Crítica Homem-Aranha Através do Aranhaverso | O multiverso da genialidade
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
O primeiro Homem-Aranha no Aranhaverso é um marco da animação, responsável por uma verdadeira revolução tanto tecnológica quanto de estilo que forçou todos os demais estúdios a saírem de suas zonas de conforto em busca de meios de imprimir a mesma personalidade em suas produções. E eis que, quatro anos depois, Miles Morales retorna para quebrar paradigmas mais uma vez e estabelecer sua presença como ícone do cinema.
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De forma ainda mais surpreendente, o novo Homem-Aranha Através do Aranhaverso chega aos cinemas superando os limites que seu antecessor estabeleceu, levando tanto a técnica quanto a estética a um novo patamar. É um salto quase quântico em relação àquilo que já era extraordinário e que faz com que o longa seja mesmo algo revolucionário na indústria.
Pode parecer exagero, mas é realmente impressionante o que a Sony conseguiu fazer aqui. A mistura de estilos diferentes de animação já era algo presente no capítulo anterior, mas isso é levado a uma nova escala misturando não apenas personagens animados de formas distintas, mas criando mundos únicos que exploram essa característica — e usando tudo isso em prol de sua narrativa.
Por isso mesmo, Homem-Aranha Através do Aranhaverso é um daqueles filmes de cair o queixo que vai agradar não apenas os fãs de quadrinhos, de heróis ou do Amigão da Vizinhança. É uma aventura que sabe trabalhar a humanidade de seus protagonistas ao mesmo tempo em que escancara o poder do cinema enquanto linguagem. É uma ode à criatividade e à própria arte.
Harmonia no caos
À primeira vista, toda essa mistura de estilos é bastante caótica. Já no início do segundo ato, quando a mistura de estéticas engrena de verdade e a gente vê aquela infinidade de Homens-Aranha bem distintos atuando lado a lado, é muito fácil se perder em meio à quantidade enorme de informação na tela. A sequência em Mumbattan — a Nova York indiana da Terra-50101 — representa isso muito bem, trazendo um cenário tão colorido e repleto de elementos em uma cena de ação com diferentes tipos de heróis.
Só que, ao mesmo tempo em que há muita coisa para você precisar e absorver de cada quadro do filme, nada em Através do Aranhaverso parece bagunçado. Essa profusão de cores, formas, traços e estilos tão díspares dialoga entre si de forma tão orgânica que é impressionante. É uma harmonia perfeita que emerge do caos.
É quase como no trabalho de um maestro, organizando o pandemônio sonoro de diversos instrumentos para transformar aquilo em uma sinfonia. Pois é essa a sensação que a Sony conseguiu trazer de um modo único.
E isso é um feito e tanto. A tal sequência na Terra-50101 é bem impactante por ser a primeira vez em que vemos essa regência perfeita em ação e é impossível não se impressionar com o resultado apresentado. É um cartão de visitas que o filme entrega para mostrar do que ele é capaz de fazer, deixando o espectador embasbacado e tentando imaginar como aquilo tudo foi tecnicamente construído.
Por isso mesmo, não é nem um pouco exagerado chamar Através do Aranhaverso de revolucionário. O modo com que ele brinca com os estilos de animação, mistura tudo isso e transforma essa aparente bagunça em linguagem e algo coeso na tela é algo digno do surgimento da rotoscopia na história das animações. E enquanto a técnica clássica permitiu a construção dessa pegada mais realista dos desenhos, o que o novo Homem-Aranha faz é desconstruir tudo isso em prol da sua própria narrativa.
Pois é exatamente esse o seu grande mérito. Mais do que ser apenas um espetáculo visual — e o é —, o longa alinha tudo isso com a história que está sendo contada. Todo esse aparato técnico e artístico está ali por um motivo e não apenas para deixar as coisas mais bonitas.
Há vários momentos que sintetizam isso muito bem. O Punk-Aranha é um dos novos personagens que entram para o Aranhaverso e se apresenta como aquela pessoa que não respeita autoridade e que questiona todas as regras — e, por isso mesmo, o seu estilo visual é muito mais agressivo e desleixado, parecendo muito mais uma pichação rabiscada do que um desenho clássico. Na mesma medida, Miguel O’Hara, o Aranha 2099, é de um traço tão duro quanto o próprio antagonista.
Além disso, o próprio mundo à volta dos heróis também é construído para contar histórias e traduzir o que eles sentem ou como enxergam suas próprias realidades. O roteiro desenvolve mais o passado de Gwen mostrando como tudo soa opressor para ela. Sem amigos e carregando o trauma de perder seu Peter de forma trágica, ela ainda precisa lidar com a decepção do seu pai, que odeia a Mulher-Aranha.
Por isso mesmo, Através do Aranhaverso faz com que a Terra-65 seja sempre representada não só com cores escuras e frias, mas com pinceladas e traços que reforçam esse tom opressor com que ela enxerga o mundo. E, a partir do momento em que ela é surpreendida com uma virada de percepção, esse mesmo cenário se transforma em uma página em branco em que ela pode finalmente colocar suas próprias cores.
E é o tipo de coisa que o filme desenvolve até de forma sutil. Em meio ao espetáculo visual que ele proporciona, ele deixa a cargo do próprio espectador se perder em meio a essa aparente bagunça visual até encontrar o fio que dá forma a essa tão bela e engenhosa teia.
A essência do herói
Por isso tudo, a parte técnica de Homem-Aranha Através do Aranhaverso só funciona de forma tão impressionante assim por estar tão conectada à sua narrativa. E, nesse ponto, a Sony acerta mais uma vez ao trazer uma história que funciona demais tanto na forma quanto no conteúdo.
