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Crítica | Escolhida é um necessário "quase"

Por| 16 de Outubro de 2020 às 22h00

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Lionsgate Films
Lionsgate Films

É verdade que desculpas de nada valem se ações não forem tomadas com consciência. Para o debate racial, junho deste ano (2020) foi um período bem estimulante e, ao mesmo tempo, estressante, com a exposição do racismo e da violência gerando uma mídia que parecia estimular o consumo de barbáries sem a reflexão sobre os fatos. E muito foi pelo assassinato de George Floyd nos EUA. Escolhida, por essa perspectiva, parece partir dessa preconcepção midiática.

É comum, portanto, assistir ao filme dirigido pela dupla estreante em longas-metragens Gerard Bush e Christopher Renz e traçar paralelos com o terror social criado por Jordan Peele com Corra! e Nós. Isso porque Bush e Renz, que também são os roteiristas, articulam uma narrativa tematicamente semelhante, que procura expor o incômodo (para dizer o mínimo) que é ser negro em um mundo racialmente opressor.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Sangue acorrentado

Escolhida, com suas duas linhas temporais, traz uma espécie de reflexo entre eras, como se pouco tivesse mudado ou porque ainda existe muito a ser modificado. A escalação da mesma atriz (Janelle Monáe) para guiar visualmente essa estrutura parece construir uma relação cada vez mais próxima entre Eden e Veronica (ambas Monáe), fomentando uma tensão simbólica. Na prática, essa atmosfera pode acabar por criar um certo choque na percepção.

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Assim, é claro que o terror pode se instalar facilmente, visto o grau de violência que é exposto desde o princípio, com Eden sofrendo nas mãos do Senador Denton (Eric Lange). Diferente do que faz Peele em seus trabalhos, Bush e Renz não demonstram ter tanta desenvoltura para a conceber comentários temáticos sem recorrer ao visualmente impactante. A construção climática de Antebellum (no original) permanece à mercê dessa associação mais dura, restando pouco subtexto para além da superfície.

Por outro lado, é interessante que o discurso da dupla parta de uma citação de William Faulkner que diz (em tradução livre): “O passado nunca está morto. Nem sequer passou.”. Isso, em certa medida, demonstra que o filme é, voluntariamente, uma apropriação dessas palavras — o que pode ser percebido até mesmo quando tudo ganha dimensões dolorosas com a chegada de uma grávida (Julia — interpretada por Kiersey Clemons) à plantação de algodão. Nesse ponto, existe, dentro da mesma linha temporal, a exposição de passado e futuro da maneira mais clara possível: uma mulher exposta ao escravagismo que está esperando uma nova vida é a ilustração da perpetuação daquela situação. É como se seu sangue estivesse fadado a permanecer acorrentado.

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Quase...

Todo sentimento de aprisionamento é fermentado, inclusive, por Veronica, que, se em certo momento parece ter uma vida perfeita — quase como um comercial de margarina —, proporcionalmente sente a dor de estar em um mundo racista desde sempre. A trilha sonora musical do estreante Roman GianArthur Irvin e de Nate 'Rocket' Wonder (de Janelle Monáe: Dirty Computer), além disso, não permite que a sensação de terror se disperse. Arranhada e, às vezes, dissonante, a composição traz um ar de agonia eterna, como se não fosse permitido respirar em paz.

É quase uma metalinguagem proporcionada sonoramente, visto que, em resumo, pode não existir paz mesmo quando privilégios são frutos tão distantes. Nesse sentido, Eden, biblicamente, tem uma relação que evoca a existência humana e, poeticamente, faz um comentário sugestivo, de como todos somos filhos do mesmo jardim — e este jardim não é branco. Aliás, pode ser necessário entender o poder de caçador que o passado exerce sobre o presente, como tudo está interligado e desaguando sempre na atualidade odiosa dos atos preconceituosos.

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Escolhida, no final das contas, tem um discurso válido e se apropria de maneira fluida do terror social que ganhou corpo no mainstream por meio dos trabalhos de Peele. Provavelmente, se fugisse mais do choque visual para investir em sensações mais duradouras, Bush e Renz tivessem conseguido um resultado mais significativo. Pode ficar, então, principalmente após uma hora de filme, um sentimento de monotonia, herdado de algo que já foi visto e revisto e que se equilibra pelo tom de discurso necessário.

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Infelizmente, porém, falta a consciência de linguagem de Peele e, para não deixar de citar, de Spike Lee. Falta consistência para além do que se quer contar. Escolhida é um filme interessante, mas que pode deixar, enfim, a impressão da existência de um potencial gigante em sua estrutura; um potencial que quase consegue explodir... mas que, talvez, fique, exatamente, no quase.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.