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Crítica | A esperança agressiva de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite

Por| 20 de Setembro de 2019 às 17h00

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Paris Filmes
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Minha primeira reação quando Midsommar: O Mal Não Espera a Noite terminou foi de afastamento, eu não queria mais escrever a respeito. Não lembro de já ter sentido essa sensação de repulsa tão forte. Mas não dá para dizer que se trata de uma aversão intolerante. É um sentimento de perturbação, inquietação e vulnerabilidade; uma espécie de perda de controle sobre o que é a vida, sobre o que vale a pena, sobre dor... uma negação intensa da vontade de adentrar em meu psicológico doente para explorar a forma convulsiva de pensamentos que começaram a se agredir.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

E o mundo devolve com desprezo

Se a premissa de trazer o terror para a luz do sol é de algum modo original, há uma condição de compensação em cada passo planejado pelo roteirista e diretor Ari Aster. É como uma tentativa de solidificar a natureza dualista do ser humano, onde a ausência de meios-termos consome muito do que se pensa, do que se faz e do que se planeja. Assim, Dani (Florence Pugh) – a protagonista – é um recipiente ao mesmo tempo particular e universal. Há uma contínua busca por equilíbrio na personagem, que, aos poucos, transforma-se em inquietação. Cada passo dado por ela é uma tentativa de conciliação com o mundo, que lhe devolve com desprezo.

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Aster, que já exercitara um distanciamento do seu objeto com Hereditário (2018), constrói uma rede de proteção entre ele e as imagens, entre as imagens e o público. Evocando muito da pegada de Stanley Kubrick (de O Iluminado, 1980) e da classe de John Carpenter (de O Enigma de Outro Mundo, 1982), o diretor demonstra ter controle absoluto em cada cena. Dessa forma, compreendendo a potência de cada questão prescrita no roteiro, o diretor investe na construção de espaço. Essa separação proposital entre criador e obra acaba retirando a potência dramática e solidificando o estranhamento. Nesse sentido, os closes são praticamente ausentes, demonstrando uma preocupação em desviar uma provável identificação do público para com a personagem principal e depositar esse sentimento de reconhecimento no clima, na tensão.

Dessa maneira, acontecimentos como aquele que traumatiza Dani durante a abertura são tratados com a intenção de causar sensações, na busca por um sofrimento não de empatia, mas justamente de horror por parte do espectador. Os planos que jamais vão além dos americanos e a câmera lenta na revelação do episódio inicial fatídico, por exemplo, conduzem um abalo emocional tão imersivo quanto desagradável. Instala-se, nesse ponto, a curiosidade; uma necessidade de conhecer para não se aproximar novamente; e um desejo fundamental da vida em terror: o de compreender medos, traumas e dores a ponto de racionalizá-los e de conseguir revertê-los.

Com essa base, Midsommar: O Mal Não Espera a Noite chega ao seu mais delicado e dolorido tema: a solidão. Enquanto Dani é apresentada como a personificação de um isolamento provocado por agentes externos – a dura morte da família, o namorado sem coragem para findar a relação, o oferecimento de amizade por pena... –, é esse mesmo conceito que demonstra o quanto o impertencimento, a dor de não se sentir parte do mundo, faz com que se procure afeto e aceitação em condições das mais desesperadoras.

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Quando os homens têm medo da luz

Ainda assim, Aster abusa da distância, repartindo o sofrimento da personagem e pulverizando ele (o sofrimento) ao longo das quase duas horas e meia de duração do filme. A aflição e a angústia de Dani passam a ser a tônica do filme. Seus gritos de desespero – ao findar a dita abertura – parecem ecoar até a cena final, quando a ideia de recomeço pode passar a fazer sentido. E, se os gritos penetrantes não recebem qualquer tratamento imagético íntimo ou próximo, é o som que formaliza e faz o desespero entranhar. Nesse sentido, a música de The Haxan Cloak (de Polícia em Poder da Máfia) investe pesadamente em uma estranheza atonal, sugestionando estar perdida e procurando uma saída desesperada para se soltar, mas permanecendo presa e sufocada muitas vezes em uma só nota, que parece se debater, crescendo em volume e nunca se resolvendo.

Toda amargura, agonia e aperto é traduzido por Pugh com um talento comparável ao da experiente Toni Collette em Hereditário. A atriz solidifica o que é perceptível através dos olhos – como quando quer demonstrar que está tudo bem mesmo estando internamente destruída – e vai à catarse emocional em crises de ansiedade torturantes com uma naturalidade que, por si só, é assustadora. Ela (Pugh), por sinal, é a principal responsável por exponenciar o desejo explícito do roteiro de diminuir os coadjuvantes (inclusive seu namorado covarde). Isso se deve ao fato de que, no final das contas, não foram Christian (Jack Reynor), Josh (William Jackson Harper), Mark (Will Poulter) e Pelle (Vilhelm Blomgren) que diminuíram de fato, mas ela que se agigantou.

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Nesse processo inteiro, Aster revive – como diretor tão consciente que é – seu filme anterior quase que às avessas. Se na crítica sobre Hereditário citei Platão ao expor que “[p]odemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz” e, naquele texto, eu me referia à luz como a razão, aqui é tudo mais palpável, mais claro. É como se ele (Aster) acenasse para um público mais abrangente e, ao mesmo tempo, não perdesse suas questões autorais.

Uma esperança agressiva

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Vou chegando ao fim desse texto com a mesma sensação que iniciei. A repulsa é real. Mas Midsommar: O Mal Não Espera a Noite tem uma condução tão consciente de jamais afogar o espectador na intolerância; tem uma sensibilidade tão perturbadora ao refletir sobre solidão, recuperação traumática, aceitação no mundo e inquietação que a vida pode, sim, a partir dele (do filme) ser mais pensada e, talvez por isso, mais sofrida. Mas a esperança de mudança pode passar a ser reconhecida no diferente, no silêncio barulhento de um psicológico doente.

Se isso for um ponto de partida (como no meu caso) para uma convulsão de pensamentos agressivos, mas dispostos a uma conciliação – internamente violenta e externamente silenciosa –, o sorriso de Dani (enfim em close), na última cena, pode ser uma declaração de que tudo vai ficar bem e que, apesar do que cada um de nós passa de perturbador, ainda pode existir a chance de olhar para frente, para o futuro, e se ter esperança. E mesmo essa esperança pode ser bem agressiva... Eis o pavor da dúvida. Eis o maior mistério da vida.