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20 anos não é nada

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Jeremy Bezanger/Unsplash
Jeremy Bezanger/Unsplash

Um dos principais mantras da indústria de telecomunicações no final da última década do século 20 era “construa e eles virão”. Eram tempos de exuberância e previsões exageradas sobre a demanda de serviços. O importante na época era colocar o maior número de transponders em órbita, expandir exponencialmente as redes terrestres e submarinas de fibra ótica e aumentar a cobertura populacional das redes móveis.

Os estudos de centenas de consultores, desde o menor tipo boutique, até o maior com alcance global, não poderiam estar errados. Tampouco as receitas dos organismos multilaterais que não viam teto possível para o crescimento desenfreado do número de linhas contratadas.

Os anúncios da época apresentavam residências totalmente conectadas, e o advento do 3G prometia conectividade onipresente que acabaria com a divisão digital nos países emergentes. Estávamos numa fase imparável de desenvolvimento, o futuro estava nas nossas mãos e nada poderia parar tanta modernidade.

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Até que as falências começaram. Muitos seguiram o dogma como religião e construíram a infraestrutura esperando clientes que nunca apareciam. As promessas de modernidade foram deixadas de lado e em seu lugar assistimos ao regresso dos blocos de espectro radioelétrico, ao adiamento indefinido dos processos de atribuição de espectro e aos múltiplos anúncios diários de falências de empresas do sector. Foram anos muito difíceis para um setor de telecomunicações gravemente prejudicado por uma indústria que havia se tornado um fantasma hiperbólico em todos os sentidos. A conectividade não foi vendida, foram comercializadas panaceias que nunca se concretizaram.

Avanço rápido de algumas décadas e muitos dos mesmos sintomas são vistos no setor de telecomunicações. A diferença é que agora estamos vivenciando isso com uma pequena fração das empresas que existiam no início da década e o hype não é mais um fenômeno viral, mas algumas que fazem muito barulho.

O que é interessante é a contradição que se observa nas mensagens. Por um lado, aplaudem a chegada dos satélites de baixa órbita como elemento-chave para eliminar a exclusão digital e, por outro, reclamam que levará anos até que a conectividade chegue a toda a população, portanto, levará muito tempo para corrigir a diferença entre conectado e não conectado. Ninguém te avisou que com as frotas de satélites a cobertura é de 100% da população e também da geografia?

Depois, há quem repita os preceitos da 3G, mas desta vez com uma 5G que poderá eliminar as diferenças de velocidade de conexão em áreas remotas e rurais da América Latina. Sim, são eles que falam sobre como a nova tecnologia será capaz de cobrir aquelas áreas que compõem 95% da geografia regional, mas abrigam apenas 18% da população de forma eficiente e rentável para os investidores.

Hoje, como ontem, vemos que a situação não é tão simples. Que a letra em decretos, declarações ou leis não tem muito peso, a menos que seja designado investimento para garantir sua implementação. Assim, a declaração da Internet como um direito humano permanece como uma bela guirlanda de Natal, inútil se a medida não for acompanhada de ações concretas para que chegue à maioria da população.

Então, hoje, como ontem, as autoridades percebem que a cobertura não é tudo. Elementos como investimento e políticas públicas atuam como filtros que aceleram ou impedem ações voltadas para o aumento do uso de tecnologias digitais. Questões como a educação para o uso de novas tecnologias, o desenvolvimento de aplicativos que atendam às necessidades locais e o estabelecimento de programas de capacitação técnica em áreas rurais e remotas são algumas das ideias que geram consenso, mas raramente são implementadas pelas autoridades. É muito mais fácil destinar o dinheiro para as áreas urbanas que abrigam a maioria da população, que afinal são as que elegem e reelegem os governantes de cada jurisdição.

O resultado é que sempre que falamos em transformação digital ou territórios inteligentes, estamos nos concentrando em iniciativas urbanas que, devido ao adensamento populacional, têm mais oportunidades de sucesso do que os quase sempre deficientes investimentos rurais. No final, os mais desconectados são os que têm menos recursos para reclamar da falta de atenção do governo. São eles também que têm menos tempo a perder porque com mais de 70% a 80% de informalidade laboral, sobram poucas horas para se preocupar se há ou não acesso às redes sociais.

Da mesma forma, se algum protesto for ouvido, eles são lembrados de que com a 5G todos os problemas de conectividade e exclusão digital serão resolvidos. Quem disser o contrário simplesmente não quer ver o saudável desenvolvimento social e econômico da América Latina, já que as grandes consultorias e especialistas de telecomunicações da região não podem estar equivocados. O quanto é importante ter comida em casa se se pode jogar World of Warcraft ou gravar um TikTok?