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Crítica | Ad Astra: sem necessidade de medida

Por| 27 de Setembro de 2019 às 20h40

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Fox Film do Brasil
Fox Film do Brasil
“A verdadeira medida do amor é não ter medida.”– Santo Agostinho

A ficção científica é, provavelmente, o gênero que tem mais propensão para discutir a vida e o mundo por meio de metáforas – o que foi tão bem solidificado durante a história do cinema por filmes como Metrópolis (de Fritz Lang, 1927) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick, 1968). Talvez, em todo caso, não seja tão imprescindível compreender o significado mais profundo de Ad Astra para o perceber como um filme com camadas para além do que é exposto de maneira mais direta. Por outro lado, pode ser interessante essa compreensão para construir interpretações próprias.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Roy e Michael

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Nesse sentido, Ad Astra assume uma postura quase que psicanalítica ao expor uma relação entre pai e filho de uma forma tão distante quanto íntima. Enquanto, na abertura, Roy (Brad Pitt) é apresentado como um profissional extremamente centrado, concentrado e racional – as primeiras explosões ressaltam a tranquilidade do seu poder de decisão mesmo que em perigo de morte e caindo com chances de desmaio –, é ao lembrar do pai, H. Clifford (Tommy Lee Jones), que as mudanças em sua estrutura psicológica ficam aparentes.

Mas é uma aparência inicialmente muito discreta. Pitt, assim, é de uma sensibilidade na atuação que parece dizer muito mais com o olhar propositalmente um tanto robótico e com pequenos tiques nervosos que transparecem naturalidade – como ao tremer os lábios – do que com suas falas racionalizadas e suas decisões treinadas. Por essa perspectiva, afastar-se de quem ele ama ou acredita amar é de uma habilidade tão sincera quanto pousar um módulo espacial manualmente.

A direção de James Gray (de Era Uma Vez em Nova York, 2013) deixa tudo muito claro desde a primeira vez em que Roy é visto em casa, quando sua esposa, Eve (Liv Tyler), surge em segundo plano completamente desfocada pela lente de pouca profundidade. Esse afastamento, guardadas as devidas proporções, em muito pode lembrar o trabalho realizado por Francis Ford Coppola para separar Michael (Al Pacino) e Kay (Diane Keaton) em dois momentos muito específicos de O Poderoso Chefão (1972): quando a personagem de Pacino descobre sobre o atentado que acomete o pai e vai a uma cabine telefônica e na última cena, quando ele (Michael) é, enfim, tratado como o substituto do pai. Em ambas, Coppola claramente separa o casal através do foco para salientar que Kay não é a prioridade de Michael, sendo esta a família e, consequentemente, os negócios herdados do pai.

No entanto, o roteiro de Ad Astra – escrito pelo próprio diretor e por Ethan Gross (de Clepto) – entende essa separação não como para revelar a personalidade em crescente transformação do seu protagonista, mas para salientar o grau de separação do mundo – inclusive dos mais próximos – causado por um abandono paterno. Michael era um processo, Roy é um resultado. Se este assimilou o afastamento de H. Clifford como estritamente profissional, acabou por internalizar a sua profissão como prioridade, desenvolvendo uma frieza capaz somente de ser descortinada por quem a induziu.

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A construção da personagem de Pitt é tão saliente quanto a possibilidade de perceber que, na verdade, trata-se de uma desconstrução. O filme, por esse caminho, enxerga em Roy um ser humano com emoções presas, camufladas pela fachada de astronauta capacitado para qualquer função justamente por controlá-las – e os testes psicológicos frequentes atestam a necessidade desse controle emocional.

As cores de Hoytema e o ritmo

Disposto a sublinhar o tanto de informações simbólicas, a direção de fotografia de Hoyte Van Hoytema (de Interestelar) dá a impressão de abraçar Roy com sua luz mansa em tons azuis. É como se Hoytema ilustrasse o que se passa no interior do personagem, fazendo de sua aparente impassibilidade um lugar melancólico para morar. É interessante quando, em meio à dita desconstrução e da finalmente descoberta do paradeiro com vida do pai, as luzes aquecem as cenas com cores quentes explícitas – ainda mais quando na presença de Helen (Ruth Negga), que tem sua história de vida galacticamente – e de forma alarmante – ligada à de Roy. Inclusive, ela (Helen) é a única personagem que, em algum instante, é acompanhada pela câmera de Gray sem que seja necessária a presença do protagonista.

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Sob outra perspectiva, o diretor talvez tenha pesado a mão em sua busca pela contemplação da personalidade retraída de Roy, como se houvesse a necessidade de afirmá-la e reafirmá-la muitas vezes para que, só então, o público conseguisse perceber a dimensão do que foi escrito. Algo como a falsa racionalidade de que tornar arrastada uma ficção científica espacial é um conceito aplicável em qualquer circunstância. Se isso demonstra que 2001: Uma Odisseia no Espaço fez escola, também demonstra uma falta de compreensão de Gray sobre o seu próprio material que, mesmo tendo o seu grau de profundidade, não tem qualquer possibilidade de ter a grandeza do filme de Kubrick.

O cordão umbilical

É mesmo no mais íntimo, em questões psicanalíticas – freudianas e lacanianas –, mas, sobretudo, em questões humanas, que Ad Astra se encontra. Se a paternidade percorre todo o filme tanto pela ótica de Roy quanto pelo respeito cedido por ele à hierarquia de comando – e também por aquele que, pela idade ou pela história, é carregado por uma aura de reverência – Thomas Pruitt (Donald Sutherland) –, é exatamente ao abandonar a idealização de pai que Roy tem sua desconstrução finalizada.

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Ali, na órbita de Netuno – um planeta tão azul e frio quanto as pinceladas de luz de Hoytema ao apresentar o interior de Roy –, que o filho separa-se definitivamente do pai. Para isso, o fio de vestimenta que os unia é rompido como se fosse um cordão umbilical.

É a metáfora imagética ideal para o renascimento dele (de Roy), que retorna à Terra como um novo homem, renascido. Ele é retirado do seu módulo espacial por uma equipe que poderia, em outra situação, ser médica a trabalhar em um parto. A mão estendida puxa aquele homem para fora. Dá-se à luz um homem pronto para encarar o futuro sem traumas ou pendências do passado; sem piratas em seu caminho; sem a dor de uma lembrança difícil; sem a razão afogar o que, de fato, a equilibra: a possibilidade de amar sem a necessidade de medida.