Crítica | A Maldição da Mansão Bly cria horror com responsabilidade psicológica
Por Laísa Trojaike • Editado por Jones Oliveira | •
Fazer justiça a todas as qualidades de A Maldição da Mansão Bly tornaria este texto um verdadeiro tratado, porque há muito a se falar sobre a adaptação literária, sobre o terror em si, sobre o primor técnico e, claro, sobre as histórias que se desenvolvem entre os vivos. No novo seriado da Netflix, sequência de A Maldição na Residência Hill, os fantasmas são um elemento importantíssimo e de onde tiramos boa parte do nosso medo, mas tudo isso é uma deliciosa isca para uma das melhores histórias sobre amor que vimos até hoje.
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A Maldição da Mansão Bly me fez entender melhor o que há de comum nos meus filmes favoritos sobre amor, no caso Amor, de Michael Haneke, e O Lagosta, de Yorgos Lanthimos: a não romantização do amor. Amar alguém e ter em mente que você, por um motivo ou outro, pode perder aquele alguém, torna o amor um ato de coragem diante do terror da perda.
O seriado da Netflix explora todas as principais faces dessas perdas, tudo com uma psicologia muito responsável, mostrando que é possível educar com arte e, além, que é possível fazer obras incríveis e corretas (pelo menos aos olhos das discussões que temos na contemporaneidade).
A série é um terror primoroso, perfeitamente esplêndido, que consegue inserir uma série de ensinamentos, nos mostrando caminhos que podemos seguir e possibilidades de resolução de problemas nas nossas relações pessoais. Nenhum personagem é raso e sem desdobramentos, o que faz com que nos apeguemos até mesmo aos vilões, uma declaração rousseauniana de que nascemos bons e somos corrompidos ao longo das nossas vidas.
Em termos de abordagem, A Maldição da Mansão Bly é o equivalente de Sex Education no terror: uma história linda de ser acompanhada e, ao mesmo tempo, um manual de vida, sobre relações humanas.
Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.
O terror, o horror
Alguns autores costumam diferenciar terror de horror, e o dicionário (no caso, aqui, utilizei o Priberam) nos ajuda a pensar um pouco mais nessa diferença que pode nos dar uma luz sobre o tipo de terror que é A Maldição da Mansão Bly:
ter·ror |ô|(latim terror, -oris)substantivo masculino1. Grande medo. = P NICO, PAVOR2. Qualidade do que é terrível.3. Aquilo que apavora, aterroriza. hor·ror |ô|(latim horror, -oris , arrepiamento, encrespamento, agitação, estremecimento, arrepio, tremura, terror, medo)substantivo masculino1. Sensação de medo que faz arrepiar o cabelo e a pele.2. Repulsão (por aquilo que reputamos medonho ou horrendo).3. Coisa horrível.4. Espetáculo horroroso.
Essas definições indicam a diferença entre uma obra de terror que nos assusta através da expectativa, do que está por vir, o que acontece muito mais em narrativas de suspense; e a obra de horror, cujo medo, estranhamento, repulsa e toda sorte de reações desse tipo surgem após vermos algo. A Maldição da Mansão Bly brinca muito com essas duas formas de nos atingir, preferindo muito mais as possibilidades da segunda. Embora eu não use muito essa distinção, é importante para entender a profundidade do horror diante do terror.
Seguindo essas definições, mesmo os melhores filmes de terror não são capazes de nos assombrar senão com as imagens do próprio filme. Nosso medo do desconhecido é o que nos move por filmes como o marco A Bruxa de Blair, que, ao não nos mostrar nada realmente concreto da criatura, força nossa imaginação a pensar no que seria pior para nós mesmos caso estivéssemos no lugar dos personagens.
Outros filmes, que não têm a intenção de esconder muito o que está acontecendo, como Midsommar, agem em nós a partir das consequências. Já não é mais o medo do que pode acontecer, mas a repulsa pelo que está acontecendo ou aconteceu, portanto, o horror.
Os primeiros episódios da nova atração são majoritariamente de terror: a expectativa de que algo bizarro irá acontecer, seguido de revelações incríveis e que geralmente são geniais por serem algo completamente distinto dos clichês que normalmente vemos em histórias de fantasmas.
Um bom exemplo é o momento da brincadeira de esconde-esconde (que por si só já é assustadora), quando Flora vê o fantasma atrás de si e reage com um simples pedido de silêncio. O terror da expectativa é criado pela criatura desfocada que se move atrás de Flora e se encerra quando a criança não sente medo e nos mostra que também não devemos temê-lo.
O horror, no entanto, não é da maldição ou dos fantasmas. Conhecemos a história por seus efeitos: as coisas estranhas que acontecem, o comportamento das crianças, as estranhas mortes que as rodeiam, etc. Conforme os personagens, incluindo os fantasmas mais coadjuvantes, ganham camadas e passamos a entender o que conduziu cada um a certas atitudes, o terror começa a ficar cada vez mais escasso e nos vemos proporcionalmente apegados ao drama, com o medo decrescendo a cada episódio.
