Sandman Audible: versão “radiofônica” traz experiência atmosférica para fãs
Por Claudio Yuge |
Muita gente já conhece Sandman, a sensacional obra-prima de Neil Gaiman, que narra em quadrinhos a trajetória do Mestre dos Sonhos, uma entidade que une delírios oníricos e dramas mundanos na forma de quadrinhos épicos recheados de mitologia, folclore e cultura pop, com ares shakespearianos.
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Essa jornada com elementos de fantasia e horror gótico não poderia ficar apenas em uma mídia. Além da adaptação que chega em breve como série de streaming na Netflix, já ganhou uma conversão atmosférica e imersiva na forma de “novela radiofônica” — ou audiolivro, se bem que não é exatamente isso, como vou explicar mais abaixo.
E como foi o resultado? A adaptação consegue contar com sucesso a trajetória de Morpheus e sua família? É amigável para quem nunca leu? O que traz de novo para quem já acompanhou as histórias em quadrinhos? Como essa experiência transmite os detalhes, a trama e as peculiaridades de cada personagem? E onde é possível encontrar e curtir essa produção?
Abaixo, conto para vocês como foi conferir o primeiro ato de quase 11 horas de novela radiofônica de Sandman, a partir da plataforma Audible.
A busca pela adaptação perfeita de Sandman
Faz muito tempo que uma adaptação de Sandman vem sendo cogitada, desde que a série mensal acabou em meados dos anos 1990, após 75 edições. O próprio criador, Neil Gaiman, esteve envolvido em várias propostas de filmes baseados na história em quadrinhos, mas nada tinha vingado, até o começo dos anos 2020.
Demorou tanto tempo porque Gaiman queria reunir as pessoas certas para o projeto. Além disso, ele sempre teve vontade de participar do desenvolvimento da conversão para outra mídia. E faz sentido, porque realmente há elementos que não podem ser traduzidos para outra linguagem com resultados iguais ou semelhantes. Ele sabia que os detalhes ausentes na trama original poderiam ganhar mais força com a presença de atores e elementos narrativos capazes de oferecer a dramatização e caracterização que os quadrinhos não conseguem alcançar.
E ele encontrou a pessoa certa para o que queria em Dirk Maggs, produtor especialista em sonorização cinematográfica de histórias dramáticas para a Rádio BBC. Vale destacar que as experiências que Gaiman teve com adaptações de outras obras para TV e cinema ajudaram a refinar essa busca. O escritor britânico não conseguiu muito êxito em outras empreitadas, como nas conversões de Neverwhere, Stardust, Coraline, entre outros projetos menores — embora os resultados tenham alcançado relativo sucesso e um alto grau de fidelidade.
O criador de Sandman entendeu melhor como funciona a indústria e como lidar com as liberdades criativas dos profissionais e produtores envolvidos após experiências com adaptações que conquistaram a audiência e a crítica, a exemplo das séries American Gods e Good Omens — Lúcifer também vem de uma criação de Gaiman, mas ele não esteve muito envolvido.
E aí, com mais prestígio nos próprios corredores da indústria, ele conseguiu provar que entende melhor como levar suas obras para outras mídias, respeitando o que outras linguagens podem agregar ao consagrado trabalho original. E é aí que chegamos à proposta e ao time que compõe o projeto de Sandman em áudio.
Sandman Audible tem produção estrelada
Como dito acima, Gaiman escolheu um especialista em criar atmosferas e experiências imersivas. Dirk Maggs usa elementos sonoros que remetem a efeitos e trilhas já populares nas antigas novelas radiofônicas e na composição do áudio de filmes. Ou seja, há uma natural escolha por sons facilmente reconhecíveis, que sugerem ações e texturas de movimentos e cenários comprovadamente digeríveis por ampla parte do público.
Devido ao fato de a narração dos detalhes virem do próprio Gaiman, ele consegue reproduzir com clara dicção a leitura de uma história oral, como se estivéssemos sentados ouvindo-o narrar um conto em torno de uma fogueira ou uma fábula para ninar — para adultos, claro.
Neste Ato I estão protagonistas que oferecem uma caracterização tridimensional aos personagens de papel, tornando o exercício de imaginação menos intenso e mais dramático. As pausas, tons e volumes das vozes, aproximam os envolvidos na trama, tornando-os mais verossímeis. Isso acontece não somente pela habilidade que alguns dubladores experientes já têm de tornar suas falas em algo mais palpável para os ouvintes; mas também devido ao fato de muitos dos escalados serem atores conhecidos.
James McAvoy (X-Men) interpreta Morpheus, Kat Dennings (Thor) é Morte, Taron Egerton (Kingsman) é John Constantine, Riz Ahmed (O Som do Silêncio) é Coríntio, Andy Serkis (Senhor dos Aneis) é Matthew, Michael Sheen (Good Omens) é Lúcifer, e a lista segue com vários outros nomes que você provavelmente já viu em alguma produção de sucesso por aí.
O que mudou do Sandman das HQs para a versão em áudio?
