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Crítica | Por Trás da Inocência é como um carro de autoescola no trânsito

Por| Editado por Jones Oliveira | 23 de Março de 2021 às 10h20

Kiss and Tale Productions
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Existem filmes que podem ser considerados ofensivos em seus conteúdos morais ou sociais, especialmente nas relações deles com a atualidade. É o caso do recente 365 Dias (de Barbara Bialowas e Tomasz Mandes, 2020), por exemplo. Outros, porém, têm algo que pode ser interessante em alguma medida — por mais que não se saiba o que é exatamente —, mas são tão mal executados que aqueles nocivos despontam como obras-primas em comparação. O cultizado The Room (de Tommy Wiseau, 2003) e Por Trás da Inocência são desses com o poder generoso de revelar a competência técnica de filmes moralmente e socialmente infelizes.

Por outro lado, esses mesmos filmes podem conter alguma ingenuidade e, com isso, alimentar a sensação de que a equipe envolvida não tem muita noção de como lidar com a linguagem do cinema. A aparente construção amadora, então, pode fazer muitas opções serem relevadas e a experiência de assistir ao filme ser muito menos irritante. Talvez seja como estar com pressa no trânsito, mas com um carro de autoescola travando o fluxo. Desculpa-se, justamente, por não ser uma situação ofensiva.

Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Um piquenique diferente

Por Trás da Inocência tem um ar ingênuo desde a sua abertura, com a imagem percorrendo um longo caminho até chegar a uma livraria na qual um livro da escritora Mary Morrison (Kristin Davis) é vendido como água. A relação, portanto, de um mar calmo inicialmente enevoado e, em seguida, com suas ondas chocando-se nas rochas pode criar uma rima interessante para o percurso percorrido pela protagonista.

Crítica | Por Trás da Inocência é como um carro de autoescola no trânsito
Ondas revoltosas depois da calmaria da água. (Imagem: Reprodução/Netflix)
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É uma questão, de repente, bem pensada pela diretora e roteirista Anna Elizabeth James (de Pistachio, 2018), mas executada de maneira, no mínimo, estranha. Isso porque existe uma criação de tensão alimentada pelo ostinato (um padrão rítmico-melódico repetitivo) da trilha musical de Drum & Lace (de The Penny Black) que funciona como um anúncio de algo realmente interessante. Além disso, a montagem de Brian Scofield (de Miss Virginia) — que dá a impressão de só saber usar a transição cruzada (quando a próxima cena surge por cima da anterior) — consegue uma contemplação visual por meio do ritmo que ainda não é desmedida.

Crítica | Por Trás da Inocência é como um carro de autoescola no trânsito
Água, transição cruzada e névoa. (Imagem: Reprodução/Netflix)

Então, finalmente, Scofield corta para um liquidificador em funcionamento. Pronto. Está feito o resumo do filme, que é quase minimalista e metafórico pelo plano detalhe do eletrodoméstico batendo toda a introdução e despedaçando-a. A partir desse ponto, tudo o que Drum & Lace faz soa errado, no momento errado e com uma utilização errada da provável ideia de James, como quando a babá (Greer Grammer) está na piscina com as crianças e o universo criado pela música se assemelha a um piquenique com Peppa Pig e Mary Poppins.

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Crítica | Por Trás da Inocência é como um carro de autoescola no trânsito
Brincando na piscina ao som de uma trilha musical duvidosa... (Imagem: Reprodução/Netflix)

Indesculpável

Fica, talvez, nítido que a diretora queria deixar a situação ambígua entre a beleza de Grace (Grammer) e seu poder de sedução com a figura psicologicamente infantil que mora dentro do seu corpo. O problema maior, porém, é que ela (James) nunca se utiliza de planos eficientes quando quer fomentar a carga sexual do filme.

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Há motivos extrafilme para isso, como a tentativa de não sexualizar o corpo da mulher, mas é uma motivação que se torna defasada quando a intenção é, justamente, a dualidade entre uma mulher sexualmente ativa e perigosa e a mente infantil de quem quer brincar com os gêmeos como seus iguais.

Junto a isso, James, evitando a sexualização de Por Trás da Inocência, sufoca questões explícitas como a do transtorno dissociativo de personalidade — que deságua em um final, na prática, cômico — e perde a chance de criar os contrastes necessários para uma experiência muito mais intensa por parte do espectador. Nem mesmo os planos detalhes — além do que mostra o liquidificador — funcionam com objetividade.

Crítica | Por Trás da Inocência é como um carro de autoescola no trânsito
Talvez o plano mais revelador do filme. (Imagem: Reprodução/Netflix)
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Enquanto isso, a montagem de Scofield segue com suas transições cruzadas, desenvolvendo uma falsa fluidez que, de tão repetitiva, pode cansar. Nesse embalo, tudo é devorado por uma inocência amadora, com boas intenções, que, ao contrário dos filmes ofensivos, não são um insulto moral ou social, mas, se o espectador estiver cansado, previamente irritado ou em algum nível de estresse, pode dar uma vontade grande de cravar a mão na buzina com toda força. E sem pedir perdão.

Por Trás da Inocência está disponível na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech