Publicidade
Economize: canal oficial do CT Ofertas no WhatsApp Entrar

Vacinação obrigatória? Veja como a lei brasileira entende a questão da COVID-19

Por| Editado por Luciana Zaramela | 21 de Setembro de 2020 às 20h40

Link copiado!

Bill Oxford/Unsplash
Bill Oxford/Unsplash

Na pandemia da COVID-19, muitos governos e autoridades públicas apostam na vacinação, em massa, de suas populações contra o coronavírus SARS-CoV-2. Afinal, mais de 960 mil pessoas já morreram por causa da infecção no mundo, sendo mais 136 mil, apenas, no Brasil. É inegável que a doença seja uma das maiores crises de saúde pública da história recente e, neste cenário, muitas discussões circulam nas redes sociais sobre a obrigatoriedade (ou não) de se tomar uma vacina.

Para entender todos os pontos que envolvem a obrigatoriedade ou não das vacinas, o Canaltech conversou com dois especialistas, em direito e saúde pública, para esclarecer a questão. Adiantamos que, sim, a vacinação pode ser compulsória, mas há uma série de pré-requisitos para que isso aconteça. Inclusive, é fundamental ter — antes de qualquer coisa — uma vacina eficaz e segura contra a COVID-19, produto este que ainda está em desenvolvimento.

Continua após a publicidade

Por que a vacina pode ser obrigatória?

Para uma possível vacinação obrigatória, há alguns dispositivos que podem ser acionados dentro da legislação brasileira. Entre eles, o mais recente é a lei 13.979 de 2020, proposta pelo presidente da república, Jair Bolsonaro, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada. Isso quando o mundo começava a entender a dimensão do novo coronavírus e seus efeitos, ainda em fevereiro.

"A lei prevê no seu artigo terceiro que para o enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, a determinação de realização compulsória de vacinação", explica Roberto Dias, professos de Direito Constitucional da FGV-SP e doutor em Direito pela PUC-SP.

"O artigo terceiro, inciso 3, letra D, fala explicitamente que para o combate à COVID-10 a vacinação poderá ser exigida compulsoriamente, ou seja, obrigatoriamente", especifica o professor sobre a possibilidade da vacinação contra a COVID-19 se tornar obrigatória. Entretanto, é preciso observar que se trata, por enquanto, apenas de uma possibilidade.

Continua após a publicidade

Vacinação para crianças é compulsória?

Com base na lei promulgada durante a pandemia da COVID-19, já é possível estabelecer a vacinação compulsória. Há também "o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que fala explicitamente que a vacinação é obrigatória para crianças e adolescentes, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias", lembra o professor da Faculdade Getúlio Vargas. Mais especificamente, é o primeiro parágrafo, no artigo 14, do ECA.

Em paralelo, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) se os pais poderiam não vacinar os seus filhos, a partir de convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. Ou seja, se há a possibilidade de se portar de forma contrária ao que estabelece o ECA. Nesse caso, o que se julga é se a vacinação "seria algo que estivesse dentro do poder familiar, com os pais podendo decidir sobre essa questão", comenta Dias.

Continua após a publicidade

"O argumento contrário é que não se pode fazer isso, porque colocaria em risco não só a própria criança — e a Constituição fala que a própria criança tem que ter prioridade absoluta na proteção de seus direitos. Também não protegeria as outras crianças e pessoas com quem essa criança convive. Portanto, não é só uma questão individual, daquela família, mas algo que pode ter repercussão para terceiros", esclarece o professor de Direito Constitucional. Conclusão: até o momento, a vacinação infantil segue obrigatória.

Saúde coletiva X Liberdade individual

Mesmo que existam leis sobre as vacinas, a Constituição Brasileira, de 1998, não fala explicitamente sobre os imunizantes. Só que, como era de se esperar de uma constituição, o texto fundamental aborda direitos dos cidadãos que devem ser protegidos pelo estado. É o caso do artigo sexto da constituição que estabelece a saúde como um direito social. Já no artigo 196, há uma previsão que explicita que a saúde é direito de todos e dever do estado.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Continua após a publicidade

"Por lei, a vacinação [também] pode ser obrigatória, considerando essa previsão constitucional. O que acontece muitas vezes é que o direito de todas as pessoas à saúde pode colidir com outros direitos. Especialmente nesse caso, um dos argumentos que tem se levantado é a liberdade individual, da pessoa não querer se vacinar", afirma Dias.

"Temos dois direitos fundamentais que estão previstos na constituição e que são contrapostos nesse caso específico. A constituição não dá a priori, em abstrato, nenhuma prevalência de um sobre o outro, mas no caso concreto a gente deve analisar qual deve prevalecer", explica o professor. "De um lado, nós temos a proteção da saúde pública, e do outro, um eventual direito individual de pessoas que querem se negar a isso. Na balança, me parece que o direito à saúde pública e a obrigação a se vacinar devem prevalecer frente a supostas liberdades individuais", completa.

Na mesma linha de argumentação, outra especialista na área do direito defende a possibilidade de que a vacinação pode ser obrigatória perante a lei. "A saúde coletiva, como estamos em uma pandemia, tem que prevalecer sobre o direito individual de não querer tomar a vacina", enfatiza a doutora em Direito pela PUC-SP e sócia do escritório de advocacia Silva Nunes, Mérces da Silva Nunes.

