Crítica Doutor Estranho no Multiverso da Loucura | Ninguém é inteiramente bom
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
É muito fácil a gente cair na dicotomia de bem e mal dentro de uma história de super-heróis. Esse maniqueísmo é algo que sempre fez parte dos quadrinhos, embora histórias mais recentes — e a própria realidade — tenham mostrado que as coisas são bem mais cinzas e dúbias do que o mocinho bom e o vilão mau. E Doutor Estranho no Multiverso da Loucura usa essa quebra de expectativa muito bem para formar seu argumento.
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Mais do que ser uma aventura do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) ou a tão aguardada conclusão do arco da Wanda (Elizabeth Olsen) iniciado em WandaVision, o novo filme do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês) é uma bela forma de explorar esse caminho tortuoso que não apenas os heróis, mas todos nós seguimos em nossas próprias jornadas. De certo modo, todos somos heróis de nossas próprias histórias da mesma forma que somos vilões de outras.
E é por isso que o choque entre os dois feiticeiros da Marvel funciona tão bem. Além de terem poderes bastante parecidos, eles têm essa mesma dinâmica tortuosa em relação ao uso de suas habilidades e sobre aquilo que eles acreditam que deve ser feito. São espelhos que refletem a mesma imagem: indivíduos muito poderosos que querem moldar o mundo a partir de seu próprio ego.
É essa questão do “eu” que norteia toda a trama de Multiverso da Loucura. De um lado, temos uma Wanda tomada por esse desejo de querer seus filhos de volta, mesmo que isso signifique eliminar pessoas e universos inteiros em seu caminho — ou que isso represente roubar as crianças de si mesmo. Do outro, um Doutor Estranho que ainda acredita ser o único capaz de resolver qualquer problema e que não se importa em ultrapassar certos limites.
No fim das contas, os dois personagens se mostram bem mais acinzentados do que a gente costuma esperar de um herói. E ainda que o longa deixe claro que, nessa balança, um lado ainda está mais errado que o outro, uma coisa é constante neste Multiverso da Loucura: não existe ninguém inteiramente bom nessa história.
Motivações palpáveis
Essa existência acinzentada dos heróis é algo pontuado a todo momento, principalmente em relação ao Doutor Estranho. Há sempre alguém lembrando o herói de seus erros, seja por ter entregue a Joia do Tempo à Thanos e permitindo o blip que apagou metade do universo, seja pelo simples fato de ele ser uma pessoa horrível que afasta as demais por causa de seu ego.
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E Multiverso da Loucura mostra que elas não estão completamente erradas quando vemos que, apesar de tudo, esse Stephen Strange segue tão arrogante quanto antes, daquele que se acha capaz de fazer qualquer coisa, mesmo que seja necessário quebrar algumas regras para isso. Nesse sentido, o que o difere de um vilão?
É aí que a escolha de Wanda como a vilã da história se encaixa tão bem. Afinal, para ela, suas motivações são totalmente justificáveis. Quantos filmes já não vimos em que a trama era a luta de uma mãe para recuperar seus filhos, fazendo o que tinha que ser feito? É a velha história da mulher que vira onça para proteger as suas crias — com a diferença que, no caso, ela está disposta a varrer universos para estar do lado delas.
Essa dubiedade é tão evidente que se torna parte do próprio macguffin do roteiro. O grande artefato que o Doutor Estranho precisa encontrar para enfrentar Wanda é o Livro de Vashanti, um artefato feito de pura bondade e que é único em toda a existência — e que se torna inalcançável para o herói. Tanto que, no fim das contas, ele precisa apelar para o mesmo Darkhold, o livro das Trevas que a Feiticeira Escarlate usa para ameaçar a vida no multiverso. É uma forma de o filme dizer que, no fim das contas, os dois não são tão diferentes assim.
O que realmente os distingue é o fardo do herói. Mais do que ser um samaritano de capa colorida, um herói é aquele que se sacrifica pelo bem coletivo, ou seja, que abre mão do seu eu pelo outro. É aquele que, apesar de ter o poder de deuses em suas mãos, opta por não moldar o mundo ao seu prazer — e isso é muito bem representado por uma pergunta bem simples: você é feliz?
