Análise | Assassin’s Creed Valhalla traz melhorias e fica acima da média
Por Wagner Wakka |
Na mitologia nórdica, Valhalla é o salão dos mortos, para onde vão os grandes guerreiros. “Halla”, inclusive, é de onde deriva a palavra “hall” do inglês, que significa salão. As duas línguas têm muito em comum por conta de seu passado histórico. Em 865 D.C., o chamado Grande Exército Pagão dos nórdicos invadiu a Inglaterra e dominou as quatro grandes regiões em 14 anos de batalhas.
É exatamente esta narrativa (com suas licenças poéticas) que Assassin’s Creed: Valhalla quer contar. O jogador comanda Evior, um homem ou mulher (cuja variação de sexo será descrita mais adiante) que perdeu seus pais muito cedo em um conflito em seu povo natal na Escandinávia.
Ela é salva por Sigurd, filho do rei Styrbjorn, e acaba se tornando irmã postiça do príncipe. Contudo, devido a problemas diplomáticos locais (vamos evitar spoilers aqui), ambos partem com um grupo para a pré-Inglaterra em busca de um novo lugar para chamar de seu.
A dupla e sua pequena tripulação encontram os filhos de Ragnar: Ivar, Ubba e Haldano, já avançando com o exército pagão sob os bretões e anglo-saxões. Unidos, colaboram em diversas missões pelo domínio da Inglaterra pelos povos nórdicos.
Como já conhecido na série Assassin’s Creed, aqui há duas narrativas: dentro de fora da Animus. Esta é a máquina capaz de levar uma pessoa a reviver cenas da vida de um personagem histórico apenas usando traços de seu DNA. A narrativa da invasão nórdica é o que acontece dentro da Animus. Fora dela, a pesquisadora Layla (mesma de Assassin’s Creed Origins) tenta reviver o passado de Eivor em busca de descobrir um mistério de sua própria família. Contudo, não se iluda, essa narrativa fora da Animus é menos de 5% do tempo de gameplay em Valhalla.
Como um jogo em terceira pessoa em mundo aberto, o jogador precisa explorar os mapas da Escandinávia e leste da atual Inglaterra. Traz novamente elementos típicos de games da Ubisoft e uma vastidão de elementos para deixar o jogador umas várias dezenas de horas imersos no mundo mesmo somente vivendo a história principal.
O novo mundo nórdico
Assassin’s Creed Valhalla aprendeu algumas coisas das críticas feitas a seus últimos dois títulos, Origins e Odyssey. O ponto mais criticado foi a mecânica de níveis em estilo RPG. Se, por um lado, deu uma nova camada para a série, também obrigou os jogadores a treinar seus personagens recorrentemente para conseguir eliminar inimigos em uma nova área. Isso fazia de Origins e Odyssey jogos inchados, o que é particularmente ruim para os dois títulos que são bastante longos.
Em Valhalla, contudo, esta mecânica está mudada. Ainda há um certo sistema numérico que mostra a força da personagem, mas que envolve menos elementos. Com uma cópia de games como Destiny e até The Division (da própria Ubisoft), há um nível de poder que mostra ao jogador basicamente em quais áreas ele vai poder caminhar pelo mapa conseguindo enfrentar os inimigos.
O jogo é bastante generoso nisso, sendo que estar a quatro níveis abaixo do recomendado ainda permite avançar pela história com tranquilidade. Ou seja, o jogador não vai precisar de muito grind ou mesmo se encher das missões secundárias para continuar a narrativa principal.
Outra mecânica nova por aqui é a das armas em duas mãos. O jogador pode escolher qual equipamento quer carregar em cada uma delas, sendo machados, lanças, espada, escudos, ou até grandes machados de duas mãos (aí, tomando os dois espaços para itens).
Com isso, permite que o jogador tenha diferentes modos de atacar e se defender. Por exemplo, se opta por colocar o escudo na mão direita (a principal), terá uma gameplay mais baseada em defesa e parry. Já se utiliza uma arma de duas mãos ou machados em ambos membros, vai ter um personagem mais agressivo, sem defesa, abusando mais de esquiva.
