Que Black Mirror! Tudo que a ciência está aprontando para lentes de contato
Por Fidel Forato |
O hábito de usar lentes sobre os olhos para corrigir a visão humana vem de centenas de anos — inclusive há até quem credite essa invenção a Leonardo da Vinci, como um dos primeiros a propor esse conceito. O certo é que a ciência e a compreensão do olho humano percorreram um longo caminho desde então, enquanto o objetivo desses pequenos auxiliares permaneceu praticamente o mesmo: melhorar a visão humana.
A lentes modernas mais comuns são, basicamente, um disco gelatinoso e transparente usado no globo ocular. Há também as lentes tóricas (mais rígidas), e cada modelo varia dependendo da condição da vista humana (para correção de miopia, astigmatismo etc.). Agora, em plena era dos smartphones e computadores portáteis, ganham novos significados. Cientistas dos laboratórios da DARPA, do Google e de universidades de todo o mundo enxergam nessas lentes não apenas ferramentas para a melhora da visão, como também novas oportunidades para aumentar a experiência humana, transformando cada vez mais seus usuários em ciborgues.
Biomarcadores e correntes elétricas
Nos últimos dez anos, os cientistas desenvolveram tecnologias que podem alterar as formas como a saúde humana é medida, por exemplo, a partir de fluidos corporais, lidos em tempo real — mais especificamente, as lágrimas e outras secreções que funcionam para manter a umidade dos olhos. Ambos contêm biomarcadores valiosos que podem ser usados para rastrear o bem-estar, ao mensurar os níveis de açúcar no sangue.
Ainda que funcione no campo das promessas, essa seria uma maneira prática e não invasiva de monitorar a glicose sanguínea, o que tem atraído uma grande gama de interessados. Em 2014, o Google anunciou que estava trabalhando em uma lente de contato com um chip sem fio e sensores de glicose miniaturizados, incorporados entre as duas camadas da tradicional lente de contato.
A ideia por trás desse tipo de tecnologia é detectar níveis perigosos de glicose logo no início e alertar o usuário com diabetes, tendo o tempo necessário para tomar medidas médicas. Seguindo essa linha de pesquisa, a Microsoft e outros grupos já investiram em versões que até mudam de cor em resposta à queda dos níveis de glicose, por exemplo.
Em 2016, aconteceu outro avanço nesse campo. Foi com um grupo de cientistas australianos que estava trabalhando em um protótipo com capacidade para conduzir eletricidade, aumentando, assim, a possibilidade de construir minúsculos circuitos elétricos nessas lentes. Esses circuitos poderiam servir para alimentar, por sua vez, diferentes tipos de sensores de saúde ou até mesmo algum tipo tela para tecnologias de realidade aumentada.
"A busca pelo sensor de glicose com uma lente de contato abriu a porta para reconsiderar o que uma lente de contato pode fazer pelo usuário", comenta Drew Evans, responsável pela pesquisa australiana e professor na Universidade da Austrália Meridional.
Evans enxerga um grande potencial nessas lentes inteligentes de contato, já que podem oferecer tratamentos personalizados para diferentes tipos de doenças oculares, se equipados com os sensores corretos. Para isso, outras pesquisas começaram a desvendar quais doenças poderiam ser sinalizadas através de biomarcadores nas lágrimas, desde a síndrome do olho seco, passando por diabetes até condições degenerativas, como o ceratocone.
Pesquisadores da Universidade Yonsei, na Coreia do Sul, trabalham em uma lente de contato inteligente, capaz de monitorar as informações fisiológicas do olho e das lágrimas, fornecendo diagnósticos médicos, em tempo real, como níveis de glicose no organismo. Uma tecnologia feita sob medida para pacientes com diabetes e com carregamento wireless.
“A lente de contato futurista não será simplesmente um telefone inteligente reconfigurado em uma lente. Novos materiais, novas manufaturas, novas ideias precisarão ser combinadas para que esses novos produtos se tornem parte integrante da saúde personalizada”, comenta Evans.