Fica bem claro desde o início que ninguém ali é feliz e o choque entre o Doutor Estranho e Wanda está nesse confronto desse “eu quero” em busca dessa resposta. Enquanto Wanda está disposta a tudo para encontrar essa felicidade, Estranho é capaz de perceber que é preciso abrir mão de certas coisas e que nem sempre é possível ter controle de tudo. E isso faz toda a diferença na jornada de cada um deles.
Dose de terror
Sem qualquer exagero, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é o filme mais pesado do MCU. Não somente por ter uma mensagem mais densa e bastante reflexiva, mas pelo próprio tom de muitas cenas, flertando muito com o terror e trazendo um ar completamente novo para esse tipo de filme.
Afinal, ao longo de mais de um década, a tal fórmula Marvel já foi questionada inúmeras vezes e já está bem claro que Kevin Feige está interessado em mexer na estrutura dessas histórias para fugir desse mais do mesmo que assombra essas produções. Foi algo que muita gente criticou em Eternos, mas que foi um acerto enorme no novo Doutor Estranho.
Tudo isso graças a Sam Raimi, um veterano de filmes de heróis que nunca escondeu também a sua origem no cinema de horror. O cineasta foi responsável pela trilogia Homem-Aranha, no início dos anos 2000, e também é pai da icônica franquia Evil Dead, além de outros clássicos do terror trash — e toda sua assinatura está presente em Multiverso da Loucura.
Em uma entrevista antes da estreia do longa, Raimi revelou que assistiu a apenas quatro ou cinco produções do MCU antes de Doutor Estranho 2 e é fácil notar o quanto isso foi benéfico. Ele não tenta se prender à tal fórmula e traz um novo ar para a história, mesclando toda a loucura que sempre colocou em seus filmes de terror trash com a estética de quadrinhos que ele carrega enquanto leitor de gibi.
Isso dá a Multiverso da Loucura uma cara bem diferente dos outros longas do MCU, seja pela violência aplicada — já na primeira luta, um olho é arrancado de forma bem explícita — quanto pelo próprio tom sombrio. Em determinado momento, Wanda é retratada não como uma feiticeira, mas um demônio ensanguentado que persegue os heróis em um corredor estreito e escuro. Da mesma forma, toda a galhofa típica de uma HQ clássica está na batalha musical ou na luta em Nova York no meio de pedestres — que, de certa forma, ecoa bem o ataque do Duende Verde no primeiro Homem-Aranha.
Pode ser que essa fuga do óbvio incomode os fãs mais puristas da Marvel, mas os últimos lançamentos mostram o quanto a ideia desta nova fase é mesmo sair do feijão com arroz e apostar em propostas mais autorais. E, dentro do que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura se propõe a ser, os maneirismos de Sam Raimi caem como uma luva.
Para além dos easter eggs
Muito se falou sobre as participações especiais que o novo capítulo do MCU traria, ainda mais depois do evento que se tornou Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. E por mais que elas estejam presentes aqui e sejam tão incríveis quanto qualquer fã possa esperar, não são elas que tornam Multiverso da Loucura um ótimo filme.
Como fã, é incrível ver certos rostos na tela da mesma forma que certas trilhas sonoras apelam para um saudosismo de forma certeira. Contudo, são apenas easter eggs que complementam aquilo que o longa traz de melhor, que é a sua história como um todo.
O roteiro é muito bem construído, amarrando todas as pontas e costurando inclusive as séries de forma bastante orgânica e objetiva. Sem precisar estender as coisas para além de três horas, tudo é muito bem resolvido no corre-corre típico das histórias de heróis, mas trazendo uma discussão que é muito interessante e válida sobre essa noção de bem e mal.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é um filme que te faz comprar muito facilmente as motivações de sua vilã, ao mesmo tempo em que deixa claro que ela está errada. E por mais que a gente saiba que o Doutor Estranho está certo em sua cruzada de impedi-la, também não é tão fácil assim concordar com o Mestre das Artes Místicas. No fim das contas, ninguém é inteiramente bom — nem mesmo os heróis.
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