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Crítica | Bacurau: a História cobra

Por| Editado por Jones Oliveira | 30 de Agosto de 2019 às 22h30

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Vitrine Filmes
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O valor que tem a História e o poder que ela tem de domar a realidade, criar vínculos e domesticar expectativas são traços talvez impossíveis de contestar. É interessante observar o quanto, por exemplo, o respeito que o futuro precisa para chegar com alguma validade está ligado a tudo o que o passado tem a dizer. De aprender a caminhar aos primeiros passos na lua, é essencial um antes. Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? As perguntas mais clichês da ciência não são clichês por acaso, elas escondem o que há de mais sagrado na existência... justamente a história.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Quem nasce em Bacurau é gente

Pensando nisso, ao abrir Bacurau com o adeus a Carmelita (Lia de Itamaracá), os roteiristas e diretores Kleber Mendonça Filho (de Aquarius, 2016) e Juliano Dornelles (de O Ateliê da Rua do Brum, 2016) demonstram um domínio metafórico da forma mais humana possível: aquela senhora, falecida aos 94 anos de idade e conhecida por todos da comunidade, carrega não somente o peso de uma vida, mas o peso de ser a própria História. Sua morte e seu emblemático cortejo – sendo carregada por todos ao som de cânticos – não é a morte de uma pessoa. Ali se inicia o declínio e do declínio se iniciará a revolução.

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A aparição de Domingas (Sônia Braga), a médica local, é brutal já nesse ponto, tanto pela atuação de Braga quanto pela representação. Aquela mulher instruída, porém bêbada, solta o verbo contra a defunta. Em uma raiva contida sem tamanho, Domingas parece gritar em desespero tanto a morte da História – como se Carmelita fosse proibida de morrer – quanto todo mal que o passado pode carregar.

Essa ligação com a importância da memória é exposta repetidamente durante as pouco mais de duas horas de Bacurau. Seja pelo grau de respeito que os mais velhos possuem, seja por sutilmente repetir planos do pequeno museu do povoado, há uma reverência quase que religiosa a tudo o que é ligado a tempos idos. Ao mesmo tempo, o que passou só passou porque há um vislumbre do amanhã. Para sedimentar essa preocupação com o futuro, os diretores não poupam em utilizar escolas como alegorias: se, no início, no meio da estrada, uma (escola) é mostrada em ruínas, a da comunidade tem um valor que vai além da simbologia. Entre aquelas paredes, estudam crianças e jovens que podem sair dali (ou não) e se tornar o que quiserem – como bem diz Plinio (Wilson Rabelo) em seu discurso antes do dito cortejo inicial –, mas, antes de tudo, quem nasce em Bacurau é gente.

É claramente importante a participação das crianças, tanto pra demonstrar que há futuro quanto para dar dimensões a personagens como Lunga (Silvero Pereira) e Michael (Udo Kier). Enquanto o primeiro é um criminoso procurado que tem a confiança dos moradores de Bacurau, o segundo é o líder presencial do grupo invasor; enquanto o respeito de Lunga para com o povo é recíproco, Michael subjuga – sendo ele mesmo o subordinado de alguém, de algum tipo de mandatário contador de pontos. E o motivo para a regra de não pontuar ao matar crianças (a menos que se tenha alguma justificativa grosseira) pode ser claro: elas têm menos memória do passado; as vidas curtas delas não as tornam inimigas. No máximo, para aqueles jogadores bizarros, um menino da comunidade pode se tornar um mexicano que fala português, um Lunga com seu mullet.

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Seguindo em frente e retocando a alma

O domínio de Mendonça Filho e Dornelles sobre as imagens é tão grande que cada plano dá a impressão de que não poderia ser substituído por nenhum outro. É uma costura intrincada e ao mesmo tempo suave, balanceadas por uma edição realizada por Eduardo Serrano (desde 2014, com Ventos de Agosto e Permanência, quase onipresente no cinema pernambucano) que traz transições incomuns para o cinema contemporâneo e que causam fluidez às trocas de sequências. Assim, tudo parece se mover, seguir em frente. Com poucos respiros, diferente do citado Aquarius, que tratava da memória por um viés particular – claro que permitindo a abertura de interpretações –, Bacurau transparece urgência, algo que Serrano confere sem macular a assinatura da direção.