A Ubisoft também adicionou à batalha um elemento de estamina, parecido a games da série Dark Souls. Contudo, em Valhalla, essa barra é menos punitiva e se carrega com bastante velocidade. Falando sinceramente, caso você esteja com nível adequado de poder, nem vai perceber que esta barra existe (talvez, lá para o final do jogo).
Por fim, uma última mecânica de Valhalla são as árvores de habilidade. A cada nível de poder, é possível desbloquear um novo tronco que oferece melhorias em atributos ou uma habilidade nova. A parte interessante é que o jogo permite que você reorganize todos os pontos quando quiser, permitindo testar diferentes composições.
Velho mundo
No mais, Asssassin’s Creed Valhalla traz os elementos típicos não só dos jogos da série, mas também de outros games da publicadora. Ele é obviamente um jogo da Ubisoft.
Ainda, há as “torres” que você precisa visitar para observar toda região e desbloquear o mapa, aqui conhecidos como picos dos corvos. Aliás, o pássaro é elemento primordial para Valhalla, trazendo novamente o elemento de espionagem para a gameplay.
Quando você está prestes a entrar em uma nova construção, pode chamar seu corvo para observar a área e marcar pontos de interesse e inimigos para você. Lembra um drone de Ghost Recon, não?
Outro elemento que retorna por aqui são os barcos, aclamados em Assassin’s Creed Black Flag. Contudo, diferente da versão antiga, não há aqui elementos de combate marítimo, sendo que as embarcações são somente ferramentas de locomoção pelos rios ingleses. O que é bastante triste, tendo em vista que os vikings são grandes navegadores. Aliás, vale lembrar que a palava viking, basicamente é uma versão saxã para pirata. Em outras palavras, os barcos de Valhalla são apenas os cavalos d’água.
Super-homem dos games
Em uma metáfora simples, é possível dizer que Valhalla é quase que um "Super-homem dos games". A princípio, pode parecer elogio (e é), mas existe um porém nesta comparação.
Assim como nosso Homem de Aço é superveloz, forte e inteligente, mas não o melhor nestes atributos, Valhalla tem vários elementos acima da média, mas nenhum de um enorme destaque.
Veja bem, a construção mitológica nórdica é pulverizada durante a trama, funcionando apenas como elemento de roteiro quando a história precisa de uma guinada difícil de se explicar. É legal a inserção do jogador na cultura nórdica, mas muito aquém (por quilômetros de distância) do que faz God of War. Valhalla usa a mitologia apenas de soslaio, enquanto Kratos encara os deuses como um espelho.
No quesito mundo aberto, o jogo também tenta emprestar elementos de Red Dead Redemption 2. Por exemplo, quando se está andando por distâncias muito longas para uma nova missão, o jogador por pedir que sua montaria (ou barco) siga automaticamente. Assim, há espaço para acionar uma visão “cinematográfica” para a caminhada, de modo que se consiga contemplar o ambiente a sua volta.
Esta mecânica faz todo sentido em um jogo como Red Dead Redemption 2, no qual a contemplação e o ritmo lento são partes integrantes do Velho Oeste norte-americano. Em Valhalla, contudo, essa sensação é completamente quebrada diante da alta velocidade de movimentação, tanto de Eivor, quanto dos veículos que usa para navegar pelo mapa. No fim, a mecânica parece uma forma de mascarar o quão vazio é o ambiente de Valhalla pelos caminhos que se precisa trafegar.
Um jogador mais crítico pode dizer: “como assim vazio?”. Como outros games da série, Valhalla traz uma imensidão de itens, tesouros, equipamentos e elementos que se podem buscar pelo extenso mapa. Entretanto, isso é pontual. Ou seja, se você for até o local indicado no mapa, haverá algo importante. Até chegar lá, não há pessoas, conflitos, conversas… nada pelos caminhos. Novamente, algo que Red Dead Redemption 2 faz com mais maestria.
Elefante branco
É preciso falar sobre a escolha de sexo de Eivor em Valhalla. Contudo, para isso, vale dar um contexto sobre a Ubisoft em 2020.
A companhia vive uma crise interna, com denúncias de casos de assédio sexual contra funcionárias da companhia. O ponto central foi Serge Hascoët, produtor executivo da Ubisoft e principal nome por trás de franquias como Far Cry, Watch Dogs, Tom Clancy's The Division e, mais importante, Assassin’s Creed.
