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Doomscrolling: ler más notícias no celular sem parar pode prejudicar sua saúde

Por| 28 de Novembro de 2020 às 13h00

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 Priscilla Du Preez / Unsplash
Priscilla Du Preez / Unsplash

Deslizar o dedo interminavelmente pela tela, você percebe que as notícias são preocupantes. Uma pior que a outra. No entanto, algo te prende naquela atividade, e mesmo que as sensações sejam desagradáveis, você continua lendo cada uma das notícias. Identificou-se? Acontece que você não está sozinho. Nesse período de pandemia, essa prática tem sido cada vez mais comum, e os norte-americanos a nomearam de doomscrolling (na tradução literal, seria algo como 'rolagem da desgraça').

O termo ganhou popularidade logo no início da pandemia, em março, quando o norte-americano Kevin Roose, do The New York Times, fez uma reportagem sobre como acompanhar as notícias a respeito da COVID-19. "Eu tenho feito muito desse tipo de doomscrolling recentemente, me agitando a ponto de sentir desconforto físico, apagando qualquer esperança de uma boa noite de sono. Talvez você também tenha feito isso. Não há nada de errado em se manter informado. Mas precisamos praticar o autocuidado e equilibrar nosso consumo de notícias ruins com tipos mais suaves de estímulo, para nossa saúde e a sanidade das pessoas ao nosso redor", escreveu, na ocasião.

E, de fato, a enxurrada de notícias preocupantes em torno da COVID-19 têm sido um dos principais pontos responsáveis pelo impacto que a pandemia tem causado em nossa saúde mental. Inclusive, o Canaltech fez um especial sobre O impacto da pandemia na saúde mental da população (Parte 1; parte 2).

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Em entrevista ao Canaltech, a jornalista Ingrid*, de 22 anos, conta que precisou parar quando viu que acompanhar as catástrofes lhe fazia mal: "Tenho apps de notícias no meu celular e quando me senti atingida diariamente pelas manchetes ruins, resolvi silenciar as notificações e até exclui alguns. Consumir todas aquelas informações negativas me deixava com um misto de tristeza, impotência e medo. Então, preferi me abster do que me fazia mal, mesmo sabendo que isso não mudaria a realidade do país. Eu precisei desse tempo e, particularmente, foi uma boa decisão".

De acordo com o psicólogo clínico e hospitalar Rodrigo Casemiro, submeter-se a essa chuva de notícias preocupantes pode trazer sérias consequências para a saúde mental. "Estamos vivendo um momento muito atípico no qual, se alguém fizer uma estatística, provavelmente encontrará mais notícias ruins que boas. Se estatisticamente forem mais notícias boas que ruins, existe então a percepção coletiva de que há mais notícias ruins que boas", observa.

Para o psicólogo, essa avalanche gera um sentimento de desesperança, uma sensação de impotência, de estarmos reféns de uma situação maior. "Com essa carga de frustração, muitas pessoas podem desencadear quadros de depressão e/ou ansiedade, por exemplo. E estas questões podem levar doenças psicossomáticas, que são aquelas de origem emocional, psicológica. A psicoterapia pode ser um recurso importante para a retomada de um fôlego para enfrentamento e busca de meios para contornar as situações, tanto no âmbito pessoal quanto social", reitera.

Celular durante a pandemia

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No entanto, apenas a prática de mexer no celular de forma incessante já é suficiente para preocupar os especialistas. E num período de isolamento social, tem sido uma atividade muito comum, muito frequente e, por sua vez, as consequências também acabam frequentes.

O estudante Leonardo*, de 18 anos, conta que, antes da pandemia, o celular era uma ferramenta extremamente essencial de comunicação para ele, pois estudava em outra cidade e tinha que se comunicar com a mãe o tempo todo. Nessa época, ele evitava deitar na cama e ficar tomando tempo olhando as redes sociais, ou então acordar de manhã e matar tempo no celular. No entanto, com a ascensão da COVID-19, as coisas mudaram.

"Estou 100% do tempo no celular ou no computador. Quando estou longe do computador pode ter certeza que estou andando pela casa com todas as redes sociais abertas no celular. No geral, eu tenho uma necessidade absurda de ser entretido o tempo inteiro, de não ficar entediado, de dividir meu foco de atenção. É um ciclo vicioso horrível: estou jogando no computador, paro de jogar, abro o Twitter e fico com vontade de jogar de novo. Acho que o que motivou isso foi simplesmente a falta de foco e a sensação de descomprometimento que o EAD traz. Gradualmente, eu comecei a usar cada vez mais o celular e o computador", relata Leonardo.

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No entanto, ao perceber o vício no smartphone, Leonardo tentou desinstalar as suas redes sociais, mas sem êxito. "Eu desinstalei quando percebi que tava totalmente viciado, porém, eu não tenho mais com o que ocupar minha cabeça. Eu só instalei tudo de novo e voltei a ficar viciado", observa.

Esse vício também tem assolado Ingrid durante o período de isolamento social. "Atualmente, o celular está sempre comigo, virou uma relação de vício. Agora estou tentando amenizar o consumo, e, de acordo com os dados do próprio celular, meu tempo de uso está com média de 6h20. Com a pandemia, meu hábito de mexer no celular e redes sociais só aumentou. Passo muito mais tempo consumindo conteúdos nas mídias digitais e a maioria desses conteúdos é irrelevante", afirma.

