Trabalho silencioso a favor da conectividade
Por José Otero |
O cenário das telecomunicações na América Latina está mudando aos trancos e barrancos. O que é surpreendente é que essas mudanças estão ocorrendo silenciosamente. Enquanto a atenção de quase todos os olhares está voltada para as diferenças que podem ocorrer no mundo do consumo, é no setor corporativo, nos marcos legais e no desenho do ecossistema da rede de transportes que a nova abordagem pode ser identificada para o negócio de transportar dados.
Enquanto isso acontece, o setor fica ensurdecido com reivindicações tão fortes quanto irrealistas. Toda nova tecnologia é apresentada como uma profecia cumprida. O que inspira não é sua performance, mas sua chegada, uma chegada celebrada com incertezas de sobrevivência. Como tem sido possível sobreviver diante da disrupção tecnológica oferecida pelo brinquedo da moda? São brinquedos inconstantes, com uma infinidade de rostos e formas, mas sempre dando razão ao discurso apocalíptico que sempre nos acompanha.
Uma das mudanças silenciosas a que me refiro ocorre sem muitos aplausos ou celebrações. Longe do mercado importante, ou dos eleitores, seu benefício é concedido indiretamente. Assim, contempla-se o aumento drástico na implantação de fibra óptica, não só para conectar residências em velocidades superiores a 1 Gbps, mas também aquelas que se destinam a suportar o crescimento dessas velocidades de conexão em todas as geografias de um país. Por exemplo, implementações de fibra óptica que não são mais exclusivas das capitais regionais para começar a conectar cidades com populações menores de Xalapa, no México, ou Bucaramanga, na Colômbia, a Salto, no Uruguai, ou San Pedro de Macorís, na República Dominicana.
No entanto, o aumento da densidade da infraestrutura está levando os governos da região a ampliar a conectividade terrestre em áreas antes não contempladas. Por exemplo, o Brasil vai implantar cerca de 12.000 km de fibra óptica fluvial nos rios da selva amazônica, em seu programa Amazônia Integrada Sustentável. Isto permitirá ao país atuar enquanto sistema de conectividade, uma plataforma de integração, oferecendo serviços de capacidade para vizinhos amazônicos como Bolívia e Colômbia.
Da mesma forma, regiões historicamente esquecidas, como as Guianas, no norte da América do Sul, colaboraram para a construção do Sistema de Cabo Submarino Guiana-Suriname (SGSCS) e o compromisso de operadores privados de instalar um segundo cabo óptico submarino emulando a cobertura do SGSCS , mas acrescentando Guiana Francesa e Trinidad & Tobago ao traçado deste cabo.
Esse crescimento da fibra para transporte internacional de dados é acompanhado pelo crescimento da fibra óptica para conectividade residencial observada na região. Desta forma, o caso do Brasil em busca de um maior número de domicílios conectados é replicado em todas as jurisdições da região com países como Curaçao, Uruguai ou Barbados, com uma capilaridade de fibra óptica que ultrapassa 85% dos domicílios. No entanto, esses três países, como as Guianas ou o Paraguai, também sofrem de uma doença que afeta negativamente a oferta de serviços em nível local, as poucas saídas internacionais para seu tráfego de dados.
O aumento da quantidade de fibra óptica, que ninguém contrasta com o aumento da capacidade dos satélites, é acompanhado mais lentamente pelo interesse da grande maioria dos países da região em aumentar a quantidade de espectro radioelétrico, que pode ser usado para oferecer serviços móveis. Da Guatemala ao Equador ou de Trinidad e Tobago à Jamaica, os governos entendem a urgência de aumentar a quantidade de espectro de rádio dado às operadoras móveis para oferecer serviços.
O problema não é a disposição dos países em entregar esse insumo, mas o valor que alguns governos pretendem cobrar por isso. Assim nos deparamos com o México, um país que se gaba de ter dado estatuto constitucional à Internet ao declará-la um direito humano, mas que cobra o insumo para oferecer esse serviço a preços de material radioativo. Embora os problemas do México nos níveis de conectividade para os mais vulneráveis vão além da questão do espectro, o país asteca é prejudicado pela falta de uma estratégia digital nacional séria, com metas quantificáveis e um roteiro transparente.
Enquanto esta discussão ocorre em fóruns da indústria ou em consultas públicas que parecem se repetir inúmeras vezes, para além das redes terrestres vemos que as previsões de crescimento do tráfego impulsionam o aumento dos quilômetros de cabos submarinos de fibra ótica que cercam a região e transponders que são orbitando o planeta terra com satélites de todos os tipos, sendo os mais recentes os de baixa órbita com planos de negócios que vão desde a oferta de serviços de varejo até usuários que podem pagar um modem por cerca de US$ 500 e uma mensalidade de US$ 99 (sem IVA ), até mesmo serviços às forças militares dos diferentes países da região, como vêm fazendo há meses na Ucrânia.