Ele era o cara que disse em Assassin’s Creed Odyssey que não poderia colocar Kassandra como única personagem no título porque “mulher não vende”. Hascoët foi demitido e a Ubisoft prometeu mudança de postura, colocando a escolha de sexo em Valhalla como um reconhecimento disso.
De fato, neste novo jogo, é possível escolher Eivor como uma personagem feminina ou masculina, dentro do binômio sexual. A opção é claramente bem-vinda, mas esbarra ainda na expectativa dos desenvolvedores de que só isso basta. Bom, é preciso deixar claro que não. Como aponta Adrienne Shaw, estudiosa conhecida por estudar representatividade (principalmente LGBTQ+) nos games, ter apenas a escolha da personagem feminina não é suficiente.
A questão em Valhalla é que toda a trama, diálogos e até a movimentação de Eivor são obviamente direcionados para um personagem masculino, se não, pelo menos, masculinizado. O modo de correr, lutar e até cumprimentar mostra que este jogo foi feito para um personagem masculino. Toda a apresentação de trailers e materiais de divulgação foram focados em Eivor como homem.
Dentro da trama de Valhalla, ainda, é possível mudar o sexo da personagem principal a qualquer momento. Isso mesmo, você pausa e diz para o jogo: “agora, Eivor é mulher” e vice-versa, sem que haja mínimos ajustes que não sejam visuais e de pronomes.
A justificativa do game para esta possibilidade é que a Animus, máquina usada para reviver o passado de uma figura histórica pelo DNA (guarde isso), não é capaz de reconhecer o sexo da pessoa em questão. Por isso, recria a narrativa como se fosse vivida por um homem ou uma mulher. Bom, há um erro científico aqui (por isso, usamos o termo sexo e não gênero), tendo em vista que o modo mais certeiro de identificação do sexo humano é por análise cromossômica, através de DNA.
Tudo isso deixa claro que a mecânica foi colocada sem a devida preocupação que uma empresa acusada de sexismo deveria ter. Não há o mínimo de cuidado com peculiaridades que uma mulher, em 865 D.C., poderia ter ao entrar em uma embarcação pirata pelo domínio de um território majoritariamente cristão.
O que mais?
O jogo também oferece algumas pequenas mecânicas para dar mais recheio ao game. Uma delas são as invasões. O jogador pode invadir um forte, ou monastério com sua tripulação, enfrentando exércitos inimigos.
A mecânica principal aqui está na derrubada de barricadas. O jogador pode subir pelos muros em escadas, invadindo o espaço e abrindo o portão pelo lado de dentro. Assim, seu exército consegue avançar para o próximo portão até matar o líder regional.
O game ainda conta com inimigos super-poderosos que são o verdadeiro novo desafio em combate. Neles, é preciso ter conhecimento melhor dos sistemas de esquiva, parry e controle de estamina.
Vale a pena?
Aos amantes da série Assassin’s Creed, certamente Valhalla é uma ótima nova entrada para este mundo. Contudo, espere mais de vikings e história inglesa do que realmente um contato com a narrativa de templários contra assassinos (a base da série).
O vasto mundo também deve ser um ponto divisor aqui. Aqueles que se divertem com todos os milhares de opções de itens, equipamentos, missões secundárias e segredos espalhados pelo mapa terão um prato cheio em Valhalla. Já quem pensa que isso somente incha a gameplay pode achar exagerada a quantidade de conteúdos.
Por fim, o Canaltech testou o jogo no PlayStation 4, com uma versão antecipada do jogo. Foi possível sentir que o console está no seu limiar, com itens aparecendo do nada na tela e uma série de bugs. Nada muito chamativo, mas com constantes problemas que tiram um pouco da imersão. A dica é: se você tem um PC potente, pode ser mais interessante pegar o game por lá.
Ainda, a questão de representatividade da protagonista Eivor, como mulher, é apenas uma adição estética que pouco contribui para o que se pode chamar efetivamente de representatividade.
Assassin’s Creed Valhalla foi desenvolvido pela Ubisoft, com lançamento em 10 de novembro de 2020, para PlayStation 4, Xbox One, PC, Google Stadia, também compatível com Xbox Series X|S e PlayStation 5.
Esta análise foi realizada com uma cópia para PlayStation 4 cedida pela Ubisoft.