Em linhas gerais, a trama do novo longa é tanto uma extrapolação daquilo que a aventura anterior já apresentou como também uma ampliação do discurso que Sem Volta para Casa também trabalhou ao brincar com o multiverso do Amigão da Vizinhança.
Toda essa bagunça de realidade que Miles Morales mais uma vez se envolve ainda está conectada à tentativa do Rei do Crime de acessar outros universo. Basicamente, os heróis fecharam apenas uma porta aberta pelo vilão e, agora, descobrimos que há tantas outras surgindo em diferentes mundos. Assim, com anomalias multiversais acontecendo, surge uma espécie de polícia do multiverso — a tal da Sociedade Aranha, liderada por Miguel O’Hara.
Essa é a porta de entrada para que a gente veja todos esses diferentes Homens-Aranha em ação. É uma saída bem inteligente para extrapolar qualquer limite do bom senso e brincar tanto com ideias absurdas — como o Rex-Aranha e o Gato-Aranha —, como trazer algumas versões icônicas do personagem dos quadrinhos e até de outras mídias, misturando quadrinhos, animação, game e live-action de forma muito natural. Tudo aquilo que a gente queria ver no Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês) está aqui.
Só que essa é apenas uma camada superficial da história. Embora muito divertida, a parte mais interessante de Através do Aranhaverso está justamente na jornada de Miles Morales por esses infinitos mundos e como, a partir dessa bagunça toda, ele começa a entender um pouco mais o que é ser um Homem-Aranha.
E é aí que o roteiro acerta em cheio a essência do personagem, mostrando por que ele é tão poderoso há mais de seis décadas. O filme aborda mais uma vez a questão do sacrifício que já tinha sido abordado em Sem Volta para Casa, mas subvertendo sua resolução em uma virada que apenas engrandece seu protagonista.
Afinal, mais do que simplesmente aceitar a inevitabilidade de certos eventos canônicos, o heroico está em lutar contra todas as probabilidades para fazer aquilo que é certo. Como poucas vezes vimos em qualquer adaptação, o longa entende melhor do que ninguém a essência do que é ser um herói.
Para além do Aranhaverso
Ao mesmo tempo, essa jornada de descoberta de Miles é também acompanhada por uma postura bastante afirmativa de pertencimento e representatividade bastante poderosa e que faz acenos não tão sutis assim para minorias do mundo real — o que só demonstra a força de Homem-Aranha Através do Aranhaverso para além da fantasia do gibi.
Todo o discurso gira em torno de ele ser quem deseja ser e estar onde queira estar. É algo que sua mãe, Rio Morales, fala em um discurso logo no início do filme e que reverbera ao longo de toda a trama, principalmente quando Miles passa a ter a sua existência enquanto Homem-Aranha questionada. Ainda que as coisas não sejam tratadas abertamente dessa forma, temos um garoto negro tendo que encarar um universo inteiro dizendo que seu lugar não é ali e que ele não merece os poderes que tem — ou, melhor dizendo, que os roubou de alguém.
É algo bastante chocante e que dá mais força para quando Miles se opõe a isso, mostrando que ele é um herói não por fazer ou não parte do clubinho multiversal de O’Hara ou ter sua existência ligada ao tal fato canônico, mas pelo simples fato de decidir que aquele é o seu lugar e ele é quem diz ser.
Essa postura afirmativa é a mesma que ouvimos em debates raciais ou de gênero, por exemplo. E, não por acaso, Através de Aranhaverso deixa claro seu apoio ao movimento negro, de imigrantes e LGBTQIA+. Em vários momentos, é possível ver bandeiras e frases de apoio a esses grupos, o que torna toda a jornada de Miles poderosa não só para o protagonista em si, mas personificando uma luta que não cabe na tela.
É a representação que é a mais pura síntese do papel do herói na nossa cultura — e que só mostra o quanto Homem-Aranha Através do Aranhaverso é um filme importante.
Sem final, mas sem problema
Se a gente tivesse que apontar um problema para Homem-Aranha Através do Aranhaverso seria o fato de ele ser um filme sem final. Como a ideia original é que ele fosse a primeira parte de uma história que será concluída no que agora é chamado de Além do Aranhaverso, o longa não se preocupa em fechar o arco que constrói aqui.
Só que isso não é justo, já que mesmo essa quebra da trama é muito bem-feita e construída de modo que a gente tenha uma estrutura coesa de três atos mesmo sem um desfecho para a história principal. É óbvio que muita coisa fica aberta para ser resolvida na sequência, mas o modo como essa primeira parte é desenvolvida é irretocável.
Do desenvolvimento de seus protagonistas em uma introdução que não se preocupa em se estender demais para dar atenção àquilo que é importante à apresentação de um ótimo vilão — quem diria que o Mancha seria tão incrível em um filme? —, tudo é muito bem dosado. Até porque a ênfase não está em ser um apenas mais uma aventura de heróis, mas algo com peso e focado em seus personagens. E tudo isso está na profundidade certa.
Por isso tudo, Homem-Aranha Através do Aranhaverso é um dos melhores filmes de 2023 com certa facilidade e um novo marco não apenas nas animações, mas dentro do próprio universo de heróis.
O domínio da técnica, da linguagem e da narrativa para criar um roteiro que vai muito além do bandido da semana é tão incrível que coloca a barra de qualidade em um nível altíssimo. É algo quase revolucionário e difícil de imaginar como (e se) isso vai ser superado em breve. Porém, levando em conta a genialidade contida aqui, o próximo Aranhaverso pode mudar tudo isso de novo.