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Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso e a humanidade necessária

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Sony Pictures Animation
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Desde que a Marvel lançou Homem de Ferro (de Jon Favreau, 2008), o cinema vem experimentando doses cavalares de filmes sobre super-heróis. É possível que, pensando dessa forma, até mesmo os maiores e mais conscientes fãs do subgênero (termo controverso, mas que deve ser usado com a melhor das intenções) já tenham se perguntado se há algum exagero nessa investida que é, obviamente, de mercado. Desse modo, personagens da Liga da Justiça, dos Vingadores, dos X-Men... só sumirão dos cinemas quando deixarem de dar lucro para os grandes estúdios. E, como comprova a bilheteria de Aquaman (de James Wan, 2018), isso não acontecerá tão cedo.

Por outro lado, há filmes excelentes dentro desse espectro, que merecem estar no hall dos grandes filmes em seus anos de lançamento. Nesse sentido, Pantera Negra (de Ryan Coogler, 2018) talvez seja o maior expoente de uma justiça a ser feita aos filmes de super-heróis. Não exatamente por suas qualidades enquanto filme (que, sim, são muitas), mas pelo seu legado, pela sua força político-social, por trazer em escala imensa a questão da representatividade.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

A Identificação e um conceito de realidade

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“É preciso ser um realista para descobrir a realidade. É preciso ser um romântico para criá-la.” – Fernando Pessoa

Eis que surge Homem-Aranha no Aranhaverso e, com ele, uma renovação guiada por aquilo que liga qualquer espectador aos personagens: a identificação. E não é a identificação do querer ser; por admiração; pela fantasia de voar, de ter superpoderes... é a identificação do, simplesmente, ser, do existir tal e qual. Aqui, a identificação com o jovem Miles Morales (o protagonista) é quase que instantânea. Seja por sua relação com seu preocupado pai (e os famigerados “micos” adolescentes), seja pela admiração pelo tio, seja pela aproximação da misteriosa Gwen Stacy ou seja pelos pensamentos comuns impostos pelo roteiro de Phil Lord (Uma Aventura Lego, 2014) e Rodney Rothman (Anjos da Lei 2, 2014), Miles poderia ser uma parcela considerável do público ou, no mínimo, um conhecido de cada espectador.

A proximidade é tanta que o filme brinca, justamente, com tudo o que o Homem-Aranha já foi: dos filmes dirigidos por Sam Raimi no início dos anos 2000 (com direito a uma menção de gargalhar sobre o Peter Parker “emo” de 2007), passando pelo mais recente (protagonizado por Tom Holland) e voltando no tempo até as primeiras animações do final da década de 1960 (a cena pós-créditos beira a genialidade). Essa aproximação, por mais que ceda cenas das mais engraçadas (como a já citada), também impulsiona Homem-Aranha no Aranhaverso a ganhar uma seriedade poucas vezes vista em um filme dessa ordem desde o boom dos super-heróis nos cinemas.

Há, sem dúvidas, filmes sérios e de qualidade praticamente indiscutível (a lista pode até ser extensa), mas são raros os que conseguem equilibrar com tanta competência a seriedade com a leveza do material – destaque, aqui, para o personagem que originalmente é dublado por Nicolas Cage: o Homem-Aranha Noir. Assim sendo, um filme precisa (sem qualquer forma imperativa), entre tantos fatores, construir o seu universo de uma maneira que seja crível em si mesmo. Não se trata de ser verídico dentro do mundo real, mas verossímil por meio do que ele é, de fato, em sua duração. O trio de diretores de Homem-Aranha no Aranhaverso (Peter Ramsey, de A Origem dos Guardiões, e os estreantes Bob Persichetti e Rodney Rothman) consegue não somente construir essa incrivelmente possível realidade alternativa como a transpassa por verdades paralelas. Isso constrói, acima de tudo, o entendimento de que a realidade nada mais é do que aquilo que é feito no presente. A partir de então, cria-se a clássica linha temporal de passado, presente e futuro.

Uma linguagem própria

E é interessante como o roteiro e a direção brincam com fatos sem jamais transformá-los em equívocos. Tudo é realizado com bases sólidas, seja resgatando parte do que já foi vivido pelo Amigo da Vizinhança, seja fundamentando uma nova forma de ver esse super-herói, seja por discutir o futuro dos filmes do seu subgênero.

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Consciente do que faz, a equipe modifica a visão do cinema de animação com uma inteligência perto de irrefreável: é reparável, por exemplo, o uso do desfoque em algumas cenas, como que para simular a má formação de imagens pelos olhos da maioria das aranhas – o que aproxima ainda mais o público de Miles. Do mesmo modo, a forma como ele (Miles) desenvolve o famigerado sentido-aranha é, ao menos visivelmente, baseado tanto em como algumas aranhas reais devem sentir quando há um toque em suas teias quanto no reflexo aguçado desses aracnídeos. Toda essa construção fundamentada no mundo como é conhecido faz uma ligação curiosa com um pensamento de um dos maiores dramaturgos da história, Bertolt Brecht. Ele diz: “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la.”

Essa nova forma de enxergar, por sinal, faz com que Homem-Aranha no Aranhaverso seja não somente fruto de muita competência na constituição do seu louco universo, mas faz também com que sua estética seja, possivelmente, a mais extraordinária de um filme capitaneado por um personagem com poderes sobre-humanos. Muito se deve à fluidez resultante do casamento entre cinema e HQ, algo que vai muito além de ser somente uma forma de deixar o filme esteticamente atraente: é a caracterização de uma linguagem própria (como o é o universo do filme) – com sua textura aliada ao sentimento do seu personagem principal, com seus textos que surgem em balões que ressaltam o que se vê e até com viradas de páginas que substituem transições cruzadas (muito utilizadas para passagens de tempo).

Sem expectativas, mas com esperanças

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Mas não é só. Homem-Aranha no Aranhaverso brinca com uma questão fundamental e que atinge tanto os filmes em geral quanto o público e a crítica especializada: a expectativa. E a verdade é que um filme não tem culpa (positiva ou negativa) de qualquer expectativa criada. Nem mesmo um texto crítico (ou não) pode ser o culpado. Porque expectativa é algo pessoal, íntimo. O mais saudável, portanto, é perceber o quanto pode ser enganoso esperar por algo que não está sob controle. Assim, antes de Miles ser picado pela fatídica aranha, a cena é de uma constante quebra de expectativas que constrói um clima de suspensão quase angustiante. Algo que é totalmente repelido quando a tal aranha, enfim, injeta o seu veneno e ele (Miles) reage com uma profunda indiferença.

Em vista disso, a tradução dada pela dublagem para “no expectations” – “sem esperanças” (que não é exatamente errada, mas foge da estrutura do filme) – acaba por inviabilizar uma compreensão necessária para um aproveitamento ainda maior por parte do público. Por outro lado, o trabalho de tradução para o português da Sony Pictures Animation para os citados textos que surgem vez ou outra é de deixar qualquer um satisfeito – algo que a mesma empresa já havia realizado recentemente em Buscando... (de Aneesh Chaganty, 2018).

Por fim, ao finalizar com uma referência necessária à inclusão e à necessidade de sermos o que quisermos ser, Homem-Aranha no Aranhaverso é de uma inteligência emocional instigante, comprovando em definitivo que é possível ser puro entretenimento e, ao mesmo tempo, conter das maiores reflexões contemporâneas. Miles, negro, sabe bem o que diz. E não é porque ele é desenhado que suas palavras valem menos (ele não se desenhou sozinho), o que só comprova o grau de identificação – não com alguém específico, mas com a humanidade necessária – promovido por essa obra-prima da animação.