Crítica Retratos Fantasmas | Kleber Mendonça faz um belo retrato de Recife
Por Diandra Guedes • Editado por Durval Ramos |
Quem acompanha a filmografia do famoso diretor Kleber Mendonça Filho talvez tenha reparado em uma coincidência em suas obras — todas falam sobre um local físico. O Som Ao Redor (2013) se debruça sobre um bairro, Aquarius (2016) sobre a história de um edifício antigo e, finalmente, Bacurau (2019) sobre uma cidadela esquecida no nordeste do país. Em Retratos Fantasmas não é diferente, mas o diretor deixa a ficção de lado para criar um excelente documentário sobre sua cidade natal, Recife.
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Por meio de imagens analógicas do passado e gravações atuais, Kleber mostra como a cidade foi se modificando ao longo dos anos e como a especulação imobiliária e o descaso governamental contribuíram para o esvaziamento da cultura recifense. Se, no passado, os letreiros das salas de cinema ajudavam a situar Recife no tempo — décadas e anos — hoje, o centro da cidade não passa de um local abandonado pelo poder público. Além disso, o prazer de assistir a um filme em um dos vários cinemas de rua da cidade já não existe mais.
Toda essa narrativa, no entanto, não começa assim de forma abrupta. Com muita sabedoria, o diretor pernambucano faz uma curadoria minuciosa de imagens que, apesar de parecerem sem nexo a princípio, conseguem contar a história da cidade. Partindo do individual para o coletivo, Kleber inicia mostrando um lugar que foi importantíssimo na sua vida; a casa onde cresceu. Ali, ele tece observações sobre a arquitetura, a vizinhança e a natureza que circundava o local.
Depois, no segundo ato, faz um passeio pela história das salas de cinema da cidade, mostrando como aqueles espaços eram importantes para que os moradores pudessem se divertir e absorver cultura, e como foram esvaziados e multilados para se tornarem prédios comerciais no futuro. No encerramento, lança um olhar atento à realidade do centro de Recife e reflete sobre como tudo isso ajudou a moldar a sua personalidade e a de todos seus contemporâneos.
Apesar de ser uma obra extremamente regional e muito pessoal, Retratos Fantasmas consegue prender a atenção e emocionar quem assiste. A delicadeza na escolha das imagens e o carinho que Kleber sente pela cidade fazem a obra ser um mergulho nostálgico em uma história importante do nosso Brasil. É fato que talvez todo esse regionalismo seja um impeditivo para fazer a Academia comprar a ideia do longa e lhe dar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2024, mas será uma lástima se os gringos não se apaixonarem por esse deleite.
Os fantasmas de Kleber têm rostos e nomes
Um grande acerto do filme é que, para fazer esse longo passeio sobre a história da cidade, ele não se debruça apenas sobre seus relatos, mas traz personagens interessantes para a tela. Um deles é Alexandre Moura, projetista de uma das salas de cinemas que conta sobre os prazeres e as dificuldades do seu trabalho e o que significou para ele rodar tantas películas durante todos os anos em que trabalhou ali. É com os olhos marejados que ele fala também sobre o fechamento do espaço e ilustra como a cidade estava mudando.
Essa escolha de deixar a narrativa ganhar forma por meio dos depoimentos de terceiros faz com que o filme seja ainda mais fiel e emocionante, e mostra como Kleber não se coloca em um lugar de superioridade, mas, pelo contrário, de igual para igual a todos aqueles que vivenciaram essa realidade. Quem gosta da filmografia do diretor encontra no filme a oportunidade ideal para se aproximar dele, entender como ele pensa e vê o mundo.
Tudo é cinema!
É nítido que os protagonistas da obra de Kleber são as salas de cinema da cidade e é muito interessante ver como, por meio do que aconteceu com elas, ele expressa sua crítica à sociedade. Um exemplo disso ocorre quando, para explicar a ditadura militar em Recife, o diretor recorre às fotos dos letreiros dos cinemas, mostrando quais filmes estavam em cartaz e quais haviam sido censurados. Uma simples placa de cinema pode contar muita história para as futuras gerações, mas é preciso saber escutar, e Klever soube.
Ainda tecendo sua crítica, no terceiro ato, chamado “Igrejas e espíritos santos”, Kleber traça um paralelo mostrando como os cinemas eram vistos como algo quase sagrado e como quase todos eles se transformaram em farmácias, bancos, lojas e, claro, igrejas evangélicas, reforçando o avanço do capitalismo sobre a cidade e a soberania do religião evangélica sobre as demais.
No fim, após uma hora e meia de tela, o espectador termina o filme com uma sensação gostosa de nostalgia e sabendo que aprendeu muito não só sobre Recife, mas sobre toda a sociedade brasileira.
Mostrando que acertou de novo, Kleber entrega uma obra-prima para o público. Seu acerto consiste principalmente em transformar um tema aparentemente banal em uma boa história. Faz falta que a narração — feita por ele mesmo — tenha um ritmo mais ágil, mas ainda assim é um longa agradável de ser visto. Lembrando que quem quiser dar uma chance à Retratos Fantasmas, o encontra completo na Netflix.