Os fantasmas assustadores tornam-se pessoas aprisionadas em um limbo, provocado por uma história com a qual sequer tinham ligação alguma. A cada nova revelação, a cada aprofundamento dos personagens, também uma nova oportunidade de mostrar a potência do elenco: todos os atores, incluindo o elenco infantil, são excelentes.
O final nos revela, que a história de fantasma, enfim, é um romance. Assim como o terror é ligado ao desconhecido e também o é o medo e, ao passo que entendemos e compreendemos os acontecidos, esse sentimento desaparece, dando espaço para um horror do que não queremos em nossas vidas ou o horror da perda e, mais comum do que mansões mal-assombradas, são as relações humanas.
Psicologismos
Observamos, durante décadas e até mesmo em muitos filmes contemporâneos, como Ad Astra, um psicologismo bastante pobre e apoiado em estudos freudianos, o que, convenhamos, tem sua importância, mas já é bastante ultrapassado. Esse tipo de psicologismo gerou filmes que recriaram estereótipos ao longo de muitos anos e não é difícil, em filmes mais antigos, determinar quem são os malvados e quem são os mocinhos a partir de uma mera análise dos estereótipos.
O cinema contemporâneo (e chamo A Maldição da Mansão Bly de cinema, porque não há nada que distingua um formato do outro senão o fato de um deles ser seriado — e quem nunca viu um filme em várias partes que atire a primeira pedra) já não admite isso. A revolução que vemos não é apenas de representatividade (algo que, inclusive, o seriado ambém faz de uma forma incrível), mas de uma recusa dos estereótipos nocivos e muitas vezes reproduzidos nos filmes de terror.
Claro que há estereótipos na série, mas há a compreensão de que as pessoas desses estereótipos não são todas iguais. Peter e Henry, que correspondem a padrões vistos em diversas obras, ganham dimensões do porquê de serem assim e, mesmo que possamos prever o que farão, a própria série já havia utilizado as quebras de expectativa do terror para nos deixar em dúvida com relação ao desdobramento dos personagens.
A Maldição da Mansão Bly retoma, ainda assim, o estereótipo de mulher traída que, pela dor, assombra um local quase no mesmo sentido da popularizada lenda de O Grito. Por outro lado, os roteiristas aproveitaram o espaço de tempo estendido da série para adicionar camadas à personagem e nos mostrar que ela mesma, por suas próprias vaidades e desavisadamente, colocou sua alma na situação de um fantasma e de uma maldição.
Ao contrário do antigo psicologismo, que transformou personagens em fórmulas, A Maldição da Mansão Bly acompanha outras produções recentes que, como faz mais descaradamente Sex Education, educa maravilhosamente os espectadores em questões complexas e que geram desajustes psicológicos a longo prazo.
A morte dos pais das crianças não as afetou ao ponto de as tornar más, o que fez isso, foram as más influências, tornadas concretas através da influência real dos fantasmas sobre as crianças, o que é um bom exemplo de como os formatos estão mudando.
Assim como Sex Education, A Maldição da Mansão Bly nos ensina que pessoas não são simples e ainda nos dá muitas amostras de como lidar com essas complexidades, uma absorção muito mais útil da psicologia.
Romance, enfim
A Maldição da Mansão Bly é um excelente romance, porque usa o terror como metáfora, mas o fato de ser, enfim, uma história sobre histórias de amor, não deixa a série menos aterrorizante. O terror dos fantasmas abre espaço justamente para o horror da perda que presenciamos nos personagens através da nossa empatia, e nos deixa a par disso, de diversas formas, através de diversos tipos de amores e relacionamentos.
Esse horror do que aconteceu com eles, dá espaço para um terror real em nossas vidas, o de que podemos perder as pessoas que amamos. A série, porém, não nos deixa apenas com isso, mas nos dá caminhos para lidar com esse luto (de pessoas vivas ou mortas) e ainda nos oferece caminhos para nos prepararmos para isso em um futuro que não sabemos quando irá chegar.
A série trata ainda das formas ruins de amor, sobretudo a da posse, representada por Peter e Viola, que também são os maiores causadores de problemas. Problemas estes, que são resolvidos através de reais laços de amor, relações verdadeiras e sinceras, em que os sentimentos são expostos sem constrangimento e em que as pessoas tratam umas às outras com compreensão e empatia. Com a compreensão desse bem que é o amor, vem o terror da falta.
A Maldição da Mansão Bly não é um terror para ter pesadelos, é um horror que nos faz chorar porque queremos ser melhores do que somos e valorizar as pessoas que amamos.
A Maldição da Mansão Bly está disponível para todos os assinantes da Netflix.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.