Continua após a publicidade

"Se é um dever do Estado de garantir a nossa saúde, o Estado — nos três níveis de governo — tem que adotar todas as medidas necessárias para que a nossa saúde seja preservada. Como estamos em uma pandemia, são essas autoridades que têm que dispor sobre quais medidas precisamos seguir, mas elas têm que acontecer por meio de um decreto [instrumento normativo]. É preciso baixar um instrumento legal esclarecendo o que é obrigatório e o que não é", comenta Nunes

Pode-se penalizar quem não tomar a vacina?

No cenário de uma eventual vacinação contra a COVID-19 ser obrigatória, não se pensa em pessoas sendo presas, caso se recusem a tomar o imunizante, por exemplo, mas sim em maneiras bem menos invasivas. "A forma mais relevante de pensar em medidas para se fazer cumprir a determinação legal e, aí, eu posso mencionar que já há algumas previsões nesse sentido, é você impedir que a pessoa exerça determinados direitos, caso não cumpra essa obrigação, que seria a de se vacinar", lembra o professor Dias.

É o caso de previsão associada ao programa Bolsa Família. De acordo com a legislação que disciplina o projeto, o recebimento do auxílio está relacionado a algumas determinações, como a vacinação dos filhos. "Isso, obviamente, pode ser expandido para outras hipóteses, como, no caso da pandemia, em uma legislação que impeça a pessoa de entrar em um avião, se não estiver vacinado, ou de frequentar lugares com muitas pessoas", pensa o advogado.

Continua após a publicidade

Ok! O que é necessário para a obrigação das vacinas?

Como já abordamos aqui, a vacinação contra a COVID-19 ou outras doenças pode ser obrigatória, mas essa obrigatoriedade precisa ser acompanhada de pré-requisitos fundamentais. "Primeiro vamos ter que ter uma segurança da vacina, a partir dos dados científicos publicados. Precisamos ter certeza que é uma vacina eficaz, ou seja, que ela produz anticorpos no nosso organismo e que esses anticorpos evitem a infecção pelo coronavírus", explica a advogada Nunes sobre as etapas necessárias.

"Além disso, a vacina precisará ter um registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ela também deverá ser inserida em um programa nacional de imunização. Aqui, não funcionaria um regional, porque só quando toda a população estiver vacinada é que estaremos seguros contra a COVID-19", lembra a advogada sobre a necessidade de universalização do imunizante para algo desse porte acontecer.

"Somos 112 milhões de habitantes no Brasil, vão existir 112 milhões de doses? A vacinação é feita com uma dose ou com duas doses? Tudo vai estar condicionado à quantidade de doses que serão necessárias para imunizar um organismo e a disponibilidade disso na rede pública de saúde. É também preciso estabelecer um cronograma, em quanto tempo 112 milhões de pessoas vão receber a vacina? Isso não existe hoje", completa Nunes sobre os desafios de uma vacinação em escala tão ampla como a nacional. Somente depois de estabelecer todas essas etapas e cronogramas é que as autoridades públicas poderão determinar se a vacinação contra a COVID-19 será ou não compulsória.

Continua após a publicidade

Contexto histórico: a Revolta da Vacina e a varíola  

Em qualquer cenário, há um longo caminho pela frente. Antes de se cogitar a obrigatoriedade de uma vacina, é preciso ter um imunizante pronto. Nesse processo, é também fundamental o diálogo das autoridades da saúde diretamente com a população. Isso porque uma vacina é desenvolvida para proteger as pessoas e não causar medos ou preocupações através de fake news. Na história brasileira, a falta de diálogo entre as partes já levara a pelo menos uma tragédia: a Revolta da Vacina, em 1904, na cidade do Rio de Janeiro.

No combate à varíola — doença viral e altamente contagiosa, também conhecida como bexiga —, a vacinação foi declarada obrigatória para crianças, em 1837, e para adultos, em 1846, no país. Só que a resolução nunca foi cumprida, já que produção do imunizante não era feita em escala industrial e não estava disponível para todos. Até que em junho de 1904, o médico sanitarista Oswaldo Cruz incentivou o governo do Rio de janeiro a enviar um projeto ao Congresso que fizesse cumprir a obrigatoriedade da vacinação.

Continua após a publicidade

Dessa forma, a ideia era que apenas pessoas que pudessem comprovar o recebimento da vacina poderiam ter contratos de trabalho assinados ou certidões de casamento emitidas, por exemplo. Assim, a nova lei foi regulamentada em novembro daquele ano e a forma violenta como se deu o processo da vacinação foi o estopim da Revolta da Vacina. Na época, as camadas mais populares se recusavam a receber o imunizante — e ainda circulava um boato de que quem se vacinasse ficaria com feições bovinas. Inclusive, casas foram invadidas para a vacinação obrigatória.

A cidade entrou em colapso pelo tempo em que a medida vigorou e as autoridades precisaram retroceder com a medida, feita sem diálogo. O curioso no caso da varíola — uma doença que em alguns casos desencadeia a formação de bolhas com pus no corpo do paciente e deixa cicatrizes — é que, quatro anos depois do caso, em 1908, o Rio de Janeiro foi atingido por uma epidemia mais violenta da doença. Só que dessa vez, a população é que procurou pela vacinação.

Fonte: Com informações: Fiocruz