O futuro das lentes
Mesmo tendo investido tempo e recursos em lentes com mini-condutores, Evans não acredita que esse seja o caminho que as lentes de contato tomarão. Em vez disso, sua equipe está explorando o potencial do uso de materiais orgânicos que podem atuar como sensores embutidos nos óculos, acabando com a necessidade de uma bateria diretamente conectada a esses sensores.
Já na França, o professor Jean-Louis de Bougrenet lidera uma equipe de pesquisa ótica na IMT Atlantique, que é uma universidade voltada para as engenharias. Esses estudos franceses estão voltados para detectar, com precisão, a direção do olhar dos usuários a partir do uso da lente de contato, o que poderá revolucionar esse campo, permitindo, em tese, desde que a direção de um carro seja controlada pelos olhos até procedimentos cirúrgicos sejam feitos, com o auxílio de sistemas de realidade aumentada.
"Estamos apenas no começo", completa Bougrenet. “Trabalhamos atualmente em uma lente de contato que inclui um pequeno dispositivo e bateria para rastrear a direção da sua visão com um raio laser. Esse sistema pode realmente detectar a direção da sua visão com muita facilidade, com o tipo de objeto que você está olhando.”
Em abril de 2019, Jean-Louis e sua equipe apresentaram um protótipo da primeira lente de contato independente com uma bateria interna. “Não podemos colocar algo diretamente sobre a íris, então a bateria possui uma espécie de anel ao seu redor. Mas é claro que, no futuro, você também desejará cobrir a parte da pupila e, nesse caso, a bateria deve ser transparente.”
Como demonstração do que poderia realizar, os pesquisadores usaram a bateria interna para alimentar um LED por algumas horas, mas esperam que possam desenvolver ainda mais essa tecnologia. No futuro, essa precisão a laser poderá até monitorar o cansaço ao detectar quando os olhos dos motoristas começarem a se desviar da estrada.
Lentes para a guerra
Muito provavelmente, essas novas tecnologias que têm como base a visão também servirão como ferramentas de guerra. Com esse foco, a agência americana de defesa, conhecida como DARPA, está a mais de uma década investigando lentes de contato inteligentes para oferecer aos seus soldados uma vantagem em campo.
Como explica o professor francês Bougrenet sobre os planos da DARPA, “a partir de um sistema de realidade aumentada, você pode olhar através de um vidro semi-transparente, para ter algumas informações adicionais no mundo real. Tudo é materializado no visor de vidro, mas a ideia é transferir a imagem diretamente para a retina, para que você nunca precise de óculos ou capacete.”
É como imaginar um jogador de videogame altamente equipado, sendo capaz, inclusive, de analisar o ambiente em questão de segundos e descobrir eventuais armadilhas e pontos cegos. Embora a DARPA tenha alcançado alguns progressos em relação às lentes de contato inteligentes, a tecnologia ainda não está pronto para o uso em operações.
Aplicações comerciais
O mercado wearable também não fica atrás quando o assunto é desenvolver novas tecnologias para uso em massa. A startup de realidade aumentada Magic Leap registrou uma patente para uma lente de contato inteligente, em 2015. Já a Sony, que lançou seus óculos inteligentes de realidade aumentada para desenvolvedores em 2015, registrou por sua vez uma patente para uma lente de contato que grava tudo que é visto pelo usuário, em 2016.
No mesmo ano, a Samsung solicitou uma patente para uma lente de contato com uma câmera embutida e, em seguida, gerou manchetes novamente em agosto, quando foi concedida uma patente para uma lente de contato capaz de gravar vídeos e tirar fotos, potencialmente com apenas o piscar dos olhos.
O mais incrível é que esses são apenas alguns dos projetos que buscam revolucionar a visão humana, ou pelo menos, a forma como os homens se relacionam com seus olhos. Mais uma década de progresso na ciência ótica e quem pode imaginar do que as lentes de contato serão capazes?
“Estamos apenas no começo”, comenta o professor francês Bougrenet. “É muito difícil responder o que poderemos fazer, porque estamos apenas descobrindo quais são as capacidades. A tecnologia existe e podemos realmente integrar muitas coisas em uma lente de contato.”
Fonte: New Atlas