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Crítica | Jessica Jones entrega um fim corajoso e imperfeito

Por| 20 de Julho de 2019 às 12h20

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Crítica | Jessica Jones entrega um fim corajoso e imperfeito
Crítica | Jessica Jones entrega um fim corajoso e imperfeito

Talvez mais do que qualquer outra série deste ano, a terceira temporada de Jessica Jones estreou com um sentimento de finalização, pois ela tinha a responsabilidade não apenas de pôr um ponto final da história da heroína, mas também suprir a expectativa dos fãs de finalizar todo o universo da Marvel na Netflix.

E, assim como em praticamente todas as séries Marvel da Netflix, o resultado disso é bom, corajoso e imperfeito.

Atenção! A partir deste ponto esta crítica pode conter spoilers sobre toda a série. Esteja avisado!

A certeza que mata

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Na terceira e última temporada de Jessica Jones, vemos a heroína se esforçando para lidar com os eventos da segunda temporada, quando viu a sua melhor amiga/irmã de criação matar a mãe dela para salvá-la de um perigo que, na realidade, não existia.

Assim, o relacionamento entre Jessica e Trish é o fio condutor desta última temporada, e todos os acontecimentos giram em torno de como as duas personagens se relacionam — ou ainda de como elas não conseguem deixar de se relacionar.

Assim como nas outras duas temporadas, o vilão de Jessica Jones não é um ser superpoderoso que pode derrubar prédios com um soco ou uma organização criminosa que domina todo o submundo do crime em Nova York, mas um “inimigo íntimo”, alguém que é muito mais uma ameaça emocional para a protagonista do que uma ameaça física. E, como na temporada anterior, a vilã da terceira de Jessica Jones também é um exemplo do poder corruptor da sociedade — mas visto sob outra perspectiva.

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Na segunda temporada da série, a mãe de Jessica era um exemplo de vítima à margem da sociedade que se torna vilanizada: a superforça e a instabilidade emocional dela foi usada como metáfora para pessoas que perderam tudo e precisam de ajuda, mas que se recusam a baixar a cabeça e se contentar com esmolas e autopiedade, prontas para contra-atacar uma sociedade que se esforça para tirá-la de jogo e poder seguir suas vidas sem aquele “estorvo” que a mãe de Jessica representava.

Ainda que fosse uma vítima (afinal, ela havia perdido toda a família e era obrigada a viver confinada do convívio social), a única pessoa que a viu como alguém que precisava de ajuda era Jessica, enquanto a sociedade já a havia julgado como alguém sem salvação e que precisa ser retirada da jogada para que todos possam seguir adiante com suas vidas. E esse papel da sociedade foi representado por Trish Walker, que atuou como juiz, júri e executor: ainda que Jessica tentasse a todo custo convencê-la de que tudo o que sua mãe precisava era de ajuda, ela já tinha decidido que a mulher era uma ameaça e que o único jeito de todos viverem em segurança seria a morte dela.

E ela puxou o gatilho, sem pestanejar, porque Trish sempre teve a “certeza da certeza”, o “saber” de que ela estava correta. Se alguém discordava dela, é apenas porque não conseguia enxergar isso. Esse comportamento — que já se mostrava presente desde a primeira temporada, mas que se intensificou durante a segunda e foi responsável por torná-la em vilã na terceira — serve como metáfora a uma característica problemática de nossa sociedade atual: a de que admitir um erro é uma posição de fraqueza.

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Assim como a mãe de Jessica serviu de metáfora para uma população marginalizada que é vista como vilã por seu desejo de se rebelar e não apenas morrer quieta sem incomodar ninguém, Trish atua como a figura do “cidadão de bem”, que tem absoluta certeza de que sua visão do mundo é a única correta, que confunde “justiça” com “revanchismo” e que possui inveja de pessoas em posição de poder, desejando tomar para si essa posição pois enxerga nessas pessoas falhas que considera “graves” e, assim como em todo o resto, possui a absoluta certeza de que poderia atuar muito melhor caso tivesse aquele poder.

Essa inveja de Trish pelo poder de Jessica pode ser visto desde a primeira temporada, pois a personagem sempre foi bastante vocal em expressar seus sentimentos de que a protagonista está “desperdiçando” o “dom” que ela conseguiu — ou seja, sua superforça — querendo viver uma vida normal, e que ela teria muito mais a oferecer à sociedade atuando como uma heroína. Por conta de uma criação extremamente rígida, Trish sempre se sentiu como alguém que obedece e não como quem toma as rédeas de sua vida, mas ao invés de fazer terapia para entender esse problema, ela, como bom “cidadão de bem”, decidiu que a culpa disso era do fato de ela não possuir um instrumento de poder.

É possível notar a busca da personagem por essa ferramenta ao longo das três temporadas da série: primeiro ao aprender a atirar e passar a andar com um revólver na bolsa — a mesma sensação de poder e de falsa segurança procurada por muita gente que hoje defende a liberação do porte de armas de fogo ou, no caso dos Estados Unidos, se recusa a discutir qualquer tipo de regulação para esse tema —; depois com o uso da droga que concedia sentidos aguçados e reflexos mais rápidos, culminando na submissão da personagem a uma cirurgia experimental incrivelmente arriscada que poderia tanto lhe dar superpoderes quanto matá-la.

