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Crítica | Watchmen demora para engrenar, mas termina com gostinho de quero mais

Por| 24 de Dezembro de 2019 às 09h19

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É muito difícil transpor a genialidade dos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons para outras linguagens. Isso porque Watchmen foi meticulosamente desenhado para funcionar na Nona Arte. Zack Snyder tentou com sua adaptação — e o fez da melhor forma possível — e Damon Lindelof, com certo descrédito por conta de algumas decisões questionáveis em Lost e Prometheus, tinha a árdua tarefa de revisitar esse mundo à altura em uma série de TV da HBO. E, mesmo com algumas limitações, ele conseguiu reacender o interesse pela franquia da DC Comics.

Atenção: o texto contém spoilers que podem estragar a surpresa para quem ainda não assistiu. Portanto, se não viu os nove episódios da atração, talvez seja voltar depois.

A HQ de Moore e Gibbons, quando foi lançada nos Estados Unidos, entre setembro de 1986 e outubro de 1987, foi um dos marcos do encerramento da Era de Bronze e do início da Era Moderna dos quadrinhos. Em vez de celebrar os heróis, como na Era de Ouro, ela desconstruiu o conceito dos vigilantes, com motivações reais em resposta a uma sociedade cruel e egoísta.

As consequências se tornaram extremamente mais perigosas e verossímeis depois nas revistas após essa série. Vale destacar que na mesma época o mercado também recebia Cavaleiro das Trevas, uma versão sombria nunca antes vista do Homem-Morcego — e do Coringa; e histórias adultas e violentas, com nomes como Neil Gaiman e Moore construindo aos poucos o que culminaria no nascimento do selo Vertigo, com uma abordagem, digamos, menos romântica de heroísmo.

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Mas Watchmen não foi importante só por essas razões. A narrativa das 12 edições é única e até hoje muitos tentam reproduzi-la. A diagramação, o timing e os ângulos cinematográficos, combinados com um texto visceral — que instiga movimentos, ações e pensamentos que estão embutidos entre os espaços de cada quadro —, fazem dessa pérola, talvez, a melhor história de super-heróis de todos os tempos.

Um exemplo do que não pode ser feito no cinema está na edição número 6, na exata metade história. O Doutor Manhattan é filho de um relojoeiro, ele é muito metódico. Para representar melhor essa sua visão calculista das coisas, Moore e Gibbons criam uma narrativa simétrica: se você reparar no número de quadros e balões, até mesmo de palavras, após a criação da estrutura de Manhattan em Marte, na página espelho, vai notar que as 12 páginas seguintes são o oposto simétrico das 12 anteriores.

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Isso só pode ser feito nos quadrinhos e há várias manobras narrativas semelhantes ao longo da maxissérie. A saída para uma boa adaptação é, então, explorar elementos que não existem no papel, como o drama dinâmico e o som.

Construindo o mundo de Watchmen

A série de Lindelof começa devagar e há uma razão para isso. Além dos novos personagens, que inicialmente não são muito cativantes (falaremos mais sobre isso abaixo), o showrunner precisa de quatro episódios para projetar e reconstruir o que foi estabelecido nas revistas. Para isso, ele aproveita bastante o que deu certo no filme de Zack Snyder.

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Muitos vão lembrar que Snyder usou bem a música, algo presente nos quadrinhos somente em forma de palavras, para resumir o que acontece com os primeiros vigilantes de Watchmen. Além de contextualizar a época, ele também falou muito pelas palavras de The Times They Are a-Changin’, de Bob Dylan. Lindelof também usa canções como recurso narrativo, do começo ao fim da série — e isso também ajuda a dar mais estofo ao que acontece na trama.

A produção é impecável e tudo nos remete a um espelho retorcido de nossa própria realidade, uma distopia, se assim quiser chamar. Há um misto de tecnologia retrô com alta ciência, em um flerte com o steampunk: temos invenções sci-fi que envolvem clonagem e teleporte, enquanto, ao mesmo tempo, as pessoas ainda usam telefone com fio e sequer têm celulares.