Bem, a série audível divide a trama contada em todas as 75 edições da publicação seriada original em atos. O Ato I, que foi o que escutei, adapta os três primeiros volumes da graphic novel (Prelúdios e Noturnos, Casa de Bonecas e Terra dos Sonhos) em 20 episódios, que variam entre 22 minutos e uma hora, cada. Há uma introdução de quase dois minutos e os créditos finais, perto de 15 minutos, totalizando 10 horas e 50 minutos.
A trama segue, basicamente, a espinha dorsal do que foi mostrado originalmente no papel: a prisão de Sandman no lugar da Morte, sua busca pelos pertences primordiais (algibeira, rubi mágico e capacete), reestruturação do Sonhar, introdução aos elementos fantásticos que fazem parte do universo do Mestre dos Sonhos, apresentação de personagens importantes em toda a jornada e eventos que caracterizam melhor o comportamento e o temperamento de Morpheus.
A cronologia de acontecimentos é a mesma, assim como muitos do exatos diálogos em sequências-chave, a exemplo do encontro de Morpheus com Nada no Inferno ou as descrições da aterrorizante edição número seis.
O que mais muda inicialmente são os detalhes acrescentados por Gaiman para explicar melhor como aconteceram as interações entre os personagens e algumas atividades que são citadas ou mostradas rapidamente entre as sequências mais importantes das HQs. Por exemplo, a descrição dos coadjuvantes e dos ambientes, como no encontro entre o Dr. John Hathaway (Anton Lesser) e o bruxo Roderick Burgess (Stephen Critchlow), na entrega do grimório com instruções para aprisionar a Morte; e a própria sonorização do ritual dessa ação, oferecem mais noção de espaço, tempo e atividade de cada integrante da cena.
Além disso, as próprias vozes definem bem qual era a concepção original da mente de Gaiman para os temperamentos, sentimentos e trejeitos de cada personagem; não somente no núcleo de seus comportamentos, mas também na maneira como cada um se relaciona ou trata o outro em determinadas situações. Isso cria e altera atmosferas e caracteriza melhor a participação de cada um; e pontua com mais verossimilhança as motivações de protagonistas e coadjuvantes e a própria progressão da história.
Por outro lado, perdem-se as referências gráficas e parte do horror psicológico que exercitamos com nossa criatividade entre os espaços em branco das páginas de quadrinhos. Além disso, é preciso um pouco de dedicação do ouvinte para entrar de cabeça na experiência imersiva que faz parte da proposta. Gaiman é detalhista; e a própria saga tem muitas minúcias, então, é preciso prestar muita atenção em cada minuto de uma longa história.
Há também o fato de algumas caracterizações não terem ficado exatamente da forma que imaginamos, o que pode causar certa estranheza ou “perda do charme”. É o que aconteceu, pelo menos para mim, com a voz de Kat Dennings, que tornou a Morte mais infantil e até meio “boba” — o que combinaria até mais com Delírio.
E os detalhes de Gaiman podem até soar muito rebuscados ou desnecessários, especialmente em momentos em que ele corta parte da ação e quebra um pouco o clima imersivo das interações entre os personagens.
Sandman Audible vale a pena? Quanto custa e onde está disponível?
O conteúdo é, assim como a obra original, magistral, com toda aquela mistura de mitologia, história da humanidade, folclore, fábula gótica, e, claro, Shakespeare. A plataforma Audible tem som cristalino, com um painel fácil de manusear, e possibilidade de mudança de velocidade. É bem melhor de consumir em dispositivos móveis do que no computador, principalmente se você estiver usando um bom fone de ouvido — mas faltou um controle de volume no desktop.
Com relação ao conteúdo, não há versão em português, o que dificulta para quem não compreende o inglês, claro. Além disso, o próprio texto em inglês é rebuscado, o que pode tornar algumas sequências incompreensíveis.
E outra: Sandman lida com nomes de pessoas e lugares, cita conceitos e referências que podem ser difíceis de associar com o relato linear da história. Se já é confuso em vários momentos na própria graphic novel, pode se tornar quase impossível de acompanhar para muitos que sequer conhecem a obra original. Ou seja, não é amigável para iniciantes ou leigos.
Por outro lado, é um ótimo complemento para os fãs, especialmente para os veteranos, pois traz muitas informações que não estão na narrativa gráfica e textual original. E até pode ser considerado uma prévia do que Gaiman está produzindo na série live-action que chegará em breve à Netflix.
O Ato I está disponível no Audible, que tem app para Android e iOS, e faz parte do ecossistema da Amazon — ou seja, se você já tem conta no Prime Video, facilita. A assinatura mensal do Audible custa US$ 16,45 (R$ 90 na cotação atual), mas novos usuários podem usar a plataforma gratuitamente por 30 dias, com 1 crédito para adquirir um título do catálogo por mês. Então, se você aderir, pode ouvir "na faixa".
O Ato II reúne os volumes Estação das Brumas, Um Jogo de Você e Fábulas e Reflexões em 13 horas e 47 minutos, a US$ 20,96 (R$ 114) ou uma unidade de crédito. Já está disponível. O Ato III trará Vidas Breves e Fim dos Mundos, por enquanto sem previsão de lançamento, assim como o restante da trama.