Assim, podemos ver na evolução de Trish ao longo das temporadas um paralelo do que é nossa sociedade atual, onde a satisfação de um desejo pessoal (no caso de Trish, a busca por um poder como o de Jessica) está acima de qualquer relação exterior a si (como a escolha deliberada da personagem nunca respeitar os sentimentos de Jessica e se esforçar para manipulá-la para fazer o que Trish acreditava ser o correto) e até mesmo acima de qualquer respeito pelo próprio funcionamento da sociedade em si (ou, no caso de Trish, o respeito pelo funcionamento de seu próprio corpo ao aceitar submetê-lo a uma operação de risco com poucas chances de sucesso apenas para ganhar superpoderes). Assim como um “cidadão de bem”, Trish acredita ser perfeita e não aceita críticas, e é essa a postura que, ironicamente, a impede de realmente fazer o bem que tanto deseja.

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E quando Trish finalmente consegue o poder que tanto deseja e se torna a heroína que sempre achou que a cidade precisava, ela rapidamente é tragada em um vórtice sombrio que a torna uma assassina em série, sugada para as profundezas pela própria certeza de estar certa. Porque essa sempre foi a grande diferença entre Jessica e Trish: enquanto a segunda sempre teve absoluta certeza de que estava certa — e mesmo quando algumas de suas decisões a levavam a um caminho negativo, as racionalizava de forma a justificar suas escolhas e a ter certeza de que o resultado não foi por culpa sua, mas que era algo inevitável e que aconteceria com ou sem sua influência — a primeira sempre duvidou de todas as suas ações e temia pelas consequências delas. E enquanto a abordagem de Jessica — de evitar o conflito a todo custo e de fugir de seus próprios demônios - durante muitos anos a impediu de se realizar como pessoa, a “certeza da certeza” de Trish, ainda que fosse a responsável pela ascensão dela no show business, mostrou-se sua ruína no momento em que ela teve o verdadeiro poder em mãos.

Assim, a terceira temporada de Jessica Jones deu a Trish a mesma evolução narrativa que Game of Thrones deu a Daenerys: alguém que não apenas queria fazer o bem, mas que tinha tanta certeza de que estava fazendo o bem que se tornou cega pela sua própria certeza e se transformou exatamente naquilo que havia jurado combater. Assim como com a Mãe dos Dragões, as características que faziam de Trish uma personagem tão cativante não apenas para o público, mas para a própria Jessica, foram as responsáveis por transformá-la na vilã da história. E, assim como Jon Snow, Jessica Jones também se viu em uma encruzilhada, obrigada a escolher entre o amor e o dever — mas ao contrário da escolha pelo amor que ela fez por sua mãe, Jessica viu que Trish não havia se tornado quem se tornou por conta do que a sociedade a fez passar, mas sim por conta de quem ela realmente era — e, assim, não havia mais salvação.

Imperfeição final

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A terceira temporada de Jessica Jones tem seus problemas — especialmente de ritmo, algo compartilhado por praticamente todas as séries da parceria Marvel e Netflix, nas quais a “obrigação” de 13 episódios faz com que elas parecem se arrastar em diversos momentos da trama. Mas, assim como sua protagonista, o fim da terceira temporada de Jessica Jones — e da parceria entre Marvel e Netflix como um todo — é perfeito em sua imperfeição.

A prisão de Trish, que significou o fim de qualquer ligação de Jessica a seu passado traumático, serviu como um catalisador para a mudança tão procurada pela personagem: ela finalmente estava livre de todas as amarras, podia parar de tentar ser aquilo que esperavam dela e finalmente se concentrar em ser quem é. Ao decidir parar de fugir e enfrentar seus demônios, Jessica finalmente se viu livre para fugir e fazer o que quisesse da vida.

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Assim como as dificuldades que superamos na vida, os vilões de Jessica não foram apenas obstáculos, mas lhe ensinaram também lições valorosas: Trish lhe ensinou que é preciso enfrentar seus demônios se quiser realmente superá-los; sua mãe biológica lhe ensinou que um laço familiar não pode servir de justificativa para se desculpar qualquer erro; e Killgrave ensinou que ela não pode se culpar pelas ações de outra pessoa. A prisão de Trish ajuda Jessica a finalmente sentir-se em paz consigo mesma, significando o fim de uma jornada por redenção e o início de uma de aceitação.

Jessica Jones termina de uma maneira que abre portas para dezenas de novas histórias interessantes que nunca serão contadas, mas, no fim, isso não importa. Jessica Jones, Luke Cage, Danny Rand e Matt Murdock — todos completaram suas jornadas e estão nos deixando como pessoas bem diferentes daquelas às quais fomos apresentados. E não há melhor forma de terminar essa história do que deixando claro que, assim como Jessica, eles todos continuarão suas jornadas, com a única diferença que nós não estamos mais convidados a acompanhá-los.

As séries morrem, mas seus personagens vivem e prosperam fora de nosso olhar, e o “felizes para sempre” é a interrogação misteriosa que não só pairou sobre a cabeça de todos esses personagens durante suas jornadas, mas também que sempre vai surgir nas nossas cabeças toda vez que lembrarmos deles — o final perfeito para um grupo que se uniu por suas imperfeições.