A chegada destes novos operadores terá, sem dúvida, impacto na oferta regional, obrigando mais do que um operador a investir em tecnologias mais avançadas que lhes permitam competir em meio rural com a nova oferta de banda larga por satélite. O que não se explica é a gargalhada dos funcionários xingando e prometendo que a nova oferta de satélite reduzirá as lacunas digitais.
Como se vê, existe uma obsessão regional voltada para o aumento da capacidade existente no transporte de dados. Poder ter tudo o que é necessário no solo ou no espaço para suportar a chegada e expansão das redes 5G que prometem aproximar a América Latina e o Caribe desse mundo conectado com que tanto se sonhou. Essa nova geração móvel é tão necessária que já virou questão de Estado com mandatos, programas e até ordens para que isso aconteça.
Esperançosamente, a força que se ouve desses pedidos de 5G vem das instituições governamentais da região. Acima de tudo, para evitar medidas discricionárias que possam ser impostas pelos governos, simplesmente porque é muito difícil incentivar o investimento quando não há clareza jurídica ou o governo parece estar em constante caos. A constante rotatividade de funcionários impede a implementação a longo prazo dos planos de desenvolvimento, especialmente em setores transversais como as TIC.
Outra questão que parece ser esquecida pelos governantes são os aparelhos que serão utilizados tanto por usuários quanto por empresas, não aparece na grande maioria das discussões. Devemos entender o celular como um gerador de lacunas digitais 2.0 ou 3.0 dependendo da geração do terminal. A complexidade dos smartphones parece não ter sido contemplada pelos governantes regionais. Questões como as gerações de telefones que a base de assinantes possui devem ser um elemento a ser considerado no lançamento de aplicativos de governo eletrônico que visam beneficiar os mais necessitados. É a piada ácida de ir a um restaurante com um Nokia 1110 e descobrir que o cardápio na mesa está em um código QR.
Se o tema dos dispositivos é focado na Internet das Coisas, as palestras de especialistas parecem indicar que, se não fosse a 5G, esses dispositivos não poderiam ser usados para digitalizar processos e torná-los mais eficientes. Se o assunto é o usuário, os palestrantes esquecem a escassez de microprocessadores, o poder de compra regional ou a real cobertura para serviço móvel das 28 redes 5G comerciais que até março de 2023 “existiam” na região.
Nenhuma das opções acima é nova. A memória nos faz ver muitos paralelos entre a chegada e decolagem da 5G com o que aconteceu há vinte anos com a 3G. Atrasos de dispositivos, consequências inesperadas de processos de alocação de espectro de receita, promessas não entregues e um modelo de negócios de operadora virtual móvel inicialmente degradado, mais tarde visto como um salvador para operadoras de rede – semelhante ao que você ouve sobre redes privadas em algumas palestras do setor.
No final, a 5G chegará e, como nas gerações anteriores, a população acabará usando a tecnologia. Chegará assimétricamente, cobrindo mercados como Chile, Porto Rico ou Brasil muito antes do Equador, Nicarágua e Haiti.
A razão é muito simples, a capacidade de investimento. Segundo dados da CAF, o investimento em telecomunicações na América Latina e no Caribe estagnou nos últimos cinco anos, enquanto nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) triplicou. Esquemas como o utilizado pelo Brasil em seu último leilão de espectro podem servir para estimular o investimento regional, mas ainda não se sabe se é viável em outros mercados da região. Por sua vez, o Chile estabeleceu requisitos de implantação para incentivar o investimento e, por meio de iniciativas como o Campus 5G, tentou aumentar o ecossistema 5G local.
Porto Rico continuará como em quase toda a sua história, beneficiando-se dos programas de telecomunicações que são gerados em Washington DC devido ao descaso do governo em promover o setor com uma agenda de conectividade definida e criada localmente. No entanto, a injeção de cerca de US$ 2,5 bilhões para a modernização dos serviços de banda larga nas velocidades de 100 Mbps UL / 20 Mbps DL, servirá para promover oportunidades de empreendedorismo local, melhorar o posicionamento de empresas privadas e retribuir esforços de diferentes entidades que querem transformar a ilha em um centro de inovação tecnológica nas Américas. Porto Rico tem quase todos os elementos para alcançá-lo, exceto uma vontade clara do governo insular, detalhes suficientes para estragar tudo.
A questão pendente é se a 5G chegará acompanhada de todas as promessas que a tornariam uma tecnologia paradigmática. 5G acompanhada de políticas públicas inclusivas para o segmento rural, 5G que aposta no investimento nas universidades e escolas para a criação de aplicações, 5G que promove a transversalidade na tomada de decisões de políticas públicas de desenvolvimento e economia. Será essa a 5G que chega às nossas geografias ou simplesmente aquele que nos dá maior velocidade de ligação à Internet? Haverá avanços no respeito às instituições ou a discricionariedade nos dará uma nova década em que os responsáveis pelas telecomunicações serão trocados ao sabor do executivo?
O que você diz, copo meio cheio ou meio vazio?