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É um planeta mais cruel, sujo e corrompido, em que o amor e a esperança são mesmo uma utopia. Esse é o mundo de Watchmen, reproduzido e recriado com mérito pela série.

Personagens ainda ficam aquém dos originais

É difícil superar a fórmula de sucesso da obra original, com um mix de Rorschach, Comediante, Espectral, Coruja, Doutor Manhattan e Ozymandias. Ainda assim, Lindelof criou seus próprios protagonistas em vez de apenas se apoiar no que está no passado.

Assim, nasceram a “freira noturna” Sister Night; Looking Glass, que traz um pouco da paranoia da Rorschach para a trama; e Red Scare, o policial nervosinho russo — talvez o mais intrigante deles seja o “Lube Man”, que apareceu deslizando em apenas um episódio e nunca mais deu as caras.

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Obviamente, eles estão bem aquém de seus antecessores, mas, como vimos ao longo da história, isso é proposital. Lindelof sabia que não poderia competir com Ozymandias e sua turma, por isso preparou o terreno para seu grand finale, inclusive envolvendo a própria filha do “Homem Mais Esperto do Mundo”, a inteligente Lady Trieu — que, inicialmente, parecia ser a filha bastarda do Comediante, que a teria concebido na época de sua passagem pelo Vietnã.

Ver a jornada inicial de Sister Night pode ser, então, um pouco maçante, mas as aparições de um envelhecido Ozymandias, assim como de Espectral, dão indícios de que a coisa iria mesmo engrenar muito em breve. A partir do quinto episódio, tudo fica mais interessante, e os três capítulos finais são de tirar o fôlego.

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Easter Eggs e subtextos por toda a parte

Se Lindelof não tinha em mãos o texto visceral de Moore saindo pela boca de Rorschach, por outro lado ele tinha esse playground, esse mundo que ele mesmo recriou para espalhar várias referências à obra original — e também seus próprios pensamentos sobre o conceito de super-heróis.

Há várias menções aos quadrinhos e ao filme de Snyder. Entre os exemplos está a criatura lovecraftiana que matou milhões de pessoas em Manhattan e a famosa banca de revistas onde acontecia a trama paralela dos Contos do Cargueiro Negro, lidos por um jovem que frequentava o local.

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Em um dos episódios, vemos alguém muito parecido com o Batman se dando mal. A própria sequência lembra cenas da trilogia de Christopher Nolan e ali Lindelof faz sua crítica aos super-heróis, banalizando o que seria Bruce Wayne no mundo de Watchmen.

Em paralelo, há uma discussão sobre memória, com um sistema e medicamentos que podem recuperar fatos do passado. A idealizadora desse projeto, Lady Trieu, diz que o experimento não deu certo, “porque as pessoas tendiam a querer reviver somente suas lembranças ruins, de novo e de novo”. Isso te lembra um certo vigilante de Gotham que passou décadas revivendo a morte dos pais, como desculpa para combater o crime?

Mas vale a pena?

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Sim, vale. A representação do Doutor Manhattan e a ausência do Coruja e de algo que ligasse ao Comediante podem desagradar um pouco os fãs hardcore, mas, ao final de tudo, é bem compreensível as escolhas que Lindelof precisou para fazer para contar sua história — e ele a contou da melhor forma possível.

A narrativa embalada pelas canções e a jornada final de Manhattan e Ozymandias, assim como o reencontro de Sister Night com Hood Justice, são uma bela homenagem à obra original. A atração consegue ser autêntica à sua maneira e é uma das grandes boas surpresas da temporada.

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Curioso foi notar como as pessoas estavam ansiosas para retornar ao mundo de Watchmen, que, com esse seriado, mostrou que há formas de contar mais histórias por ali. Lindelof avisou que seria “filho único”, mas, como sabemos, nada é impossível em Hollywood, ainda mais com o sucesso de público e de crítica. Esperamos por mais uma temporada, pelo menos.