado narcotráfico) e, consequentemente, a infância.
Voarag, em outro sentido, é também a materialização da opressão, um ser que pode representar aqueles que, sedentos por poder e por destruir o que não conhecem, preocupam-se somente consigo. Dominar e destruir ou apenas levantar muros, por exemplo, são sinais de poderio absurdos e mesquinhos que contrastam com o bom clichê do ato metafórico de construir pontes (e são tantas no Recife), são sintomas de uma sociedade desumanizada. Personagem semelhante é o Vingador da série animada Caverna do Dragão, um ser que inspira por dominação e que, inclusive, busca as armas mágicas dos jovens protagonistas para que elas possam lhe aumentar o poder e ele, assim, derrote tanto Tiamat (um dragão como a evolução de Voarag) quanto o Mestre dos Magos (seu pai, como a imaginação das crianças).
E, em Os Guerreiros da Rua, são constantes as referências à cultura pop, especialmente aquelas que remetem às décadas de 1980 e 1990. Enquanto Caverna do Dragão estreou no Brasil em 1986, ganhando repercussão muito maior quando teve sua terceira temporada exibida no extinto programa TV Colosso em 1994, outra influência que salta aos olhos é o anime d’Os Cavaleiros do Zodíaco, exibido no Brasil justamente a partir de 1994. Dos movimentos dos personagens aos seus poderes, tudo confirma a força que têm as memórias que são criadas durante a meninice. Marinho confirma esse fato em meio a uma entrevista cedida ao jornal Folha de Pernambuco. Ele diz: "O Cinema São Luiz foi o primeiro cinema que frequentei. Levar essa produção, que retrata a minha infância, ao primeiro cinema em que pisei é de um orgulho e honra sem fim."
Somente o tempo pode declarar o valor da representatividade
Como um exemplar que sintetiza as três boas vertentes, Os Guerreiros da Rua atinge o macro com suas metáforas do mundo real; o micro, por ser de uma intimidade que facilmente se transforma em empatia universal; e se vale da sua própria existência ao transformar a todos que entram em contato e ao modificar o futuro direta e indiretamente dos integrantes da equipe – especialmente das crianças. Ele (o filme – e o trabalho transmídia), assim como um blockbuster como Pantera Negra, é Cinema Recurso e Cinema Destino, mas, no seu microuniverso, é mais eficiente do que a produção milionária da Marvel.
Não há valor e muito menos peso físico a se estabelecer para obras com tanta voz e representatividade. Os valores reais nascerão com o tempo. Seja pela voz de um pequeno Miguel que, nos braços do pai, anuncia que vai querer criar um filme, seja pela estima renascida de uma criança negra com a máscara do seu novo herói preferido, o Cinema faz brotar valores e derruba barreiras e muros. É como aquela imagem clássica de uma flor nascendo na rachadura de um asfalto quente – só que, no caso, renascem vidas com poderes de abrir o cimento e iniciar o cultivo de um jardim para todos.
Em um mundo ideal, todos seriam Guerreiros da Rua e viveriam em paz, em uma espécie de mundo Wakandiano sem camuflagem, sem campo de força, sem muros e até sem a necessidade de super-heróis (que não fossem os da imaginação). Um utópico mundo sem Voarags e Vingadores (não a equipe benfeitora Marveliana, mas o plural do maléfico antagonista de Caverna do Dragão) jamais transformaria Erik Killmonger (personagem de Michael B. Jordan em Pantera Negra) em um vilão.