Para a jornalista, o começo da pandemia foi mais difícil. "Fiquei muito agoniada com o fato de ficar em isolamento, sem sair para nada. Além disso, a sensação de medo do que poderia acontecer com o mundo, no geral, também foi um sentimento que mexeu muito comigo. Foi horrível. A alternativa que achei para amenizar foi evitar consumir notícias desse tipo, e deu certo. Hoje, não sei se é porque já me habituei de alguma forma, mas consigo lidar melhor essa situação", conta.

Arthur Igreja, especialista em Tecnologia e Inovação e professor convidado da Fundação Getulio Vargas (FGV), analisa que o celular virou uma extensão do corpo, se tornou nosso modem. "Ainda bem que o nosso corpo não tem conexão, ou ficariamos neuróticos 24 horas por dia. Vivemos tanto tempo sem, pois era algo que não existia... E, assim, usávamos outros mecanismos e maneiras de fazer as coisas. Outro fator é a convergência. É difícil, hoje, definir o que é um smartphone: ferramenta de socialização, de trabalho, performance, aprendizado, exercício físico ou meditação? Ele é o painel de controle da nossa vida".

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Questionado sobre até que ponto podemos reconhecer que o uso do celular está saudável e a partir de quando é possível identificar que aquilo se tornou um vício, o professor afirma: "Com relação a qualquer coisa que possamos analisar pela ótica do vício, o fator principal é a partir do momento que se abre mão de algo para ficar 'pendurado' no celular, ou não existe interação, pois deixou-se de lado o contato humano para checar notificações ou postar nas redes sociais, por exemplo".

Impactos na rotina

Na visão do psicólogo Rodrigo, com o isolamento social, as pessoas estão impossibilitadas de fazerem muitas de suas atividades do dia a dia, e desta forma, acabam direcionando sua atenção para aquilo que está ao alcance, por exemplo, o celular, e algumas atividades, como a interação em redes sociais, propiciam um prazer grande, o que ativa o centro de recompensas no cérebro, favorecendo que a pessoa busque com mais frequência a utilização das redes ou celulares.

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"O isolamento nos impossibilita de fazer algumas atividades, e principalmente, de ter contato físico e social. O ser humano é um ser em relação e precisa das trocas sociais. Certamente, algumas pessoas interagem mais do que outras, porém, já que não há contato físico nem as reuniões sociais e familiares presenciais, a tecnologia propicia o contato, a troca, de maneira virtual", reflete o especialista. "É importante saber que nesse momento específico talvez não possamos dizer que seja necessariamente um vício, mas sim, a quase única possibilidade de interação, de relação, e assim sendo, podemos observar se o uso está trazendo algum prejuízo para além da ansiedade advinda do isolamento; podemos pensar em nos envolvermos com outras atividades", acrescenta.

E de fato, Leonardo e Ingrid relatam impactos na saúde mental desde que o período de isolamento teve início. "Não consigo encontrar o menor foco para estudar e é desesperador perder meu terceiro ano e não ter nenhuma aula decente para prestar vestibular. Fora que em casa é o puro caos. Ninguém estava acostumado com isso", diz Leonardo. "Acho que, no momento em que estamos vivendo, o uso desses meios, serve, muitas vezes, de escape. Devido à pandemia, o isolamento social é quase inevitável (para aqueles que respeitam isso, claro). Mas acredito também que antes dessa crise o uso excessivo de celulares/redes sociais era resultado do isolamento de algumas pessoas, sim. Já vi muita gente em restaurantes, por exemplo, mexendo no celular, sendo que ali era um momento para socializar", completa Ingrid.

Questionado sobre quais recomendações pode dar para quem está começando/retornando um vício em celular possa contornar essa situação, Rodrigo diz: "Se a máxima 'um dia de cada vez' é válida para tratamentos de vícios, podemos ampliá-la para um momento de cada vez, uma atividade de cada vez, isto é um exercício que pode ajudar a contornar questões viciantes. Envolver-se com cada atividade plenamente, com o que chamamos de atenção plena. Tomar consciência de que se está envolvido com um vício. Vícios podem acometer a todos nós. Não é motivo de vergonha ou culpa. Mas pode e deve ser olhado com atenção, carinho e autocompaixão. E procurar ajuda é um caminho que auxilia, e muito".

Leonardo e Ingrid acreditam que a situação pode voltar à normalidade assim que a pandemia se der por encerrada. "Se eu conseguir voltar com uma rotina ocupada acordando cedo e dormindo cedo, eu serei obrigado a abdicar das redes sociais e meu cérebro também vai ter tempo para se importar com outras coisas", diz o estudante. "Acredito que irá diminuir, sim. Antes da pandemia, eu tinha uma vida mais agitada, com muitas coisas que consumiam o meu tempo, ou seja, não dava para ficar tanto de bobeira. Para mim, esse é um vício momentâneo", finaliza a jornalista.

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*Alguns nomes presentes nessa matéria foram alterados para proteger a identidade dos entrevistados.

Fonte: Com informações de Wired, The New York Times