E quem mais auxilia o trabalho da edição é a música dos irmãos Mateus Alves e Thomas Alves Souza. Na mesma proporção que as canções exaltam o passado de toda a gente ou a consciência geográfica de Domingas (ao indicar o que toca em sua casa para Michael), a trilha sonora original em nenhum momento interfere a ponto de guiar as emoções. O trabalho realizado pelos Alves é de intensificar a tal urgência. Não é uma questão melódica, é de conhecimento de causa e efeito. Os sons dos sintetizadores, dessa maneira, dão o alerta do mal que, por mais que seja tecnologicamente mais avançado, acertadamente não tem a alma dos moradores.

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A colonização recomeça

A intromissão tecnológica, ainda, não é de todo desconhecida do povoado visivelmente tão afastado de tudo. A sugestão alienígena do drone só remete ao prejulgamento de um grupo que talvez acredite que os “selvagens” são totalmente ignorantes. Essa lógica não demora a ser quebrada por Damiano (Carlos Francisco) que, em conversa com Pacote (Thomas Aquino), diz, com segurança, ter visto um... drone. Paralelamente, o disco voador traz uma rima que funciona junto à abertura do filme, quando se chega à Bacurau partindo de fora da Terra.

Toda essa dimenssão, que se torna metalinguística ao inserir o povoado de Barra (onde Bacurau foi filmado) no mapa, ganha ares de ficção científica ao ser um dos desdobramentos do filme. Ao literalmente sair do mapa (ao menos dos digitais), a comunidade transforma-se, figurativamente, em um local a ser descoberto. E, com isso, reflete a mente dos estrangeiros que estão ali: prontos para colonizar o lugar e, com colonizar, leia-se invadir e matar – o que não é muito diferente das muitas invasões ocorridas ao redor do planeta.

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É, de todo modo, um terreno fértil para acabar se tornando central, mas uma fala de Michael é fundamental para perceber um regresso ao que, de fato, é mais importante no filme: Em certo ponto, a personagem de Kier discursa brevemente sobre ser chamada de nazista. Ele, alemão, mas há mais de 40 anos em solo americano, diz-se mais americano do que Terry (Jonny Mars), que, apesar de ter nascido nos Estados Unidos, tem 37 anos de idade. A importância dessa cena é tanta que faz retornar ao princípio de tudo, à História.

Em um contexto mais amplo, pode ser lido que os índios são mais brasileiros e, em um contexto mais específico, os sertanejos são mais sertanejos. Se a vida pode cobrar o seu preço, a História tem o poder de cobrar vidas. Bacurau, desse jeito, dá a impressão de ser uma linha temporal que, em algum momento, pode ser vista, na verdade, como um grande círculo – como o planeta. Se tudo tende a se repetir em outros formatos – menores ou maiores –, a intromissão dos selvagens de fato (como o são os jogadores bizarros no filme) é um micromundo. Com Carmelita morta – sendo ela a História –, a colonização recomeça e outra História é construída.

Bem ao nosso alcance

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Mas há alguns pontos nesse grande círculo que podem causar pertubação ao resultado. E um deles é as crianças. Enquanto o avanço dos antagonistas acontece, todas elas (as crianças) estão escondidas em uma escola – a maior base para uma (re)construção histórica, a maior defesa de um povo contra quem tenta definir (ou acabar com) seu futuro. Ali perto, no museu, Lunga (com seu mullet) – quem não teve infância –, aguarda escondido. De um lado, as crianças se protegem, do outro, o homem mais violento da região finaliza, com um ódio passional, o tipo de interferência que não o deixou ter um passado inocente.

Então, Michael, redimensionado pelo roteiro com uma camada extra de personalidade, parece entender o que está acontecendo. Sua fuga para o próprio fim, para se apagar dos rodapés, é impedida justamente por aquela que Teresa (Barbara Colen), Domingas, Pacote, Plinio, Damiano, Lunga e companhia não deixaram morrer: a História. A inserção, a esse ponto, absolutamente fantástica (em mais de um sentido) de Carmelita concede a Bacurau, até então um trabalho de excelência, o status de obra-prima.

Não satisfeitos, Mendonça Filho e Dornelles demonstram a importância de manter todos os passados existentes vivos, mas expõem também que, às vezes, somente um merece a luz do sol. O enterro final é a metáfora ideal de que é necessário se ter conhecimento de toda maldade do passado para jamais trazê-la de volta à tona. E a melhor forma de fazer isso é a mantendo por perto, enterrada bem debaixo dos nossos pés. Ou, com os pés na realidade, bem ao nosso alcance: nos livros.